terça-feira, 30 de junho de 2009

Continuo com Max Ophuls e com um filme que ele fez quinze anos mais tarde em Hollywood. Letter From an Unknown Woman é o título. Também se passa em Viena (embora filmado em Hollywood) também provém de um escritor austríaco (Stefan Zweig). Também acaba com um duelo. Só que nesse filme as regras e o jogo são diferentes.
Lisa (o mais magoado papel de Joan Fontaine) é uma rapariga da classe média que sonha ser artista. Na mesma casa onde ela mora, vive um pianista célebre, Stefan Brand (Louis Jourdan) um bom bocado mais velho do que ela. Quase desde criança, ela apaixona-se por ele: o grande artista, o génio. Nunca lhe fala, poucas vezes o vê, mas alimenta-se dele e da música dele. Tanto e tão loucamente que, quando cresce, recusa qualquer casamento. Só pode casar-se com o seu pianista, pianista que nem sabe da existência dela e quase todas as noites tem uma mulher diferente.
Mas um dia encontram-se e conhecem-se. Fazem uma grande viagem num comboio que não sai da estação num parque de ilusões em Viena. Quando virem o filme, perceberão que essa mágica viagem a levou até ao fim do mundo. Nessa noite, Lisa quebra todas as regras do seu jogo virginal e torna-se amante de Stefan. O céu dura pouco: Stefan tem uma tournée, daqui a uns dias estará de volta. Despedem-se na estação de comboios, que sempre foi o lugar das despedidas para nunca mais. Nunca mais Stefan voltou e nove meses depois quem chega é o “filho do pecado”.
O destino deu segunda hipótese a Lisa. Um senhor rico, muito rico mesmo, que gostava dela e até aceita ser o pai da criança. Mas, nestas histórias, há sempre, uma vez, outra vez. Na ópera, durante uma ópera de Mozart, Lisa reencontra Stefan, aliás assaz decaído. Tudo parece reatar-se e a tal ponto, que, apesar do marido ser magnânimo, Lisa sai de casa para outra noite de amor com Stefan até descobrir, no princípio dela, que Stefan nem se lembra que ela existiu e lhe repete o mesmo número que jogara anos atrás na noite mágica.
Não interessa muito contar que Lisa morre, mas interessa saber que, se sabemos toda esta história, e se a sabemos pela boca e pelo olhar de Lisa, é porque ela escreve do leito de morte a carta de uma desconhecida. Para além da carta, só ficamos a saber que o que Stefan esqueceu nunca foi esquecido pelo criado mudo dele, que acompanhou toda a história e percebeu todo o drama muito antes dele. Só ficamos a saber que Stefan, que se preparava para fugir ao duelo para que o desafiara o marido de Lisa (histórias de honra não eram para gente como ele) depois de ler a carta acaba por aceitar o duelo. O desfecho é imaginável.
Em Letter From an Unknown Woman, quem quebrou a regra foi Lisa, mas quem aceitou a estúpida honra para se lavar do que fizera ou do que fora, foi Stefan. Lisa transgrediu a regra porque viveu sempre num mundo onírico e, por isso, numa notável análise do filme, Stanley Cavell tenta uma singular leitura freudiana desta obra. “By the time you read this I may be dead” escreve a desconhecida na sua carta-filme. “Why is she death-dealing?” pergunta Cavell. E é a grande pergunta que se pode fazer às personagens dos grandes melodramas, onde o único horror é o horror de acordar e onde por isso o jogo com a morte é o único jogo possível.

João Bénard da Costa

ainda há tempo.



"Xavier", Manuel Mozos

Xavier é um filme com um idioma próprio, sonhado e feito, totalmente, nas margens das imagens dominantes (mesmo as do cinema, para já não falar das da televisão), e que parte, solitariamente, à descoberta de uma nova poética portuguesa, que não é só cinematográfica.

De tudo isso, no entanto, o que mais me fascina é essa vontade de tecer todo um filme à volta de um único protagonista, um grande, paciente e magnífico gesto de humildade, absolutamente incomum no cinema português, e que faz com que Xavier, apesar do atraso com que nos chega, mantenha, para sempre – sabemo-lo hoje – a força genuína de uma mudança, que o filme nunca deixará de ser, realmente. Foram doze anos; mas parece, apesar de tudo, que ainda há tempo.

domingo, 28 de junho de 2009


Não sei muito bem que diga, mas acho que tenho alguma coisa a dizer. Coisa pessoal, aviso já. “Liverpool”, o filme de Lisandro Alonso, muito mais do que merecer rasgados elogios da minha parte, penso seriamente que é o tipo de filme que gostaria de fazer. Isto dos que vi nos últimos tempos, evidentemente. Sempre tive – ainda tenho, na verdade – esta ideia de fazer um filme só com uma personagem, segui-la, olhar os seus movimentos, a maneira de andar, de beber, de interagir com as outras pessoas, etc. Ao mesmo tempo que a enquadraria num mundo e num tempo que me dissesse alguma coisa, que significasse. Assim, sem merdas. Sem uma estrutura narrativa convencional – sem uma estrutura narrativa, ponto. – obviamente sem códigos e sem géneros, sem leis nem amarras. Sem música e sem sublinhados. Sucintamente – sem o pó de arroz que alimenta esta ficção medonha dos dias de hoje. Sem ter que pensar no público e na necessidade de o satisfazer. É filme para desenjoar de “filmes”. Para desenjoar de imagens e de sons a mais. De poluição a mais. Porque sejamos claros, o que faz Alonso: traça um mapa e um percurso para o seu personagem, uma “história” resumida numa linha – “um tipo que aproveita uma folga para visitar a mãe que há muito não vê” – escolhe uns lugares para mostrar como é a região e…põe a câmara a captar tudo isso singelamente. Mas mesmo singelamente. Sem nada acopulado, sem lição de moral, sem lição sociológica, sem psicologia barata, sem querer afirmar-se como “grande cineasta” que faz grandíssimos planos, grandíssimos cortes, prodigiosos malabarismos entre as músicas e as imagens, etc…Não, Alonso apenas quer captar um percurso e, talvez, a emoção que daí desvela, nada mais. Por isso é que este empreendimento corresponde ao meu velho sonho, seguir alguém, e isso seria um dos meus filmes ideais.
Também se poderá falar em falta de imaginação? Sim, mas no caso, bendita falta de imaginação. Preciosa falta de imaginação. Talvez por isso, por essa inocência, é que em certas alturas o lirismo daqueles céus e daqueles horizontes se torna tão intenso, suavemente intenso, quase trazendo à memória outros cinemas e outras vidas. Mas isso não quero desenvolver.
Dito isto, até estava a pensar que se tivesse sido eu o realizador de “Liverpool”, teria acabado o filme naquele extraordinário plano em que Farrel vira costas à casa da família e nunca mais o vemos. Compreendo bem a ideia de Alonso, deixar ficar o filme no mundo que Farrel largou, perceber o peso daquele lugar e daquelas vidas, mesmo da possível reverberação que a sua passagem levemente permitiu, apenas dispensaria isto pelo simples motivo de corresponder radicalmente à minha ideia. Coisa tola, obviamente, este é o filme do argentino e está assim justíssimo, inatacável, comovente na sua intimidade. Já agora, e tendo em vista as coisas anteriores de Alonso que conhecia, este parece-me bastante clássico, de uma claridade e de uma leitura preciosas. Compreendo a revolta da maior parte do público que possa assistir ao filme, compreendo a revolta da maior parte da crítica, mas uma coisa tenho para mim, tudo são apenas sinais e marcas das convenções e das formatações terríveis que o cinema sofreu. Já não se consegue ver simplesmente, já não se consegue olhar, sentir o tempo do tempo. Por isso é que o cinema só pode ainda estar na infância. Mesmo.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

ainda não…claro que não...nunca mais esqueci.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

hey Johnny Boy....How you doin` ?

continua…continua…bem, poderia falar na atmosfera febril e palpável que atravessa todo o filme. nos impressionantes vermelhos, amarelos e derivados que aquecem o ambiente e como que estouram a tela. um segundo e o filme já pegou fogo. na mobilidade e frescura da câmara ou das músicas tais como entram. tais como são. ou então…no plano inicial - e por aí fora - até ao bar. aquela voz–off, aqueles travellings, aquela montagem quase utopicamente aglutinadora das vibrações/improvisos/temperamentos dos actores. coisa que parece rebentar costuras e bazar para fora das bordas dos enquadramentos. a oposição entre a religião e as ruas…e a pulsão, por tudo, a pulsão…vale tais coisas? certamente valeria, por alguém que não conhecesse a palavra “clichés”, valeria…
portanto: J.B aka Robert de Niro. toda a energia e intensidade de viver, toda a energia do mundo. toda uma instabilidade incompreensível naquele ser comovente. ali, todo o cinema de Martin.

domingo, 21 de junho de 2009

impressionante o domínio das imagens e da sua duração, que Steve McQueen demonstra em “Hunger”. até pode passar muita coisa pela cabeça – tipo Ford ou Oliveira – mas o que sinto é que o homem não está ali armado em artista, em artista plástico com pretensões de mudar o cinema, antes quer é sacar uma tensão e um risco de abismo, que tira mesmo o fôlego.
a distância a que Kiyoshi Kurosawa filma as coisas. acho que é isso que mais gosto no filme. acho que é daí que nasce a sua imensa poética. mesmo que tão triste. tão solitária. eu sei que estou sempre a repetir-me, mas…continua a achar que esta coisa das distâncias, dos espaços, do ar das coisas, etc…têm tudo que se lhe diga.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Scorsa rules....



grande dica do Manuel.. nestes casos, como sempre. eheh

terça-feira, 9 de junho de 2009


O tempo é a ontologia do cinema, o espaço o factor correlativamente determinante. Sendo assim, a câmara pode ser utilizada de várias maneiras. Diria que João Canijo possui um método, mas, desde os seus inícios até a este fortíssimo e impressionante “Mal Nascida”, este já é qualquer coisa de interiorizado e assim desenvolvido pelas suas convicções, não só do cinema, mas da arte dramatúrgica em geral. Na verdade, não só da arte mas da sua especifica visão do mundo. O cinema começou pelo plano sequência, ganhou as suas regras e as suas amarras, apesar (APESAR) de tantos modernismos e de tantos notáveis vagabundos que ousaram quebrar tudo, sempre teve no geral e na produção corrente e industrial, o perigo de cair na ilustração básica, no campo/contra campo pueril e académico, num naturalismo de pacotilha que hoje em dia faz a glória das telenovelas e dos telefilmes que no cinema e transpostos para película passam lamentavelmente por Cinema. Obviamente que todo o cinema clássico e muito do neoclássico, usando as leis, logo as transcendeu para ser outra coisa e todo o contrário daquilo que critico. Falando de Canijo. Tudo no seu cinema lhe interessa, tudo é matéria viva, palpitante, significante. Tudo é corpo orgânico e poroso, substância que exposta à sua luz vibrará por inteiro na impressão da película. Tanto os corpos, a carne bruta e visceral, o sangue e os suores, como as paisagens, as paredes, os tectos, o chão, o visco nas superfícies ou a humidade que encobre a natureza. E dizer isto é ficar sempre aquém, fica por referir todo o resto. Mais, neste tempo e nesta ficção em que o que interessa é a uniformidade, onde o trabalho sobre o quadro e a luz é de falso alisamento e pretensiosa igualdade de todo e qualquer elemento, Canijo dá-nos a ver a rugosidade e as temperaturas de cada objecto que compõe a cena, seja uma garrafa de sumol, as vacas no caminho ou o espelhamento de qualquer superfície. Cada ambiência e cada coisa tem a sua atmosfera e o seu nervo, o cineasta sabe-o perfeitamente. Com tudo o que isto significa e tendo a consciência do falso, Canijo procura a verdade das coisas, a sua, repito, visceralidade.

Daí à maneira como Canijo agarra (literalmente) tudo o que na sua cena acontece. Primordialmente parece-me que o essencial é observar os corpos dos actores a percorrerem os espaços, ou seja, o tempo que eles demoram a realizar os actos nos espaços em que estão inseridos. (Interessando-lhe as forças e os movimentos/correspondências secretas e intimas de todo o visível.) E dito isto, interessa-lhe captar o seu peso, a sua gravidade, a espontaneidade e imprevisibilidade dos gestos, das acções, das reacções, dos olhares, a sua interacção e relação com os elementos cénicos, com os decores, resumidamente, tudo o que constitui a complexidade humana e a sua capacidade de deslumbramento. Por isso é que Canijo não ilustra, despreza o campo/contra campo dos manuais, as regrinhas dramatúrgicas ilusoriamente facilitadoras, o naturalismo risório e sem interpretação (palavras de Canijo) dos “olás” e dos “bons-dias” da ficção corrente, etc. O que faz ele quando a máquina se liga? Inventa uma distância ética e respeitadora em relação às personagens, às suas vibrações e peculiaridades, em relação aos espaços e ao mundo que elas atravessam. A câmara segue e observa, contundentemente, as acções, o bailado humano, esse extraordinário espectáculo do andar e do reagir, algo que já ninguém se lembra de prestar atenção, nem nas artes nem fora delas. Sem qualquer resquício de exibicionismo, jamais a forma se auto-expõe, basta a cena em que Lúcia (Anabela Moreira) vai à casa do seu noivo, e fica trancada num espaço claustrofóbico, para logo a câmara se plantar fixamente e nos reenviar para algo como a dureza do cinema de Pedro Costa. (Muito a câmara se move, sendo assim, parece a mais imóvel das câmaras, a tal justeza.) Corpos que atravessam uma sala e passam para outro compartimento, que ficam e que dele saiem, com a câmara sempre pela sequência, pela espera, pelo retorno, recusando o típico corte que iria observar o que se passa por detrás da outra parede. Pela Duração. Essa extraordinária duração que cada vez mais as imagens de Canijo possuem, essa densidade brutal – ainda mais ampliada pelo trabalho sonoro que desmultiplica camadas – permite sentir o tempo que as coisas realmente demoram a fazer, permite experimentá-lo e contemplá-lo (em certas cenas, à beira do insuportável), bem como uma reformulação urgentíssima e essencial da ontologia primitiva da câmara de filmar. É a violência da forma e a violência do tempo, forma que já é só de Canijo, logo tempo que também só ele assim sabe possuir – experiência animal do mundo que faz com que seja tão feroz assistir a alguém a beber um copo de vinho como a uma cena de esfaqueamento. Assim mesmo.

domingo, 7 de junho de 2009


Desde o plano inicial que “Two Lovers” transporta o peso e o cheiro da tragédia. Sempre em crescendo, sempre na mais discreta serenidade – gravíssima serenidade – tudo ao longo do filme nos faz adivinhar que aquilo irá correr muito mal, que as coisas não vão acabar de boa maneira. Já agora, não acabam mesmo bem, parecendo que não, é dos finais mais abertos, incertos e negros que James Gray já filmou. O filme não se fecha, obviamente. Recuando. Qual a história deste filme? A mais simples, a mais conhecida, tal como a metáfora bíblica do anterior “We Own the Night”. Ou seja: um homem instável conhece, num mesmo hiato temporal, duas raparigas, duas amantes, uma delas belíssima e instável, a outra mais secreta, mais comum. A rapariga belíssima e instável gosta de outro e só o quer como amigo. A rapariga “normal” está disposta a dar-lhe tudo. Coisas velhíssimas, clássicas, que Gray vai tratar com aquele minimalismo de prenúncio de tragédia, com aquele simbolismo – cinematográfico sim, mas acima de tudo religioso, místico – que já praticamente ninguém ousa.
Como normalmente acontece, o acaso começa logo de inicio a operar, tanto na tentativa de suicídio interrompida, até à fatal visão da perigosa Michelle (Gwyneth Paltrow), mulher que vestida de negro surge da luz e que para sempre irá marcar Leonard (Joaquin Phoenix, o maior, ponto final.). Irreversivelmente? A paixão por ela é tão instantânea como inevitável, e para ele arrebatadora, Leonard fica logo apanhado pela mulher e por nada deste mundo lhe ousará dizer um não. Já sabemos o que isto significa. De imediato surge o movimento contrário do filme, ou seja, entre interesses financeiros e vontade de estabilidade, Leonard conhece a estável e promissora Sandra (Vinessa Shaw), mulher capaz de garantir auspicioso e seguro futuro. Detalhadamente: a loira é das que têm problemas, até o pai sofreu de doença mental, droga-se fortemente, trata as noites e as discotecas por “tu” e andar com ela é estar sempre ao lado do abismo. A morena é de boas famílias, trabalhadora, possivelmente fiel, com muito amor para dar. Uma não dá garantias, apenas assegura o provisório e as aventuras. A outra certifica segurança e conforto, certamente uma família. E uma das coisas mais notáveis que Gray soube captar é precisamente o estado de comprometimento – e logo de alheamento para absolutamente tudo o resto – com que fica Leonard a cada palavra e a cada repentina mudança de planos de Michelle, criatura quase inexistente porque tratada como visão, coisa terminalmente evanescente e inclassificável, passível de alterar facilmente a cabeça do homem que a ama. E isto têm muito que se lhe diga, pois a forma como Gray vai dispondo estas duas criaturas com problemas - entre os “altos” e os “baixos”, as sombras e a luz, o dentro e o fora, mesmo os amarelados da fotografia, que parecem queimar e dissimular a realidade, e os azulados como que a quererem pôr ordem, mostrar as coisas claramente - envolve sempre as tais ressonâncias místicas, como já referi, bem como certezas de predestinação, de destinos inescapáveis, de forças maiores e misteriosas, que se apoderão fatalmente daquela instabilidade e daquele risco.
Entre muitos, alguns exemplos: a maneira como aquele encontro e aquele diálogo no metro é coberto de sinais negativos, do fora para dentro, até a câmara de Gray nos mostrar o negrume em que estão envoltos os cortantes e sinuosos trilhos do metro (atenção ao diálogo premonitório); até aos fascinantes, e tão imensamente belos como revestidos de uma letal atmosfera, dos encontros que o par inventa nos telhados do prédio comum. Céu rasgadissimo, luz eminentemente “Rembrandt”, brisa nefasta, cidade estranhamente triste, pássaros que voam, muito frio e muitas ideias confusas, o modo como cada um deles entra e sai entre portas, a ficarem em contra-luz, silhuetas perdidas naquele espaço. Coisas destas não se dão ao acaso, mesmo com toda a força e temeridade que este possui. Ou então, a forma surreal como os dois seres comunicam pelas janelas do prédio. Leonard nos baixos, Michelle lá muito no alto, inacessível apesar de parecer todo o contrário, fugidia e irremediavelmente perdida para ele. Ambiguíssima e ao mesmo tempo tão cruel a forma como ela se vai servindo dele e como o vai iludindo, nociva ilusão, como segunda via para aquilo que parece não conseguir agarrar.
Ficarão os registos fotográficos. E é na necessidade que Leonard têm em rapidamente decidir o seu futuro – um negócio empresarial que ele despreza, uma rapariga que só lhe interessa como forma de descompressão e catarse (sexual, sobretudo) das desilusões momentâneas (e a palavra fundamental aqui é “momentâneas”) de Michelle, a disposição para tudo abandonar pelo anjo (ou será o oposto?) que lhe veio do desconhecido – que carrega o filme de um assustador e falso encantamento (as tais ilusões…), de uma tensão e de uma carga de sombrio suspense, até ao mais certo incerto dos finais. Ninguém fica imune a coisas assim e o que acontecerá ficará numa cruel e inadivinhavél elipse. Irreversível? Ao que mandariam as regras da tragédia e os livros – o sangue e a morte no ecrã – Gray preferiu, preciosamente, entregar aqueles seres à sorte e á vida. Desprezo pelas regras e pelas leis, entrega ao incerto e à existência. Peça harmoniosa e aereamente sinfónica, esquizofrenicamente neo-clássica e novelística, Gray abole aqui – como nos seus outros filmes – qualquer décalage entre o que é contado e sentido e o modo de transpor tudo isto para imagens e sons, daí a extrema justeza de tom, o arrepiante compromisso com a matéria do mundo e dos actores – “Two Lovers” é assim legítimo e forte porque dedicado e justo para com aquilo que filma e que capta, com o que está em questão. O que não o impede dos mais furiosos (discretos mas furiosas) e vibrantes rasgos, por exemplo, a cena da discoteca, mais uma vez uma discoteca, em que o cineasta demonstra uma voracidade e uma vitalidade, uma fome mesmo, de captação de ambiências e atmosferas, que a estes níveis e sensações, só Michael Mann anda a par. Câmara pelas estaturas e pelo peso dos homens e das coisas, sons aos níveis do mundo, coisas dessas, coisas fundamenteis. Magnifico.