domingo, 31 de janeiro de 2010

hoje, domingo

Paulo Rocha em Serralves, com “A Raiz do Coração”; e a continuação do ciclo Rohmer no Campo alegre. Está feito...

sábado, 30 de janeiro de 2010


Doloroso, ríspido e sincero como quem arranca de dentro do peito uma ferida sem limites. Philippe Garrel, Pascal Laperrousaz e Christian Zachariasen, obrigado por não conhecerem as regras de exposição da película e por conhecerem o Warhol, restantes bandidos e o mudo, só isto.
"este cinema que não faz a vida, mas a vida que faz o cinema e que faz presente do presente"

Jean Douchet
algumas notas rabiscadas sobre o filme do Biette.

- A arte de Biette começa por ser a arte da simplicidade, da clareza, da lisibilidade. Uma certa evidência mesmo. Cineasta clássico que no entanto trabalha a luz e a narrativa sempre na direcção da escuridão e da ambiguidade, do desconhecido, permeando todas as superfícies e pontas (de narrativa, de som, de enquadramento) de possibilidades de complot e de farsa.

- Dito assim é evidentemente um parceiro de Rivette. Sendo impossível negá-lo, é possível estendermos as vistas e os raccords para outros tempos e outras famílias, que podem também ser as de Rivette. Dou-me por mim a pensar nos grandes aventureiros clássicos da velhinha Hollywood, os filmes épicos feitos com tostões e um pouco pela calada, série-b absolutamente precisa, livre, sem medo, perdida e logo cósmica devido aos caminhos a que se aventura a percorrer e às normas que manda às urtigas. É esta a Hollywood ainda possível de existir.

- “Trois ponts sur la rivière” é então um inolvidável filme de aventuras e de viagens digno de um Tourneur ou de um Walsh, de um Lewis ou de um Dwan. Biette é um cineasta resolutamente materialista, conciso, exacto, mas tudo isto passa muito por ser um método bastante prático e justo de resolver as situações e de se adaptar às imprevisibilidades de um cinema completamente aberto à vida, ao mundo, ao imprevisto. A mise-en-scène surge como um princípio que, no imponderável e nos percalços dos percursos e das derivas, permite observar e captar tudo o que surge pela frente com o mais límpido e sereno dos olhares . Permite olhar o mundo na sua essência e claridade (ou obscuridade), coisa que muitos se esqueceram que o cinema pode fazer, de um modo simples e frontal (e formalmente "desarmado") que já nem se pensa que o cinema o pode assim ver porque o vemos assim diariamente (vemos?). Ou seja, é o contrário da dispersão e da falta de um olhar, o contrário das falsas velocidades e dos maneirismos histéricos dos cineastas medíocres. O mais próximo de uma ideia de filme b, que inventa um método e idioma próprio e não copiável.

- Obra de paradoxos e ambiguidades. Obra que na sua aparente linearidade narrativa logo resvala para uma espécie de esboço libertário e incerto (que se autoriza a perder, como naquelas maravilhosas viagens em que não ligámos aos mapas e vamos ao sabor do vento) que permite lançar dois seres às feras e à abstracção da realidade, à jornada paris-lisboa-porto e a uma constatação do caos e dos segredos. Coisa feérica, muito mais próxima dos abismos e do negrume do Tourneur dos zombies e dos feitiços do que qualquer suposta reflexão filosófica que a maior parte viu. Num certo sentido é também um filme fantástico, esotérico, em que ao lado (e por detrás, por dentro, por cima, por baixo, impregnado) das aparências e das lisuras surgem assombramentos e fantasmas (e há por lá muito zombie e muito fantasma feito pessoa, e não me refiro só à Isabel Ruth vinda de “O Sangue”) que estilhaçam qualquer ideia feita sobre qualquer coisa e qualquer “normalidade”. O escuro que invade muitos dos planos, tanto os intimistas como o que aparentemente poderiam ser “turismo”, são só indícios das possibilidades das trevas que ficarão sempre em suspenso nas demarches dos protagonistas. Também por isso o filme parte da cidade da luz para a luz de Lisboa e logo para a escuridão do Porto.

- O que suponho que deve ser um cinema “divertido” e gratificante de ser feito; como nas viagens, descobrir coisas novas e adoptar um olhar. Deixar-se surpreender e fazer jus a essas dádivas. Ter que estar à altura do acontecimento. Era coisa que gostava de fazer.

Jean-Claude Biette é simplesmente a maior descoberta que fiz desde hà muitooooo tempo, incluindo o ano transacto todo. Este “Trois ponts sur la rivière” é sublime, único, especial.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

É certo que não é o Clint de “Invictius” que mais me interessa, e em algumas partes o filme cede realmente a alguns facilitismos e demagogias – falo cinematograficamente – pois o que realmente gosto é quando ele é mais “pequeno” e instintivo – se possível, um homem, uma casita e um bairro qualquer – mas também é absolutamente indesmentível que a câmara de Clint nunca, mas por nunca, se descola da sua vocação primitiva - e aqui já falo de ética, coisa anacrónica por estes dias; quero dizer que está sempre à altura daqueles indivíduos e daquelas massas, daqueles sentimentos; sem décalages ou histerismos, é isso que interessa.
As coisas mais medonhas, ridículas e parolas que hoje em dia se podem dizer sobre um filme é: “aí está um filme que consegue conciliar arte e público”; “ser comercial sem menosprezar a inteligência da audiência”; ou então aquelas tretas sobre o cinema português “comercial” e o “artístico”; os das notas e os do umbigo...

E é o que lamentavelmente mais de 90% dos jornalistas que em Portugal lhe deram (ou foram lá colocados à força) para escrever sobre cinema fazem. Sim, porque a palavra “critica” têm que ser aqui palavra proibida. Era o que faltava confundir tais coisas...

Jornalistas esses que mais nada praticam do que publicidade, tanto ou mais quanto os bonecos das distribuidoras…

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

«Tout bon film est un Bresson»
Ford já me fez muitas destas, para dizer a verdade, com quase cada um dos seus filmes ou das suas palavras. Desta vez foi “The Long Gray Line” que me abanou. Começa logo por ser um dos gestos mais apaixonados de que me apercebi no cinema, qualquer coisa que de facto permite múltiplos espelhamentos entre a vida e os sentimentos de Marty Maher que o filme mostra e o que do próprio Ford conhecemos. Um gesto de amor e de reconhecimento que, como escreveu Luís de Pina, “evita o sentimentalismo em nome do sentimento”; “a pieguice pelo acto da verdade”. E é inacreditável que passando-se tudo entre a academia militar e a sua casa que fica logo ao lado, entre os seus interiores e os seus escassos mas majestosos exteriores, nos apareça de fronte e em tamanho tão gigante como a largura do scope, todo um indizível e inumerável desfilar cósmico de tudo o que terá a ver com o homem, a sua natureza, o mundo e os segredos. Toda esta concentração espacial, toda a mestria com que a vida de Marty vai sendo enquadrada e desvelada – elipses assim tão significantes como sensíveis, na forma como os saltos temporais vão produzindo sentidos e ligações, tão óbvios e inescapáveis como enigmáticos e incompreensíveis – num arco tão aparentemente perfeito como implacavelmente sinuoso e doloroso – o cumulo é Marty a acabar sozinho mas com os “seus” – só mesmo por alguém que acreditava e se interessava totalmente pela capacidade dos homens, da sua humanidade, è o tal lado mítico da crença. No hiato de tempo em que seguimos a entrega do instrutor, passando-se tudo e mais alguma coisa fora dali, guerras mundiais, todos os tipos de guerra, Ford elide tudo isso, todo o possível “espectáculo”, e fica a apontar a sua enorme câmara para aquele ser tão comovente e para tudo o que à sua volta gravita. Do fora só lhe chegam os estilhaços, os “seus” soldados feridos e notícias muito más, por exemplo, mas também luminosidades como a sua família da Irlanda, daí também o porquê de eu achar que naquelas duas horas e pouco que a fita dura se possa vislumbrar o absoluto. Mas obviamente que para se acreditar assim e para se entregar assim, Ford sabia, como nunca ninguém soube, que é preciso capturar tudo o que ele capta com todo o esforço e saber possíveis que isso merece, daí que cada plano, cada composição, cada pormenor, pareçam ter levado uns mil anos a serem erguidos. E, e…já alguma vez se viu cenas de engate como as de Tyrone Power a Maureen O'Hara, a bela?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Paulo Rocha…

….que é tão grande e singular como qualquer outro dos grandes. E faz-me confusão estar a dizer isto, muita confusão, mas o pessoal – sempre com a ânsia da “Grande História” e das modas – parece estar constantemente a esquecer-se disso. Impossível, pois o sangue, o irracional, a loucura e uma fúria indescritível e desmedida que as imagens e sons do PR possuem jamais alguém fará esquecer…

Agora, toca a pôr na rede o “Mudar de vida” e “A Ilha dos Amores”. Só para começo de conversa…
"Os verdes Anos " do Paulo Rocha no KG

...milagre! para a festa ser completa só faltava alguém lá meter o "Xavier" do Mozos...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

INÉDITOS: LOUIS SKORECKI, OS FILMES E UMA CARTA BRANCA

[terça, 26; quarta, 27; quinta, 28 - Com a presença de Louis Skorecki]

Estreamos em Janeiro uma nova rubrica regular na programação da Cinemateca, "Inéditos", de título perfeitamente descritivo: nela tentaremos apresentar mensalmente pelo menos um filme nunca visto em Portugal em salas de cinema ou, quando fizer sentido, que nunca tenha sido visto na Cinemateca.
Costuma-se falar em "chaves de ouro" quando se trata de fechar alguma coisa em beleza. Mas desta vez a "chave de ouro" serve para abrir. Dificilmente começaríamos melhor esta rubrica do que com a descoberta, em presença do autor, dos filmes de Louis Skorecki, em especial dos seus mais célebres títulos, os da série dos CINÉPHILES, que começou por ser um díptico, depois uma trilogia, e finalmente se transformou em tetralogia, a mais aprofundada, mais crítica, mais terna e mais severa abordagem filmada da cinefilia como fenómeno cultural (e psicológico).
Esse mundo, Skorecki conheceu-o bem. Trata-se de um dos últimos grandes nomes daquela geração da crítica de cinema francesa que ainda se banhou nas águas da cinefilia clássica e fundadora, a dos anos 50/60. Contemporâneo e amigo de Serge Daney, um dos seus primeiros trabalhos de monta para os Cahiers du Cinéma (onde escreveu entre o princípio dos anos
60 e o final dos anos 70) foi uma viagem a Hollywood de onde voltaram (ele, que ainda assinava com o pseudónimo Jean-Louis Noames, e Daney) com reportagens e entrevistas feitas a Howard Hawks, Raoul Walsh, Samuel Fuller e outros cineastas americanos, textos e documentos que se lêem hoje como um dos primeiros grandes impulsos para uma "história oral" do cinema clássico americano.
Tal como Daney, também Skorecki se mudou para o Libération no princípio da década de 80, não sem antes deixar publicado nos Cahiers, em 1978, o seu mais célebre e discutido artigo, "Contre la Nouvelle Cinephilie", que fortemente associava a cinefilia à experiência da sala e à coexistência de um determinado grupo de pessoas no mesmo sítio, durante o mesmo tempo e perante o mesmo filme – mais tarde Skorecki ensaiou uma versão filmada deste artigo, que também vamos ver. No Libération Skorecki dedicou-se essencialmente a uma pequena crónica diária sobre filmes encontrados na programação das televisões francesas. Estas pequenas crónicas, muito curtas mas buriladas na perfeição, tornaram-se objecto de um culto que se expandiu (mundialmente, pode-se dizê-lo) a partir do momento em que o "online" deixou o Libération disponível nos quatro cantos da Terra. Num estilo inconfundível que casava a teoria e a emoção, o saber e as idiossincrasias do gosto, a altivez e o sentido de humor, estas crónicas (de que foi publicada, no final dos anos 90, uma compilação em livro, Les Violons ont Toujours Raison) perfazem uma espécie de súmula da crítica (e da poética) de Skorecki, havendo aliás vários
ecos em comum entre elas e os seus filmes. Skorecki saiu do Libération em 2007, na sequência do processo conturbado que o jornal atravessou. Fez disso o assunto (ou o pretexto) do seu último filme, SKORECKI DÉMÉNAGE.
E já que o tínhamos aqui na Cinemateca para mostrar os seus "inéditos", demos-lhe uma "carta branca". Para começar, Hawks e Walsh, dois cineastas da sua especial predilecção (sobre Walsh tem um belíssimo ensaio publicado em livro, Raoul Walsh et Moi). O resto das suas escolhas, e porque o calendário ditou que assim fosse, fica para Fevereiro.

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LES CINÉPHILES 1: LE RETOUR DE JEAN
de Louis Skorecki
com Marie Nester, André Nouhaem, Pierre Léon, Vladimir Léon
França, 1988 - 70 min / legendado electronicamente em português

LES CINÉPHILES 2: ERIC A DISPARU
de Louis Skorecki
com Sébastien Clerger, Noémie Lvovsky, Nathalie Joyeux, Pierre Léon
França, 1988 - 54 min / legendado electronicamente em português

Com estes dois filmes, rodados por ordem inversa da sua numeração, se iniciou aquilo que cerca de vinte anos mais tarde se veio a tornar uma série, ou antes, e nas palavras de Skorecki, uma “saga”, sobre “as baboseiras de uma tribo de cinéfilos, e sobre os seus costumes (poéticos, téoricos, sexuais)”. O elenco foi recrutado entre autênticos “cinéfilos”, frequentadores dedicados e obsessivos das salas de cinema parisienses, uma delas a da Cinemateca Francesa (em cujas imediações, autenticidade “oblige”, alguns planos foram filmados). Com as suas cenas assentes em diálogos (nem todos sobre cinema; muitos sobre os relacionamentos dentro da “tribo”),
formando e desfazendo pares de personagens à medida dos encontros e desencontros, LES CINÉPHILES fala da cinefilia e da disposição (psicológica) para a cinefilia, em seriedade e irrisão, num humor crescentemente percorrido por uma espécie de tristeza. Sem falsas modéstias, Skorecki afirmou que o único outro filme que trata verdadeiramente da cinefilia é o LES SIÈGES DE L’ALCAZAR de Luc Moullet.

Sala Dr. Félix Ribeiro
Ter. [26] 21:30


RIO BRAVO

Rio Bravo
de Howard Hawks
com John Wayne, Dean Martin, Ricky Nelson, Angie Dickinson, Walter Brennan
Estados Unidos, 1959 141 min / legendado em espanhol

Um dos mais famosos westerns de sempre, e a obra-prima de HowardHawks, que o fez em resposta a HIGH NOON de Zinnemann. Um grupo de homens com uma missão a cumprir é o tema geral dos filmes de aventuras de Hawks, neste caso a de manter a ordem numa pequena cidade, e levar a julgamento um assassino. Mas é também, como todos os filmes do realizador, uma fabulosa variação sobre a “guerra dos sexos”, com um fabuloso duelo verbal entre Wayne e Angie Dickinson.

Sala Dr. Félix Ribeiro
Qua. [27] 19:00


LES CINÉPHILES 3: LES RUSES DE FRÉDERIC
de Louis Skorecki
com Julien Naveau, Axelle Ropert, Louis Rostain
França, 2006 - 32 min / legendado electronicamente em português

LE RETOUR DES CINÉPHILES
de Louis Skorecki
com Axelle Ropert, Nathanaëlle Viaux, Sarah Hams
França, 2008 - 52 min / legendado electronicamente em português

CONTRE LA NOUVELLE CINÉPHILIE
de Louis Skorecki
com Xavier Villetaird, Edouard Waintrop
França, 1984 - 70 min / legendado electronicamente em português

Quase vinte anos depois, e com o objectivo de estabelecer uma trilogia para a edição DVD da série dos CINÉPHILES, Louis Skorecki acrescentou um terceiro tomo, LES RUSES DE FRÉDERIC. É um estilo diferente (mais “téorico”) do dos dois primeiros, e muito marcado pelos temas da transmissão e da passagem. Com o que “sobrou” deste terceiro filme e ficou de fora da montagem final concebeu Skorecki um quarto episódio, LE RETOUR DES CINÉPHILES. A sessão fecha com CONTRE LA NOUVELLE CINEPHILIE, que Skorecki descreve como a “demolição” do seu célebre artigo homónimo escrito para os Cahiers du Cinéma em finais dos anos 70. “Alguma coisa de inteligível sobrevive ao desastre? Eu acho que sim”.

Sala Dr. Félix Ribeiro
Qua. [27] 21:30


L’ESCALIER DE LA HAINE
de Louis Skorecki
com Pierre Brody, Thérèse Giraud, Joseph Morder, Louis Skorecki
França, 1982 - 41 min / legendado electronicamente em português

SKORECKI DÉMÉNAGE
de Louis Skorecki e Raphael Girault
com Louis Skorecki, Louis Rostain
França, 2009 - 63 min / legendado electronicamente em português

“O mais pessoal dos meus filmes (e o preferido do meu amigo Daney)”, diz Skorecki de L’ESCALIER DE LA HAINE, espécie de fábula (Skorecki interpreta a personagem de um rato…) sobre um grupo de personagens que habita o mesmo espaço acreditando que os outros não estão lá. Se este é uma fábula, SKORECKI DÉMÉNAGE, último título acrescentado à filmografia skoreckiana, é uma efabulação em torno dos acontecimentos que precipitaram a sua saída do Libération, para onde escrevia desde o princípio da década de 80.

Sala Dr. Félix Ribeiro
Qui. [28] 19:00


LES PIEDS DANS LES NUAGES (ET LA T TE DANS LA LUNE)
de Louis Skorecki
com Laura Matthews de Saint-Phalle, Emmanuel Crimail
França, 1966 - 20 min / legendado electronicamente em português

EUGÉNIE DE FRANVAL
de Louis Skorecki
com Françoise Grimaldi, Cécile Le Bailly, Elisabeth Boland, Louis Skorecki
França, 1974 - 105 min / legendado electronicamente em português

Louis Skorecki descreve EUGÉNIE DE FRANVAL (adaptação de Sade) como o seu filme “mais formalista, o único a ter circulado nas cooperativas de cinema experimental”, assente num conflito entre a banda de imagem e a banda de som. LES PIEDS DANS LES NUAGES foi, “sob a influência do BANDE À PART de Godard”, a sua primeira aventura como realizador de cinema.

Sala Luís de Pina
Qui. [28] 22:00


BAND OF ANGELS
A Escrava
de Raoul Walsh
com Clark Gable, Yvonne de Carlo, Sidney Poitier
Estados Unidos, 1957 125 min / legendado electronicamente em português

BAND OF ANGELS, situado num contexto semelhante ao de GONE WITH THE WIND, conta a história de uma mulher branca que descobre, quando lhe morre o pai, que a mãe era negra. É vendida como escrava a um aventureiro. A escrava e o seu senhor terão de assumir o seu passado para conquistar a liberdade.

Sala Dr. Félix Ribeiro
Sex. [29] 21:30

domingo, 24 de janeiro de 2010




Ángel Díaz’s documentary The Lost Sorrows of Jean Eustache (1997; May 14 at 7 p.m. and May 15 at 9 p.m.) concentrates on Eustache as cinematic thinker and archivist of his own life. Actors read texts written by Eustache, including the following reflection: “The role of the author in cinema should be one of non-intervention.” This sentence reminds us that he belongs to the greatest of film traditions (he cites Griffith, Renoir, Dreyer, and Lang as his models), the one that sees cinema as a matter of placing the camera in front of reality and capturing it ardently, precisely, and without tricks.

sábado, 23 de janeiro de 2010



(...)

Hoje parece-nos precisamente o contrário. My Darling Clementine, no seu assombroso classicismo, é um dos momentos mais altos do mito do Oeste Americano, com o profundo enraizamento dos homens na terra e nos grandes espaços e com a poesia suprema em que o muito complexo emerge, como sempre sucede nas grandes sagas, do mais simples e linear. Evidentemente, o filme que vamos ver nada tem de “desmistificador” e separa-se claramente do chamado “western psicológico” tão em voga na década seguinte. Mas como pedir desmistificação a um homem que acreditava no mito e sobretudo no mito do homem livre, independente e visceralmente íntegro, a que, para sempre, na obra de Ford, o rosto de Fonda – em westerns ou não – ficou ligado?

(...)

Mas, se o filme é um filme sobre Fonda, a sua darling Clementine e o seu odiado Clanton, nenhum dos outros personagens é abandonado ao esquematismo. Victor Mature, que tantos consideraram um “canastrão”, é, como “Doc” Holliday, e, sobretudo por contraposição a Fonda, a criatura de dilacerações e da divisão, homem de muitas imagens frente à imagem una de Fonda. Linda Darnell, em breves apontamentos, é uma das grandes figuras de mulher da história do Oeste americano, tão mítica como os homens que a rodeiam. E a sua oposição a Clementine será tudo menos maniqueísta ou simplista. E nenhum maniqueísmo ou simplismo, mas antes a densidade da suprema poesia, assiste aos múltiplos secundários, tão arquetípicos como renovados e originais: repare-se apenas no fabuloso personagem da não menos fabulosa sequência do “To be or not to be”.

(...)

JOÃO BÉNARD DA COSTA

..........

(o tal western que traz o cheiro das flores do deserto; de facto maior, muito maior, do que o grande ecrã)

Era Lisandro Alonso quem deveria ter realizado “The Road”, ou então José Nascimento. (neste caso dispensaria alguém com celulóide nas veias - Carpenter, por exemplo – e preferiria alguém que mandasse lixar o “cinema”)
E acho que o filme nem é nenhuma excrescência. Excrescência tipo “Children of Men”, digo. Até porque lá dentro – no meio das convenções da decoupage, da narrativa e da música – existem pequenos pedaços atmosféricos bem esgalhados, e que só não ascendem a outros voos pois a máquina industrial não permite que o tempo e a duração se sintam, se façam matéria, se deixem ficar e perder. Liberdade e perdição, é o que falta. A liberdade da perdição.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Pedro Costa (filmes da década)


Tous les films de Danièle Huillet et Jean-Marie Straub

Presque tous les films de Jean-Luc Godard

Va et vient, João César Monteiro, 2003

M/Other, Nobuhiro Suwa, 2000

Platform / In Public, Jia Zhang-ke, 2000/2001

Fengming: chronique d`une femme chinoise, Wang Bing, 2007-2009

Numéro Zéro, Jean Eustache, 1971 (sorti en 2003)


(agora sim, lista correcta, faltava o Bing)

sábado, 16 de janeiro de 2010

Não era preciso dizer nada, mas acho que é preciso dizer que “Tetro” é insuportavelmente “artístico”. “Arte” a mais ou “arte consciente” faz mal e é uma merda. “É o filme de um homem livre” foi o que Rossellini disse quando Chaplin estreou o seu “A King in New York”. Livre, logo de alguém que nada tem que provar a ninguém. Nada. O Coppola desta fase é precisamente o oposto e os seus dois últimos filmes são coisas meio escolares, meio afectadas, que parecem querer provar qualquer coisa de muito importante a muita gente. São balofos e maneiristas de um modo tão pretensioso e aleatorio que não dá para acreditar. A estupefacção continua…

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Manuel Mozos: O que me interessa é que não sinto que fiz alguma falcatrua. É um filme honesto. Ma montagem de “…Quando troveja” podia não ter juntado os blocos e fazer dois filmes diferentes. Um para miúdos, com os duendes, e um mais adulto sobre um palerma que sente dor de corno. Não tenho grandes hipóteses de filmar, se posso juntar dois filmes num, porque não… É óbvio que este não é o pressuposto do filme mas era uma coisa que podia dizer a algumas pessoas.

Miguel Gomes: Mas a honestidade também está na assumpção da série B…

Manuel Mozos: Pois, mas há tipos que não percebem…Os filmes portugueses não têm que ser todos obras-primas e os realizadores uns génios…Eu admito que o César Monteiro e o Pedro Costa têm nos filmes momentos de genialidade. E outros…Mas exigir isso a todo o cinema português faz tão pouco sentido como achar que se devem fazer filmes para os óscares…Isso da série B tem a ver com a minha convicção de que “…Quando troveja” é um filme menor, tal como todos os filmes que fiz. Mas os filmes menores podem ser bons…

Miguel Gomes: Há momentos em que a série B se aproxima da lógica da série Z, uma coisa mais paródica e autoconsciente…

Manuel Mozos: O meu abecedário não é tão extenso…

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Acabado de ver o último Hong Sang-soo, “Jal aljido mothamyeonseo”, certifico-me de uma das coisas que mais me fascina no seu cinema: a convivência – no todo, no plano, nas personagens – entre o cómico e o grave, entre uma espécie de burlesco muito enviesado e um desespero manso prestes a explodir. Ou seja, tanto pode ser que as personagens estejam em domínio da sua vida e das suas acções, como, no instante seguinte, me pareçam absolutamente solitárias, sem rumo ou esperança. Libertários a brincarem no circo da vida ou apenas espectros inscritos nas convulsões do presente. É neste balanço sem rede e equilíbrio que Hong nos instala, é o centro da sua arte. Nem um cineasta mundano, nem um cineasta depressivo, antes alguém que perscruta constantemente o segredo. “Bebemos vinho ou suicidamo-nos”, é o que se diz num Beckett, é coisa de que me vou lembrando nestas imagens. Um mistério.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Hong Sang-soo é um dos que prefere o movimento da vida e as coisas da vida do que o movimento do cinema e as suas “coisas”, daí a passividade absolutamente serena da máquina de filmar, sem qualquer tipo de pretensão de uma “escritura”, de uma marca. Sem génio que não o da delonga e o do olhar. Interessa-se pelos homens, pelas mulheres, pelos ditos e os não ditos, como se come, se bebe, se olha, se fuma, se fode, etc...no fundo, a maneira de lidar com todas estas coisas, que são as que importam. Numa palavra, sentimentos, coisa rarísissimaaaaaa nos dias de hoje (e não falo só de cinema), ao contrário do que muitos julgam. Não se passa nada?

domingo, 10 de janeiro de 2010

Hong Sang-soo, liberdade.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010


«..cultivou a solidão como se cultiva uma flor..»

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Cinquenta e muitos anos depois, Terence Malick voltou à Segunda Guerra Mundial para recordar o famoso ataque a Guadalcanal, uma das mais sangrentas batalhas do Pacífico.
Muitos temas esse filme pode convocar e reservo alguns deles para a última sessão, consagrada ao seu último filme, The New World, mas um dos mais impressionantes é o olhar sobre o medo, quando as tropas americanas, desembarcam na ilha ocupada pelos japoneses. Sempre me pasmei, por maior que seja a doutrinação, por mais firmes que sejam as convicções, como se consegue que milhares de homens avancem para a morte sabendo que a única vitória na guerra é ficar vivo. Steven Spielberg tentou dar-nos isso, de uma maneira espectacular, em Saving Private Ryan (1998) com a espectacular reconstituição do desembarque na Normandia. Mas Malick foi, quanto a mim, mais ao fundo. Não sei dizer melhor que Gavin Smith:

“É já dia claro, quando um imberbe tenente da infantaria – um miúdo – recebe a ordem para atacar a colina, defendida, muito lá em cima, pelas posições japonesas. Faz sinal a dois soldados para avançarem. Eles não se movem. O tenente repete o aceno, com mais ênfase. Os dois GI olham um para o outro e iniciam a subida, a correr. Lá de cima, ouvem-se os primeiros tiros do filme, os primeiros tiros da batalha. Dois rápidos disparos e os dois homens caem mortos. De novo, o silêncio. Uma brisa forte agita os altos arbustos da colina, que se movem como se fossem uma onda. E, nesse preciso momento, o sol, que estava encoberto, destapa-se e brilha com uma luz magnífica, como se fosse um sinal dos céus. O tenente ordena a carga e ele e os seus homens levantam-se e atiram-se para a frente, de sopetão. São todos mortos por rajadas das metralhadoras e morteiros que, ocultos, esperavam por eles. Esta gloriosa epifania de luz resplandecente, com a terrível carnificina que se lhe segue, é um momento de cinema de cortar a respiração e ilustra um dos grandes princípios do filme de Terence Malick The Thin Red Line”.

Na grande tradição poética e dramática ocidental (dos poemas homéricos a Shakespeare) com assinalável frequência, os elementos ditos naturais se associam às dores ou às alegrias dos homens, para metaforicamente as sublinhar. “The sun for sorrow will not show his head”, diz Shakespeare que aconteceu quando Romeu e Julieta morreram na cripta dos Capuletos. O uso do futuro indica uma ordem, na peça proferida pelo pai de Romeu (se não erro) mas assumida por quem quer que comande os astros. As trevas fizeram-se quando Cristo morreu na cruz, ou quando Aquiles foi atingido em Tróia. Neste filme, em que um oficial invoca, em grego original, “a aurora dos róseos dedos” de Homero, a metáfora funciona no mesmo sentido, só que com o sinal inverso. Acumulada a tensão da expectativa temível (o desembarque das tropas nas areias de Guadalcanal), o longo percurso nas planuras, sem que se ouçam mais do que os barulhos dos animais, o sopro do vento e a respiração dos homens (off, a música, a fabulosa música de Zimmer) quando alguns já manifestam a vã esperança de que os japoneses tenham abandonado a ilha depois de dizimado o batalhão que os precedeu (vamos vendo cadáveres putrefactos, por aqui e por ali), pressentimos e pressentem eles (“suspense” invertido) que o momento está a chegar. A luz, a luz tropical, invade tanto tudo que nem reparamos bem que o dia claro é também baço e que as húmidas nuvens cobrem o sol. Até que há (imenso plano geral) esse enorme “arrepio” da verdura, sacudida pelo vento. “The close you are to Caesar, the greater is the fear”. A escuridão adensa-se? Pelo contrário, o sol brilha e torna tudo ainda mais verde (a côr do medo, diz-se) e ainda mais suave. E basta esse sinal de luz – essa mudança de luz – (“let there be light”) – para sabermos, antes, que à visão do paraíso se vai suceder a do inferno, que a morte vai ceifar a vida. É preciso ser-se absolutamente genial para conseguir um tal plano e um tal absoluto.
Sentimos tanto medo, ou eu senti tanto medo, porque nos identificamos com os americanos, com “os bons”? Quando os sobreviventes da chacina chegam ao alto da colina e enfrentam os japoneses, vemos homens tão apavorados como apavorados víramos os brancos no início. Há um americano que conversa com um japonês agonizante. Em voz baixa, num tom neutro, diz ao moribundo coisas horríveis: que ele não tenha esperança em qualquer além que não existe, que tudo o que ele ainda vê e os abutres do céu são a última coisa que ele verá. Obviamente, o japonês não percebe uma palavra do que ele diz. O americano fala para si próprio, fala para nós, espectadores e todo o mundo? Ou julga que algo do seu ódio atinge o suposto interlocutor? Que pensará o japonês enquanto o ouve? Perceberá a agressão, o ódio, ou levado pelo tom de voz, julgará que aquele outro homem o consola à hora da morte. Quando já tivemos tempo para pensar nisto tudo, começa a falar. E é a nossa vez (e a do americano) de nada percebermos. O moribundo responde ao ódio com ódio? Fala de si próprio e das saudades de quem vai deixar? Tenta transmitir uma mensagem? Pede perdão? Nunca saberemos. Mas sabemos que, naquele campo de medo e naquele campo de sangue, não há diálogos, mas só monólogos. Um homem que vai morrer, morto por acaso, e um homem que, por acaso, sobreviveu.
Neste filme se nos diz que há pessoas que falam da imortalidade, mas nenhuma que a tenha visto. Mas neste filme vemos tantos e tantos homens morrerem por causa de uma suposta imortalidade ou individual ou colectiva. E, como disseram os sábios, heróis só os loucos ou os cobardes.
O soldado Witt (James Caviezel) é dos que acredita. O soldado Welsh (Sean Penn) é dos que nada acredita. O soldado Witt responde sempre ao cinismo, real ou verdadeiro, do amigo “I still see a spark in you”, mas é Witt quem morre na fabulosa morte nos pântanos, cercado pelos japoneses. Depois do enterro (a terra branca ou a terra calcinada) Welsh dirige ao túmulo a última provocação: “Where is your spark, now?”.
“Let there be light” “Where is your spark, now?”. Final e fundamentalmente, este filme de Malick é um filme sobre a luz e sobre esse spark. Simplistamente, pode responder-se que o spark está naquela natureza gloriosa, nos animais que a povoam, naquele verde apoteótico ou, exemplo belíssimo, na borboleta azul que aparece depois da morte do soldado, que se desfez com a própria granada. Mas o panteísmo nunca deu resposta a nada. Perguntou.

JOÃO BÉNARD DA COSTA

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

“L'arbre, le maire et la médiathèque” que é, ao contrário do que muito ouvi, igual a todos os outros filmes de Rohmer. Só que em vez de olhar para as angústias de jovens que não conseguem deixar de ir bailar sozinhas, mesmo se comprometidas, ou para jogos de sedução triangulares, elide esse lado romanesco e detêm-se no lado laboral e ideológico de algumas personagens chatinhas, um pouquinho mais pretensiosas e metidas na coisa da politica. O contra-campo dos outros que tais. Daí que não é um filme politico, ou politico na maneira ostensiva tal como se costuma caracterizar certos filmes, os de Moretti, por exemplo, mas que olha para esse mundo. O olhar, que é o que interessa no cinema, é o mesmo de todos os seus filmes.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

«A tradição só faz sentido se estiver viva, tiver força, for criadora.
Ou acaba por se tornar folclore para turistas.»



...acabado de ouvir no “L'arbre, le maire et la médiathèque”, do maior cineasta do mundo. Sem espinhas.

sábado, 2 de janeiro de 2010

MANUEL MOZOS – UM CINEMA CONTRA O ESQUECIMENTO DAS COISAS E DAS PESSOAS

Luís Miguel Oliveira


O mais recente filme de Manuel Mozos, “Ruínas”, percorre Portugal à procura de lugares (edifícios, sobretudo) que dada altura da sua existência deixaram de servir. A lei de Lavoisier postula que na natureza “nada se perde e tudo se transforma”, e Manuel Mozos, neste seu filme, mostra bem como o “mundo natural” e o “mundo cultural” são coisas diferentes. Estes lugares, e estes edifícios, não se “transformaram”, limitaram-se a apodrecer e se se transformaram nalguma coisa foi na sua própria ruína, vaga lembrança de tempos idos e memórias “mineralizadas” das funções para que foram construídos.

A natureza encontrou uma maneira de se regenerar a partir dos seus próprios detritos e obsolescências, e a morte gera sempre alguma espécie de vida. O “mundo cultural”, o mundo dos homens, nunca encontrou essa maneira. Ou encontrou, selectivamente: quando reconhece algum tipo de significado (histórico, estético) às suas ruínas chama-lhes “monumentos” e torna-as lugares de peregrinação. Ou mete-as num museu. Quando não reconhece nada disso abandona-as, faz por esquecê-las até que a evidência material da sua presença se torne demasiado embaraçosa, ou um empecilho no caminho de novas construções. As primeiras imagens de “Ruínas” mostram a demolição controlada dos edifícios que, no empreendimento turístico de Troia, ficaram algumas décadas a testemunhar o interrompido “sonho” da Torralta. E de certa maneira são as imagens mais angustiantes de todo o filme: é como se a câmara de Manuel Mozos tivesse chegado demasiado tarde para ver (e ouvir) aqueles prédios, apenas a tempo de testemunhar a sua destruição, rápida, instantânea e irremediável, ad nihilum.

“Ruínas” é o filme de Manuel Mozos mais explicitamente marcado por esta aflição pelo inútil e pelo rejeitado, pelas coisas que vão desaparecer ou que já desapareceram. Uma aflição que não tem correlação com a “qualidade” (estética, ou em termos de relevância histórica) do que se perde. Aliás, essa aflição é tanto maior quanto menos essa “qualidade” for evidente. Um dos outros exemplos do trabalho documental de Mozos, e dalguma maneira não especialmente rebuscada um filme próximo de “Ruínas”, é uma pequena obra, feita por encomenda da Cinemateca Portuguesa, chamada “Censura: Alguns Cortes” (1999). A ideia era aproveitar “restos”: conceber uma montagem com os pedaços de filmes que a censura foi cortando durante as décadas em que esteve em vigor, e que depois ficaram, perfeitas “ruínas”, esquecidos dentro de latas guardadas no arquivo da Cinemateca. É um filme que gera no espectador uma emoção muito particular, que não é motivada nem pela “qualidade” nem pela “relevância” daquele material (na maior parte, fragmentos anódinos de filmes anódinos), e se sobrepõe mesmo à dimensão historicamente significativa do filme: uma bizarra e difusa sensação de perda, que se tem alguma origem nostálgica (duplo sinal de um “mundo passado”: os filmes e, através da acção da censura, o modo como eles eram vistos), vem com muito mais força do contacto com todas aquelas evidências de rejeição condenadas ao esquecimento. “Censura” é um filme sobre isto: sobre o que foi rejeitado, sobre o que ficou esquecido.

Esta angústia é um dos traços principais do cinema de Manuel Mozos, e se comecei por ir buscá-la a dois exemplos documentais é para melhor frisar a que ponto ela ensopa também o seu cinema de ficção. Para além das características e do tipo de trabalho implicado por cada género, são mais as continuidades do que as descontinuidades – mesmo em filmes mais convencionalmente concebidos com os documentários com José Cardoso Pires e Aldina Duarte isso se verifica, às vezes como um pequeno “relâmpago”, um “flash” que traz um luz nova (já em “Cinema Português?... – Diálogos com João Bénard da Costa”, filme sobre este objecto historicamente tão frágil, tão “esquecido” e de certa maneira tão “rejeitado” que é o cinema português, a ideia está lá toda, inerente ao assunto). Não é o extraordinário que seduz Manuel Mozos, é o comum, o próximo, o corriqueiro, o imperfeito. Aquilo que luta contra o esquecimento. Como as suas personagens de ficção. O António de “…Quando Troveja”, por exemplo, luta contra a sua aniquilação sentimental, contra o seu desaparecimento aos olhos da ex-namorada, a angústia da extinção é dada como um trauma. O protagonista de “Xavier” tenta existir, viver, não ser esmagado por uma cidade demasiado grande e demasiado desordenada. A miúda de “Quatro Copas” move mundos e fundos para que alguma coisa (o casamento do pai e da madrasta) não deixe de ser o que era.

Mas este, justamente, é também o desafio que as personagens de Manuel Mozos colocam ao espectador: “eu não quero que tu me esqueças”. São personagens que, por norma, nada têm de extraordinário, e quase nunca têm qualquer característica “saliente”. O desafio, arriscado, mas repetido a cada filme, é tornarem-se “extraordinárias” (e “inesquecíveis”) pela maneira como se impõem ao espectador. Dos miúdos de “Um Passo, Outro Passo e Depois…” à família em implosão de “Quatro Copas”, os filmes de ficção de Manuel Mozos fundem sempre a narrativa com o próprio processo de definição e conhecimento das suas personagens. Mesmo em “Ruínas”, com o seus relatos em “off” (os Macavengos…) a povoarem todas aquelas paisagens com a expressão concreta de uma humanidade que entretanto partiu, as coisas se passam assim. De certa maneira, cada personagem, definida nos seus pormenores e nos seus hábitos, transforma-se na sua própria narrativa. Em “Quatro Copas” isto é evidente, de tal maneira os caminhos das quatro personagens centrais se vai cruzando e afastando, cada uma delas lutando pela atenção das outras, pela atenção do filme e pela atenção do espectador. O desafio é arriscado, e para o próprio Mozos em primeiro lugar, porque pressupõe uma espécie de apagamento voluntário do realizador, por forma a dar a ilusão de que, de facto, as personagens comandam o filme. É “clássico” – e mais europeu, sobretudo italiano, do que americano – mas temperado pela sofisticação e pela subtileza (e pela liberdade) do cinema novo português (a montagem, por exemplo: sendo Mozos montador de formação, a montagem não é nos seus filmes uma simples “técnica” que mais ou menos virtuosamente se exibe, antes o princípio que estrutura o desenho e o desenvolvimento da narrativa, como “Xavier”, ou as elipses de “..Quando Troveja”, ou ainda a “divisão” das “Quatro Copas”, bem demonstram).

O cinema de Mozos não rompe, cava o seu lugar dentro de uma tradição (“Xavier” tem traços em comum evidentes, e deliberados, com os “Verdes Anos” de Paulo Rocha), que tem um olho no “classicismo” e outro na “modernidade”. E habita esse lugar, um lugar onde o estilo é indissociável de uma ética, os dois influenciando-se mutuamente, de maneira única no cinema português contemporâneo.