segunda-feira, 11 de abril de 2011



"Wolfram", de Rodolfo Pimenta e Joana Torgal é, arrisco dizer, o único filme contemporâneo a reter no Panorama – 5º Mostra do Documentário Português. O único grande filme, com certeza, dos que não caem na armadilha do facilitismo e do informe, dos que dispensam os discursos justificativos e caucionais dos seus autores porque protegidos pela violência das formas, verdadeira questão. Aquele que perdurará à implacável selecção do tempo. Tempo, esse magnifico escultor como este filme é um filme que se esculpe. Cineastas do tudo ou nada, cineastas escultores. Com poucos ou nenhuns meios além do absolutamente essencial, a câmara e o tripé, obviamente, sem luz artificial que não a dos mineiros, adivinha-se, "Wolfram" surge-me como um objecto genuinamente pobre que vai recuperar essa quimera perdida da ontologia pura da máquina que filma sobre a qual Jacques Rivette tão obsessivamente escreveu, ao mesmo tempo que injecta uma força que tanto tem a ver com esse lado primeiro e selvagem como com algo abalador que parece vir de lado nenhum e que só em pacto com o visceral mundo que capta assim se moldou.

Minas da panasqueira, foi nesse lugar desmesurado e tão distante dos grandes centros de cinema e de vida das modas que os dois cineastas artesãos se instalaram e tomaram conta do campo, literalmente e em todos os sentidos. Gesto essencial essa familiaridade, esse hábito aos espaços, ao tempo, costumes, clima, máquinas, gentes.

"Wolfram" do título é o que daquelas minas se extrai e o filme antes de descer às trevas e às altas temperaturas começa do lado da ciência, ainda cá em cima, frio e branco e azulado, com os gestos rápidos e clínicos das mãos que o depuram, as balanças que o pesam, provetas, batas, enfim, todo um manancial de finalização e de controle que seguidamente será completamente posto em pó.

Muito seguidamente, porque logo essa pequena, humilde e tão potente câmara vai descer lá para baixo, muito muito baixo, e travar um combate brutal e mano a mano com a espessa matéria que surge como centro de tudo, matéria forte, dura, orgânica, que resiste e se estilhaça e que é colhida com a humildade do trabalho e o dom da paciência, combate com essas máquinas que escavam sem dó nem piedade e que produzem choques de vibração violentíssima só comparáveis a essa outra máquina já referida e a esse olhar que tudo enfrenta. Combate ainda com a terra como coisa original, combate com muitas coisas mas finalmente com a escuridão. Escuridão feita coisa concreta, palpável, labirinto de perdição e de sustos – perfeita imagem disto são os travellings sobre os carrinhos que esse tal olhar e luta arriscam e que surgem com inaudita urgência. Planos não subjectivos, importa dizer para que não se faça confusões, pois trata-se então de mais uma batalha em que a distância e a imersão só assim podem ser – objectivas, assustadoramente próximas das coisas filmadas e logo do caos, em cima, coladas, num frente-a-frente sem receio algum que tanto põe a nu o processo e a feitura do filme – só nos grandes isto acontece – como nos faz duvidar, como foi possível?  
É preciso insistir e ver bem esses travellings, a objectiva e as lentes a apanharem tudo o que lhes aparece pela frente, a não terem medo do escuro e simultaneamente a tremerem e a vibrarem com a eminência do desconhecido...até ao fundo, fundo do mundo, fundo de tudo...infernos...sem qualquer tipo de virtuosismo ou falso estilo que todo a empreitada recusa liminarmente.

Muito em cima, cerrado, a queimar – e contaram-me que certas lentes foram mesmo queimadas por causa da ousadia – mas logo com a distância, esse grande acto ético e revelador, que se sente e se percepciona – num filme de sensações e percepções inigualáveis – justo, preciso, sem margem para duvidas. Só em cima de tais coisas para se sentirem essas coisas, portentosa técnica de apreensão. Distância bressoniana, assim mesmo, sem provocações. Cinematógrafo iniciático, cinematógrafo bresson. Tudo no enquadramento é atravessado como lâmina ou aqui fogo que rasga, deixa rastro inapagavél, violenta, arde, pasma, fura...assim indiferente à ordem e leis do resto e portanto da ordem do sagrado, essa inexplicável graça. Bressoniano também na magnifica e terrível banda sonora, obsessiva no seu impacto feito do que lá está e no que é provocado pela intervenção do homem nessa natureza - também Straubiano, portanto – sinfonia das trevas mantida em paroxismo, cadência intempestiva e incontrolavelmente modelada como a banda da imagem, espécie de corrida lado a lado com o que acontece inesperadamente a cada momento, que não dispensa a importância e a angustia do silêncio, lição do mestre francês – o silêncio inventou-se quando o som surgiu.
Banda sonora feita do mesmo que a banda imagem: pedras, cascalho, gravilha, martelos, básculas, motores e uma infinitude de invasões tais silêncios adentro.
Em "Wolfram" o som só treme tanto como a terra treme porque nesses instantes dos inícios ou dos fins ou dos espaços vazios ou suspensos dos meios está presente, pressentido ou num contra-campo que de tanto o ser já só é campo e consciência, de um fim a qualquer instante...sem metáforas, da consciência da tragédia.
 
Peça permeável onde se notam as peles, as saliências e as rugosidades do que nos explode no ecrã e no rosto, as veias, ossos e sangue e vísceras, o suor...porque na inteligência com que os corpos e os homens são quase sempre puxados para o espaço of do quadro, para nos dar a experienciar a potência e a vida do que está em causa e logo para nos pôr defronte ao perigo do meio e do trabalho e à sua consequente fatalidade, tudo é tratado e visto e tem o peso incomparável do corpo humano e dessa estrutura única e tão representativa do que pode ser o cinema como coisa total. Um corpo.

Peça de temperaturas, frios e calores elevados, arrepios na espinha e libertações concentracionárias...cheiros, o etéreo e o higienizado inicial para a pressão e a asfixia interior das minas, essa poeira que as narinas ataca..."Wolfram" é no sentido mais directo e físico um filme de câmara porque só por ela e pela sua singularidade, técnica, capacidade de lidar e transcender o real, capacidade de luta, tudo se torna tão bruto, frontal...em primeiro grau.

Como as cores que só longinquamente se deixam ver, tantas das vezes volvidas pura pintura abstracta, coisa rara, pedra preciosa – vai-se tão junto do suposto real que este se diluí noutra coisa. À abstracção só se chega com pulso rijo e leveza ao mesmo tempo, libertação, um pouco de loucura e muito conhecimento das coisas, sem medo de as destruir e as pôr em causa.

João Bénard da Costa escreveu acerca do cinema de Pedro Costa que "o negro é uma cor" e tudo neste filme tende inevitavelmente para aí, esses escurrissimos vermelhos esses escurissimos amarelos, esse nublado que cerca e perfura toda a paleta de cores daqueles lugares, cores fundidas a negro e no negro, negros puros.

Falei em sinfonia, falo em orquestração, nada disto seria assim se os maestros não conduzissem e ordenassem deste modo sábio os elementos recolhidos ao real, forte e delicada batuta que não envereda nas experiências, teorias e gélida ciência de Eisenstein ou de todo o seu legado, essas ditas vanguardas suas contemporâneas ou posteriores que tem sempre algo a provar, mais do lado de Vertov ou do já referido Bresson, ou seja, há que insuflar de coração e de divino aquilo que tende para o maquínico. "Wolfram" tem o fulgor a respiração de uma liturgia.
 
O filme vai sair lá de dentro - depois daquele momento em que o diafragma se fecha ao máximo e o escuro e a cerração são absolutas - já ia saindo por aquelas fitas rolantes, mas ali era só fugaz momento de respiração para não permitir o abafamento, vai sair para manter certos limites vitais...esse abismo buraco negro quase suicida da mise-en-scéne, para um apaziguamento dialéctico, complexo, ambíguo, feito de consciência e memória. Do nocturno interior para o exterior velado, dos flashes luminosos que fulminam e violam o negrume para o alinhamento das casas e o bailado assombroso e assombrado do verde deslavado das árvores, daquela convulsão industrial e terrena das profundezas para a serenidade e para uma paz ameaçada ou em suspenso que o irromper da música final dos mineiros anuncia, dessa tremenda destruição e refracção que alastra pelo todo até a um vislumbre de uma união final dos elementos.

"Wolfram" é simultaneamente um documento arrancado a ferros, um mergulho perigoso e aventureiro num mundo de acesso improvável quase como improvável na lua se filmar, um comovente tributo a um lugar, homens e mulheres que sofreram e que ali deram a vida - um filme para eles. Concreto e fantasmático, luzes sombras e nada, desfile de monstros e suave e tremendo irromper dos mistérios cravados nessas opacidades. Acto de fé. Promessa perdida. Puro cinema. Vida.