quinta-feira, 28 de julho de 2011



Queen Christina, Rouben Mamoulian, 1933


Começa em tragédia e em tragédia acaba.

No entretanto...

Um hiato, um sonho. Como um sonho. Como naquele momento perfeito à Nicholas Ray, paz segundos, uma eternidade, assim: ela a rainha que na mentira descobriu o fogo do amor, de homem para se tornar mulher, finalmente mulher de corpo e alma inteiras. Na perfeição beijou, roçou-se, apalpou e olhou de olhos bem abertos tudo o que a rodeava para não mais esquecer As poses, os movimentos, a volúpia.. A neve lá fora e a luz mais do que perfeita ténue a banhar a iluminar tudo, hallo da ordem do sagrado. Testemunha e cúmplice Nesse dia chegou ao céu, nesse dia chegou-se aos infernos.

O que era pose hierática, firme, gélida vai-se tornar o seu contrário.

Mamoulian não dá tréguas e dá dádivas. Os poderosos, os dissimulados, o povo, o resto. Enquadramentos régua e esquadro cortantes, composições que sangram. Movimentos ímpetos de pura fisicalidade à conta de tamanha tenacidade. Cavalgadas walsh, cavalgadas tão orgásticas. Corredores fantasmagóricos dessa luz que revela os espectros. Trono e cabeça caída contra a espada e a parede, tão triste e desesperada. Luz da fatalidade.
Os grandes, aos grandes a graça do grande plano proibido pelo hiato. Aos grandes a candura das coisas raras, essa aura impronunciável.

Mamoulian frio analista dos mecanismos do poder: plano sequência, quadrado inflexível, escalas. Mamoulian intimista, pequeno e secreto: o mais-do-que-grande-plano para lhe perder a terminologia e se deixar perder e encontrar pelos encantos do rosto. Talvez o cinema tenha sido inventado para registar o que de maior existe, o rosto que detém o olhar logo o estado interior. E aí, nesse gesto essa pulsão, descola-se da regra e volta-se ao cinema coisa ontológica dos inícios e dos fins. Rosto adentro, penetração finalmente. Como quando, já falei nisso, a menina ou amazona que se quis tornar menino ou cavaleiro para ter um pouco de paz e de liberdade e..."Provavelmente, quanto mais longe de casa, mais próximo da verdade." Uma e a mesma coisa.

Cineasta esteta, ascético, amador.

Tanta beleza, obra de tanta beleza...como lá para o final, os barcos de papelão com as bandeiras ao vento, as águas que brilham de faz de conta e de lengalenga, todo o imaginário dos cromos de criança a voltar de modo sereno e incandescente. Tanta beleza porque correlativa aos sentimentos, ao amor, aos ódios, às raivas e às angústias - a modelação ideal, a distância reveladora.

Nesse hiato, contínuo, em que a rainha tornada adulta e velha à força toda redescobre os traços, os desenhos, os esconderijos e as florestas e quartos da infância e com isso o cinema também a esse estado regressa inocentemente, a implacabilidade do desejo e do coração que move montanhas e ultrapassa secos desertos para ir até ao seus limites, esse abismo...redescobre como não enganar os bons sentimentos. A Rainha é bela na felicidade cristalina daquela plenitude, fica desolada e imensamente frágil na impassibilidade da dúvida e mesmo assim é sempre bela porque protegida e formada pelo seu eu. A mais jovem, eternamente jovem daquele universo.

Castelos abandonados, ouro rejeitado.

Entrega-se à vida e ao seu príncipe que não o é para os outros, o que a foi resgatar aos cimos impenetráveis.

...somos pó e em pó nos havemos de tornar. A morte não pode tudo, nunca. Jamais. E a Rainha vai-se lembrar das promessas e se entregar à vida – "devemos viver pelos mortos?" tinha ela perguntado certa vez – para como na profundeza e convicção do olhar final sobre os mares e sobre o que não se define ir em frente, respeitar e aceitar o calor do sangue que escancarou horizontes. Sem olhar para trás. Sem pedir desculpas. Contra-campo, fim.

Carne e osso.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

Há um mal-entendido sobre o cinema. Digo: no coração mesmo da elite que faz profissão de elaborar ou de compreender a arte. Uma extrema confusão preside seus julgamentos e seus trabalhos. Uma falta de abertura inclina uns a considerar o cinema como um divertimento menor que abandonamos rapidamente para retornar às coisas sérias, tais como a literatura. Uma falha de exigência incita outros a povoar seu panteão em cinqüenta anos de uma centena de gênios, e a descobrir uma obra importante por semana. Estes são os mais perigosos, pois a espécie dos primeiros se apagaria por si mesma sob o peso do tempo e da evidência, caso ela não se achasse fortificada pela parca seriedade dos segundos. E dentre esses últimos a discórdia não é menos viva. Não tendo idéia do que buscam, como eles persuadiriam alguém a amar o cinema?



Prova de que se hoje em dia por acaso existisse algo próximo do que se chamou crítica de cinema - "profissão de elaborar ou de compreender a arte" - esses tais não serviriam nem para limpar as fossas dos realmente grandes - Renoir, Langlois, Daney, Skorecki, Biette, Monteiro, Bénard, etc. - basta ver o ípsilon desta semana, páginas e páginas de publicidade a Vila do Conde, páginas de publicidade de cinema, génios e mais génios, contabilistas e gestores ( "80 por cento gestão, dez por cento direito e dez por cento realização" - quem diz isto tem é que se lixar), herdeiros de scorsese e cassavetes, Bresson e Buñuel citados ao vento...promoção e pose, venda de bilhetes. Por isso dá para pensar que essa mediocridade das imagens nem é que tem a culpa maior do cinema estar todo fodido – cada um faz como sabe e diz o que quiser, por mais estúpido, e é muito, que seja - o pior são os tais jornalistas que abrindo as aspas das citações fazem as ligações ainda com mais excitação, leviandade e ignorância de uma arte tão incomensurável - o que uma câmara pode captar continua a ser incomensurável - e que tudo prometia, para ser reduzida a um anedotário de rótulos, conivências, palmadinhas nas costas, belas familias...essa aceitação do cinema como espéctaculo de massas e de comunicação. Linguagens e estruturas. Sinopses e profissionalismo. 


 « Le cinéma n'est pas une technique d'exposition des images, c'est un "art de montrer". Et montrer est un geste, un geste qui oblige à voir, à regarder. Sans ce geste, il n'y a que de l'imagerie. Mais si quelque chose a été montré, "il faut" que quelqu'un accuse réception.» S.D

quinta-feira, 7 de julho de 2011