quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Homenagem - Leos Carax

Leos Carax é um cineasta nato. Um realizador de talento incomparável, capaz de arriscar tudo para alcançar os seus objectivos artísticos.

As quatro longas-metragens que realizou desde a sua estreia são obras exemplares, que demonstram sem ambiguidades uma personalidade cinematográfica singular. Um visão plena de sentido poético e que alimenta complexas e atormentadas representações do amor.
Com apenas 24 anos realizou “Boy Meets Girl”, inesquecível longa-metragem de estreia, premiada no Festival de Cannes. Dois anos depois, “Má Raça”, que reuniu pela primeira vez o par Juliette Binoche e Denis Lavant, garantiu a Leos Carax o Prémio Louis Delluc.
O seu filme seguinte, “Os Amantes da Ponte Nova” (1991), acabou por definir o seu percurso posterior de forma dramática. Assombrado por uma rodagem problemática, e por uma carreira comercial desapontante, o filme afastou Leos Carax das longas-metragens durante 8 anos.
O sombrio e polémico “Pola X”, que Carax apresentou no Festival de Cannes de 1999, marcou o regresso ao abrasivo universo do cineasta francês, num filme protagonizado por Guillaume Depardieu e Catherine Deneuve.
Mais de dez anos depois, o realizador não voltou a assinar nenhuma longa-metragem, tendo apenas dirigido o segmento “Merde” no filme “Tóquio!”, em colaboração com Michel Gondry e Joon-Ho Bong.
Uma ausência decerto difícil para quem já afirmou: “quando tenho uma câmara sei que estou no meu país, na minha ilha”.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

FIZESTE BEM EM PARTIR,
ARTHUR RIMBAUD!

Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Teus
dezoito anos refratários à amizade, à malevolência, à
bobeira dos poetas de Paris,
assim como ao zunzum de abelha estéril de tua
família ardenesa um pouco doída, fizeste bem
espalhá-los aos quatro ventos, em jogá-los sob a
lâmina de sua guilhotina precoce. Tiveste razão
em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os
botequins, os mija-liras, pelo inferno das feras,
pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos
simples.

Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta
bala de canhão que explode seu alvo, sim, é isso
mesmo a vida de um homem! Não se pode,
indefinidamente, saindo da infância, estrangular
seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de
lugar, sua lava percorre o grande vazio do mundo
levando virtudes que cantam em suas feridas.

Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Ainda há
quem creia, sem provas, que contigo a felicidade
é possível.

René Char, "Fureur et Mystère"

domingo, 18 de setembro de 2011




"Wild Oranges", 1924

Um homem que por que razões desconhecidas perdeu a sua amada, se isolou e tornou azedo e desacreditado, se perdeu em altos mares e junto a eles encontrou sem logo saber e sem aviso prévio, a emancipação de uma via-sacra.

"Wild Oranjes" pertence à assombrada categoria das obras – terríveis. Como "Nosferatu" ou praticamente cada Murnau, como "Greed", como "Psicho" ou os "Mabuse". Ainda as trevas e a temeridade do Franju de "Judex" ou " Les yeux sans visage". Pouco depois Vidor entraria por tais caminhos com "The Crowd". A saber: a danação dos homens, nada menos. Como a imagem inclassificável dos olhos do cão sedento e raivoso que orquestra os acontecimentos e avança fulminante pela escuridão da noite cerrada a fim de devorar a criança-monstro que ensombra o nascimento do amor e a reabilitação que por ali se dá. Que devolve tal criatura ao inferno de onde se parece ter evadido. O resto, e que resto, são símbolos e premonições, corujas nos troncos e galinhas depenadas, animais híbridos e noites amaldiçoadas e densas e demoníacas, superstições e feitiços paralisantes, fantasmagoria catártica que aponta caminhos. Almas perdidas e almas no passado estagnadas que só saltando os abismos poderão atingir a paz. Jacques Tourneur passou por aqui para fazer depois o que fez.

"Life is so dreadfully in the dark. There are maps to guide us to strange places, but none for souls. John Woolfolk had entrustedhis soul to Millie"

Último intertítulo.


Grande peça de cinema de acção, grande peça de cinema de suspense. Inadjetivável todo dramático. Da chegada inicial de Frank Mayo à ilha, onde os pontos de vista se multiplicam e se revelam, passando pelo jogo do gato e do rato posterior até à grande pancadaria final – onde Capenter decerto foi buscar os socos e os pontapés de "They Live" – na qual se sentem o peso e a gravidade da carne e o impacto dos golpes desferidos, o desgaste do confronto, os suores e os vermelhos de raiva que ardem e a transpiração de tudo isso que vibra pelo quadro.

King vidor, inventor do "action film" como depois Ford assim elevou momentos em "The Prisoner of Shark Island" ou "Drums Along the Mohawk". Depois, cópias de cópias.
Imbatível suspense, insisto: os segredos e irradiações por detrás das portas, os planos apertados dos passos ou dos olhares e rostos, o pressentimento constante da ameaça, os ritmos e contra-ritmos, a flutuação e o desfocamento daquela realidade, o afunilamento e a urgência.
E é o génio da decupagem, da afinação e inteligência da montagem, da precisão lancinante das tomadas de vista e do mandar lixar todos os códigos ou convenções que ainda pouco tinham sido inventadas: Ser tão exacto como anárquico.
"Quando o alicerce de todas as coisas enfraquece, é natural que a nossa busca se faça de olhar fixo e queiramos a simplicidade."

Bataille

obrigado, Mário

sábado, 17 de setembro de 2011


"Street Scene", 1931

- Muito tempo antes de Howard Hawks ter feito "Rio Bravo" ou de John Carpenter ou Johnnie To terem ido por caminhos análogos, já king Vidor dominava uma rua – ou se quisermos, um passeio – as entradas e as saídas e as janelas de um prédio e pouco mais do que circundava esse pequeno espaço de uma forma ditatorial.

 - Naquele cenário mínimo, despojado e barroco, um cosmos de diferenças e disparidades, de credos, ideologias, vontades e letargias, excitações e hermetismos, ânsias de novos ares e de recomeços, tentações da fama, luxúrias e prazeres carnais recalcados e libertados à socapa, tudo adquirido como acto extraordinário ou quebrador ou coisa eterna. Vinganças terríveis e dádivas ternurentas.

 - Também bem antes das altas temperaturas e das altas tensões da Nova Iorque de Spike Lee e dos seus seguidores, já a fornalha de Vidor carburava de uma efervescência e chama perto do desmaio. Antes das polifonias narrativas e de personagens de Robert Altman ou de Paul Thomas Anderson, ou das cacofonias de imagens/sons dos mesmos senhores, já aqui a desmultiplicação e os embates, as rotinas e acasos, bem como a subtileza e polimento formal e labiríntico era absurda de tão apurada.

 - Teatro, sem dúvida, as lições e a admiração a Griffith, essa frontalidade e limpeza dos palcos que entram pela câmara adentro e da câmara que entra pelos palcos. Mas como Stroheim ou o mesmo Grifith, uma pulsão, um risco, uma ferocidade e uma violência na captação e apreensão do movimento das coisas físicas e das outras, assim como uma criação atmosférica palpável e sensorial que imprime na película e posterior percepção uma capacidade próxima dos medos e dos terrores que hoje em dia está completamente ausente dos interesses deste ofício. Terror da realidade em bruto e do aleatório da vida. ("Quando Stroheim mostra uma rua, a rua existe. Quando o personagem atravessa uma rua, é um terror, sente-se que é uma rua, o trânsito e o ser humano na rua" Jean-Marie Straub). Arrepiante e exemplificativo aquele plano em que um miúdo atravessa a rua de patins e um carro tem que se desviar à tabela. Sente-se o coração nas mãos como o que sabemos sentir da proximidade desse perigo que algum dia possamos ter vislumbrado. Ou seja: não só ilusão puramente cinematográfica, mas já outra coisa para além disso, que fere. Ou as angulações laterais das constantes idas e vindas das pessoas, bem como os picados e os contrapicados das conversas entre os passeios e as janelas – uma vitalidade e uma sensação de realismo dessa dramaturgia que é arte findada. Coisas destas, só no cinema.

 - A transcendência e a suavidade de Borzage e a ameaça de Stroheim. Impronunciável combinação.

 - A roda final das crianças em brincadeiras: a vida contínua como num Ozu e promete futuros episódios imprevisíveis.

VERSOS ÍNTIMOS


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos

sexta-feira, 16 de setembro de 2011




Bird of Paradise, 1932

"Desde o genérico, que nos são dadas a dinâmica e a respiração de "Moonfleet". Surge uma onda num penhasco, enrola-se e depois desfaz-se contra as rochas, e dela apenas resta um turbilhão de espuma. No segundo, terceiro, quarto planos, etc, as ondas sucedem-se, sobrepõem-se, plenas de uma violência contida, por se desfazerem, enfim, com furor. Por que razões estes planos do mar e das ondas são os mais belos alguma vez filmados? Mistério inexplicável da arte, excepto se admitirmos que o olhar do poeta pode penetrar o mundo tão intensamente que torna magnífico tudo o que vê. A poesia reside na verdade e no conhecimento."

Jean Douchet, Cahiers du Cinema, Maio 1960

"O cinema tenta agarrar, no instante, os instantes da verdade. É assim que um filme se faz. O resto é só uma questão de olhar sobre a vida e as pessoas"

Nicholas Ray


Temos aqui a história mais clássica e mais simples, a de um homem que descobre o que há muito desejava ou não imaginava que existia, o ser feito mulher de corpo inteiro que vale uma vida. Depois é o incompreensível e o inaceitável e o absurdo das tradições e das crenças e do mal indissociável ao homem que vai orquestrar e precipitar a tragédia. Mas o que seria política no puro sentido ou exotismo de pacotilha para os medíocres é, com King Vidor, um apelo e um poema ao encontro do mais insondável e estarrecedor telurismo com a força aguda do amor. Sem separações nem cortes. Uno e orgânico.

Como "Tabu", como "The Hurricane", "Bird of Paradise" pode ser o filme mais belo do mundo, aquele em que todos os elementos fílmicos e da natureza surgem no cúmulo da pureza, cristalinos, feitos graça.

O modo como a máquina que filma se põe em perigo logo de início nas águas e o modo impassível como daí para a frente agarra e contempla os milagres da criação. O segredo disto não está no mundo em que Vidor se planta, ou não estará completamente, sim na forma como se vê esse mundo e como dele se extrai a poesia e se lhe reconhece e devolve o génio. Como se escolhe o ângulo onde a luz incide em esplendor como em mais nenhum dos ângulos bem como a distância de onde o magnânimo do que está defronte da lente surge no mais alto grau da sua imponência e beleza. Como os grandes pintores paisagísticos – verdadeiramente paisagísticos – ou como os grandes pintores da ardência e fogosidade, que para o caso é a mesma coisa, ou como Murnau (Cinema+Pintura / Cinema, Pintura), a questão está em apanhar e captar a vida inerente e interior de todas as coisas, de cada detalhe – um charco de água ou uma lagoa, a ponta de um ramo húmido ou uma lua cheia que se volve meia – e não a simples ilustração bilhete-postal ou moldura do que tão agradável à vista é. Como eles, os grandes, conseguem isso? Nunca saberei.

Se em "The Champ", imediatamente anterior, tudo reluzia mesmo no negrume, aqui temos o mal em abstracto e assustador e a constatação que tantas vezes só escondidos para a felicidade se encontrar.

E o sublime é atingido a cada momento sem a introdução de sinais ou de aparências perto da obscenidade ou do mau gosto, sem recorrências ou toques filosóficos, sublime como máximo de emoção.

Realismo físico? Estilização poética? Realismo poético? Podem-me dar mil razões que vou continuar a duvidar do que isto seja.

Momentos de arrebatamento:

- A chegada dos intrusos à ilha, a contraluz dos nativos em observação e a felicidade com que estes descobrem os brinquedos oferecidos.

- Joel McCrea a roubar Dolores del Rio (para sempre a índia de "The Fugitive" de John Ford) aos reis e aos prometidos, na escuridão total, seta que rasga a noite rio fora.

- Os bailados sedutores e carnais dos rituais da tribo e os bailados dos barcos. Ainda o outro bailado no fundo dos mares entre ele e ela, suprema elegância dos movimentos. Um dos topos do erotismo segundo Vidor.

- Já na ilha de todas as promessas, as subidas pelos rios e cataratas acima, onde se banham e provam da água, e o momento em que fazem projectos de construir casa e a chuva irrompe – mais uma vez, só a visão do poeta pode assim animar o que julgaríamos certo e outro patamar atingir. Uma coisa que é já outra coisa.

- A longa subida de McCrea aos cocos.

- Cataratas que brotam água que é esperma como esperma parece brotar dos cocos que eles devoram antes ou depois de se devorarem dentro de campo ou nas misteriosas elipses. Como em "Ruby Gentry", a vontade e o suor estão inundados nos corpos e o acto consumado surge metaforicamente, ou se quisermos literalmente, no meio envolvente e nos seus órgãos Tudo é ânsia.

- Os rios de lava já muito negros e espessos que o descobrem sozinho e subitamente impotente. Contraponto: a explosão vulcânica furiosa. Pendurado numa corda sobre o precipício em chamas, qual Tarzan, portentoso símbolo fálico.

- As subidas aos topos das montanhas e a imensidão à Friedrich, o pintor, que os engole.

- Os dois cravados na cruz da punição, e del Rio a agradecer-lhe por ele a ter ensinado a amar.

- As brincadeiras aquáticas de McCrea com a tartaruga de proporções fora do normal. Crianças entre monstros de soslaio.

- Um fala uma língua, o outro fala outra absolutamente diferente, e a invenção de uma nova língua que se canta e harmoniza e que assim só a eles pertence.

- Na caça aos peixes voadores ela puxa-lhe pelo barco, ele solta uns sons da guitarra, ela deita-o num trono de rosas e o resto é mais do que sabido...

- As sequências a dois na ilha-paraíso onde rigorosamente nada se passa, a não ser uma esfuziante alegria, pulos, cambalhotas, sorrisos, foguetes fogos-de-artifício, beijos e carinhos sem nome. Reflexos, brilhos, transparências. Ou seja, tudo se passa e essa é aquela narrativa, ou, como diriam os grandes "especialistas", a sua estrutura narrativa.

- Como em outros filmes de Vidor, o apagamento final, seco e silencioso de McCrea.

- O plano final: del Rio em sobreposição ao fogo e o vulcão que surge como contra campo, magnífico e significativo corte, genuina montagem – maldição e fatalidade.


A câmara como aparelho científica de alta precisão; a luz como matéria modulável; o imponderável que pode acontecer de alguma forma e perpassar uma qualquer vertigem; o olhar do artista como transcendência de tudo o resto.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011





"The Champ", 1931

Expressão dos bons sentimentos.

- O miúdo tão miúdo a cuidar do pai bêbado que um dia foi campeão e que nos afectos contínua a ser o maior, durão lutador que se deixa derreter pelo olhar de uma criança como a manteiga ao sol se derrete. O miúdo que o veste, o despe, o calça e o cura do álcool seu pior inimigo. Corre a seu lado e não o larga por um segundo. "Champ", assim o trata o filho.

- O Pai bêbado cai, levanta-se, volta a cair, volta a levantar-se..mas ainda consegue concretizar o sonho do seu filho e oferecer-lhe a desejada quimera. "Little Champ", belo nome para belo cavalo.

- O momento doce em que a Mãe do miúdo o redescobre passados muitos anos e os momentos ainda mais doces e ternos em que esta e o seu companheiro percebem que só na morte pai e filho se separarão.

- A espera do miúdo antes da revelação da Mãe que nunca conheceu. Brincadeiras entre as grades e os telhados, uma imensa liberdade e inocência que só com esta idade sem idade e com este espírito e com esta atenção e generosidade de um cineasta são possíveis, fantasia plasmado numa tela. Aí, a descoberta de uma meia-irmã. Ela conta-lhe um conto de fadas e ele ensina-lhe a cuspir para bem longe e ambos se abraçam como se namorados fossem. Ele ainda não gosta de beijos, sussurra depois à Mãe, mas vai prometer à meia-irmã um passeio.

- O miúdo a fugir do comboio para em correrias e lágrimas se encontrar com o "champ" e ali um milagre como o de "The Citadel" ou como os de Capra acontecer. Não exagero.

- Cai, levanta-se e volta a cair mas de pé põe-se sempre, dizia eu...como o cavalo que passa de mãos em mãos mas que finalmente fica nas mãos do miúdo, uma que nem a principal dádiva e manifestação infinita do carinho daquele gigante, certeza final da raridade desse coração. Desculpas sempre aceites. Promessas cumpridas. Sorrisos oferecidos. Amor impossível.

- King Vidor, poeta da ternura, da força bruta das convicções, da fragilidade e da fisicalidade sem par. Temos Champ mas também temos Howard Roark, Mimi ou Dempsey Rae. Sem esquecer lados sombrios, Rosa Moline ou Chick. Tudo. Filma um conto e um lugar como que dentro do grande conto e do grande lugar, dentro mas isolado. Excepção e glória.

- Mundo aparte em que tal elevação, nobreza e crueza dos bons sentimentos e da emoção faz daquele mundo um mundo onde eu gostaria de viver. Esse mundo sem falsos pudores onde os homens não tem vergonha de chorar tanto ou mais do que as crianças e as mulheres também. Esse mundo onde as crianças são levadas a sério e onde correm como querem e se entreajudam. Paraíso eminentemente perdido.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

terça-feira, 13 de setembro de 2011


Em "Ruby Gentry" Jennifer Jones tem tudo a seus pés e tudo lhe vai ser negado. Pelas gentes que não lhe perdoam as origens e as géneses, tais virtudes ou tais defeitos. E por algo tão elevado, poderoso e incomensurável que a parece abafar e não lhe querer entregar a única coisa ou o único homem que interessa.


Jennifer irrompe pelas águas, nas águas acaba. Costas voltadas.

Depois... os céus carregadíssimos e estridentes e sombrios que a escurecem e enegrecem o olhar e o íntimo. Céus feitos abóbadas incandescentes.

As florestas em que a candura mágica e doce da infância já lá vão e lhes devolvem (a ela e a ele) os genes de terror e de susto inatos dos seus desenhos e sarrabiscos. Florestas interditas – como "Beyond the Forest ", filme que conserva movimento idêntico e luminosidade/seu negativo que me parecem semelhantes como dois irmãos podem ser.

As árvores grandes, pequenas, rectas, torcidas, deformadas, envergonhadas ou imponentes que a espetam na penumbra.

Pântanos e lamacentas extensões de terra inundada, símbolos da derrocada.

Pedras de toque e outras estendidas que são como que altares de sedução.

As casas ou a casa mãe acima de tudo que são fogueiros que derretem o sangue, sugam horizontes, abafam pulsões, estralhaçam a carne e o nervo e a mente.

As portas que raiam halos de luz cegante e os rostos velados.

Ervas que se adivinham venenosas.

O acinzentado por vezes preto ar circundante feito de volúpia, êxtase e fim.

Os luares dos desejos e logo das perdições.

A grande metrópole como um braseiro insuportável que ainda mais arde e abafa do que a minúscula e concentracionária terra original.

De rompante e sem aviso...a noite perfeita que terá valido a eternidade e que ao mesmo tempo libertou e condenou: ela e o amado; ela a gata selvagem que o quer devorar e que por ele devoraria o mundo inteiro, ele que pelo estúpido do orgulho não dá o passo seguinte e só os dá ao para trás. Naquela idílica e libidinosa praia em que as águas e as ondas representam a massa e o jorrar da fome de ambos, esses movimentos que vão e vêm. A aurora ou o crepúsculo, a consciência da brevidade. A velocidade e a trepidação do automóvel, o turbilhão e prazer interior e exterior – escape das farsas e finalmente catarses prometidas e merecidas. As escalas e proximidades da câmara como medidor das temperaturas, única testemunha.

As águas fulminantes e desejantes, tal lirismo como os líquidos que brotam imparáveis e em torrentes contra os homens potentes/impotentes de "Our Daily Bread".

Porque serão as águas a tudo engolir. A cena Mizoguchiana da morte do amado e a cena escrita nos ventos (sem pais nem filhos) que também tanto lhe sopraram da morte do marido de conveniência. O seu apagamento, a magreza, entrega ao flutuar final e eterno.

Final em correspondência e antítese, sussurro e desprezo com o anterior "Hallelujah". Outro modo de regresso a casa e estagnação. Sangue em água diluído, o que dá?

Águas, terras, ares, os céus e as suas nuvens, pedras e tudo o que mais existe de vegetal, mineral ou animal...porque o homem no meio disto, face ao fatal destino ou ao seu acaso ou a qualquer negação. O panteísmo e o seu peso, suas forças e atracções.


Movimentos caleidoscópicos que King Vidor ergue com a rectidão, a incorruptibilidade, a garra e o total da sua mise-en-scène e que assim tudo deixa para incendiar e abanar e entrar em confronto e em violência nos corpos e nas vozes e nas almas e na vida que rasga pelos planos, este mundo.

Costuma-se dizer toda a América – metáforas, espelhos, mosaicos - como se diz com John Ford ou Howard Hawks ("American Tryptych", Tag Gallagher). É toda a humanidade, história das pessoas. Cravação mística.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

o cinema é Lillian Gish a vender os seus trapos por umas moedas, a parar para pensar e a ir ao pescoço e a vender mais um trapo mesmo que por mais frio, imensamente frio...


...é o escritor de peças teatrais já caído de amores por ela a desfazer-se de uma das pernas da sua cadeira para lhe dar fogo para o corpo e obviamente para a alma...

...são os amigos dele a trazerem-lhe comida e a fazerem a farra dos pobres, a perceberem que ele tombou de amores e a mandá-la buscar para ele.

Se calhar é preciso ter-se abandonado uma casa para se começar a puder entender qualquer coisa na tristeza infinita e infinitamente magoada dos olhos de gish com os sacos às costas...é preciso sentir uma qualquer pulsão que desfaz o efeito da ilusão ou da magia ou da hipnose e nos proporciona o arrepio na espinha da vida. cinema = vida, cinema ≠ vida.

é essa dança absolutamente louca, demencial, animalesca e livre igual à de binoche e lavant nos amantes da ponte nova...onde a câmara e os corpos nessa eterna bebedeira dos sentidos fodem e não olham para o lado.

são os olhares beijos e abraços e todos os mimos à beira rio...a luz a incendiar a película de desejo, o lirismo a queimar pelas águas ventos ervas a saia a esvoaçar...

...é o escritor já nos chãos fuzilado pela musa de inspiração.

é essa musa a esconder-lhe que foi despedido do trabalho indecente e a dar-lhe o pouco que ganha nas noites em branco...

a musa que para o amado triunfar foge e se apaga...altar final do sacrifício altar do amor cego que não se qualifica...
+
o último plano que rasga como uma faca no coração.
(liturgia da paixão)


os grandes planos que não funcionam como a puta da regra da linguagem ou o cumprir de quotas cinematograficamente falando, mas sim para filmar a emoção e variação - revelação, perdição, força, medo, escuro, claro... - do homem..toda a complexidade do ser. O gp foi inventado para qualquer coisa, griffith sabia-o como vidor o sabia, e cada um deles é um universo de energias que explode na tela. Gesto a um tempo íntimo e singular e total.

vertigem do rosto, vertigem do olhar. aproxima-se demais e queima-se.

então, insisto, esquecer a tal da linguagem e esquecer o fato e gravata e volver-se um vândalo de coração à beira da câmara, um vândalo e um taberneiro dos sentimentos...essa palavra hoje tão ridícula na arte como todas estas quimeras que se pressentem aqui e que à custa de tanto talento e génio e progresso hoje tornaram o cinema na porcaria que ele é. o cinema de um génio por semana, 1000 ideias por minuto, artistas de museu, radicais ica de subsídios de milhões.