terça-feira, 24 de abril de 2012

O poder do lápis azul: Cinemateca Portuguesa II


“O primeiro sinal de corrupção que ainda está vivo numa sociedade é que o fim justifica os meios.”

Georges Bernanos

Sem muito mais, só para acrescentar que casos de evidente fascismo abafado como este praticado por alguém que pretende mandar cegamente na Cinemateca Portuguesa – e que eu não confundo jamais esse alguém, essa pessoa e essa desdenhosa insolência e intolerância, com a própria casa do cinema que tanto amo e que tanto me deu e me continua a dar - ela e João Bénard da Costa, coisa que confundo e que sempre tornarei numa e na mesma coisa. Ia eu a dizer, um acontecimento destes, absolutamente inaceitável num país ou num mundo só minimamente decente, teria de ser capa do próximo Ípsilon ou da Actual Expresso ou de qualquer imprensa séria. Porque urge muito mais preservar as grandes paixões sem freios porque acometidas de um imparável fogo que tudo devora e leva à frente e queima, do que as lamentáveis manchetes patéticas e demagógicas que se desmultiplicam ad infinitum. As paixões, simplesmente. Urge muito mais, nestes tempos não muito distantes de uma marcante data de Abril que todos nós sabemos o que significa, preservar o homem livre e consequentemente o pensamento livre. A liberdade, simplesmente. Muito, imensamente mais do que promover os amigos só supostamente cineastas e os seus produtos fabricados para que todos possam encher bolsos e egos e fama, garantir o estatuto social e o cheque ao final do mês. Infinitamente mais essa liberdade criadora do que o sacrifício de todos os valores e crenças em nome do bom rolar do cinema português, da sua possibilidade e dos prémios em ouro nos super festivais – que imbecilidade…

Se essa imprensa, ou crítica, ou homens verdadeiramente homens existissem, teriam de denunciar rapidamente este caso, para se assegurar a singularidade e verdade de qualquer pessoa ao invés dos sorrisos mesquinhos, das aparências, palmadinhas nas costas, essa bafienta paz podre. Para se garantir a possibilidade dos ímpetos e instintos ao invés do anestesiamento global e do reconfortante apagamento de qualquer peculiaridade. A beleza de um qualquer “Eu” que altivamente se demarca dessas grandes mentiras e teatros de aparências – a beleza de tudo o que se opõe à sede de poder e à suprema impostura calada que tantos massacres – cada vez também mais calados – continuam a provocar.

No fundo, o que cada vez mais não se percebe, ou não se quer perceber, é que nas instituições, nos organismos, nas produtoras de…, e em tudo o resto, existem pessoas, pessoas e as suas diferenças, e não frios autómatos ou bonecos acomodados nos seus tachos. Primeiro de tudo, falta ser-se honesto consigo próprio.

E para alguém não ter de escrever mais o que Jean- Luc Godard escreveu certo dia a André Malraux aquando de uma interdição tão grave como a que a Senhora Directora da Cinemateca Portuguesa, Maria João Seixas, acometeu agora contra as folhas de sala lá escritas por Mário Fernandes (e existe uma de um filme de Marco Ferreri que possivelmente nunca a leremos…): “Como me podereis entender…eu que vos chamo do exterior, de um país distante, a França livre?”

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O poder do lápis azul: Cinemateca Portuguesa

Oi Zé,

Depois de censurarem a folha sobre o Ferrei, arvorados na autoridadezinha balofa dos bons costumes - o que não aceito mas até compreendo (conhecendo a sexualidade aldrabada do poder) – , impediram agora a saída do texto sobre o “Land and Freedom” do Ken Loach. Fiquei a saber que na Cinemateca, onde tantas vezes sonhámos a Liberdade, não se pode gostar violentamente do Ferreri nem detestar com fundamento o Ken Loach. Há bocado perguntei na bilheteira ao motorista da excelsa Dr. Maria João Seixas porque não saiu a folha. “Uma falha informática”- disse ele, tão bem catequizado para esconder a censura.

Mas não tomes a parte pelo todo, há grandes pessoas na cinemateca (gostei muito de conhecer a Rita Azevedo Gomes, o Nuno Rodrigues, a Antónia, a Sofia, a Joana Ascensão, o João Pedro Bénard… os outros já conhecia para o melhor e para o pior…). É pena os cargos apagarem amiúde gente do caraças…Esta direcção da Maria João Seixas- que se tivesse um pingo de vergonha na cara já teria pedido a demissão- escoltada por um Zé Manel ambíguo (é capaz de falar 10 horas sobre a liberdade do Renoir e depois censurar um texto em 10 segundos), transforma a cinemateca numa mordomia de “empty uniforms” que tresanda a mofo, sobretudo quando se faz do vácuo o melhor pasto. O clima aqui é irrespirável, em surdina ouvem-se “coisas” mas só em surdina, é impossível a liberdade de expressão, a menos que se mantenha o medo, a hipocrisia e a distância de segurança em relação aos filmes (um académico folgado ou um bom rapaz da comunicação social dão-se aqui lindamente, “badamerdas” como nós dificilmente).

Enfim, envio-te as 2 novas folhas limpa cus de estagiários (a primeira sobre o Loach, a segunda uma folha de demissão ao som de um “maravilhoso” Foxtrot), faz o teu juízo e continua a escrever. Fascistas como a Maria João Seixas também se abatem.

Olha, soube agora que fui despedido. Avisa a Marta que podemos começar as filmagens mais cedo.

Um abraço,

Mário

...................


CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA
CINEASTAS, DO NOSSO TEMPO
20 de Abril de 2012


LAND AND FREEDOM/ 1995

(Terra e Liberdade)

Um filme de Ken Loach
 
Realização: Ken Loach/ Argumento: Jim Allen Fotografia: Barry Acroyd/ Música: George Fenton/ Montagem: Jonathan Morris/ Interpretação: Ian Hart (David Carr), Rosana Pastor (Blanca), Frédéric Pierrot (Bernard Goujon), Tom Gilroy (Lawrence), Icíar Bollaín (Maite), Marc Martinez (Juan Vidal), Suzanne Maddock (Kim), entre outros.

Produção Rebecca O´Brien (Reino Unido, Espanha, Alemanha e Itália, 1995) / Cópia: 35 mm, colorida, versão original em inglês e espanhol com legendas em português/ Duração: 109 minutos/ Estreia em Portugal: 31 de Maio de 1996/ Primeira exibição na Cinemateca.


“Mostra-me a obra, não me mostres o cartão do partido.”

Brecht

“Se tens uma mensagem para pôr num filme, envia um telegrama, não faças um filme.”

Louis B. Mayer

Bem-vindos à Terra e Liberdade de Ken Loach…o putativo realizador é daqueles que se esconde na mensagem…nas melhores intenções…no tema…podia ser o preço da manteiga no Reino Unido…calhou ser a guerra civil espanhola…convidou Jim Allen para escrever o argumento…baseou-se na “Homenagem à Catalunha” de Orwell…o escritor que integrara uma milícia do P.O.U.M. (Partido Operário de Unificação Marxista)… Orwell atribuiu a derrota da República Espanhola, democraticamente eleita, ao “pesadelo comunista”…o exército organizado que massacrou o P.O.U.M.… os trotskystas…os anarco-sindicalistas… outras facções à esquerda da esquerda…consideradas perigosas e liquidadas sob as ordens exteriores de Estaline… o P.C.E. inventou a teoria da “conspiração fascista” ou do golpe “anarco-trotskista”…vemos os ataques dos comunistas contra os anarquistas na Barcelona de 1937…os profissionais contra os amadores…se estás à esquerda do P.C. fascista és… Franco era apoiado por Mussollini e Hitler…indirectamente era ajudado por Estaline, aliado à época da Alemanha e da Itália…as milícias anarcas tinham parcos apoios das brigadas vermelhas e dos mexicanos… um cenário político ambíguo…ainda as divisões internas entre quem manda e quem obedece...as clivagens intestinas na facção republicana… rumores de que o General Pozas impediu o apoio da artilharia… visando o maior número de mortos milicianos… intertítulos explicativos…passemos ao filme…. começa com a morte de David Carr…mais tarde Kim, neta de David, abre uma caixa…encontra cartas de David à namorada, fotografias e recortes de jornal…está-se mesmo a ver…longo flash-back…David partiu para Espanha…era filiado no P.C. de Liverpool…tinha de combater pela República…segue-se o itinerário político de David…cinematograficamente linear e esquemático…o vai-e-vem passado presente…pois há que ilustrar as fotografias e títulos dos jornais…o espectador tem de perceber isso…e a voz off de chico-esperto…dá sempre jeito (vide “Tabu” de Miguel Gomes)…é incrível a preguiça de Loach…as imagens vão ilustrando o que se diz… não vá o espectador perder-se num cenário de guerra entre imagens e sons…o fio condutor cronológico… a narrativa igualmente linear… bem organizadinha….sem rupturas…sem fragmentações…a história da carochinha…  típica de um burguês inglês (filiado no partido comunista) que vai fazer turismo histórico a Espanha…mostrar factos em vez de os montar… parte de documentos sem os questionar…a preocupação é sempre decorativa…longe os travellings-interrogação sobre a memória de Resnais em “La Guerre est Fini” e noutros… Kim aceita acriticamente tudo o que se passou…até leva à boca uma bolachinha…tal é o interesse… há um ponto de vista que o realizador quer impor e ilustrar à força…a febre arquivista do início do filme é só uma caução…uma desculpa…um álibi…o que Loach faz, no filme, é dar-nos um pretenso realismo socialista sem real… forçar uma marca “realista” sem real… autenticar com truques arquivistas aquilo que não se viveu…impedir o espectador de questionar a verdade do filme…o estalinista Ken Loach…a mim não me enganou…vemos imagens de actualidades revolucionárias projectadas no ecrã…um professor…estes filmes de propaganda têm sempre um lado didáctico…imagens do massacre dos anarco-sindicalistas…discursata do professor e palminhas revolucionárias…longe o poder e força da palavra de qualquer filme humilde do “anarquista de direita” Frank Capra…tudo incrivelmente estereotipado em Loach… a musiquinha…a ganga revolucionária…os ideais com as emoções instruídas… os diálogos militantes…o banal naturalismo e a banal estetização… as divisões só são captadas à superfície por discussões intermináveis…temáticas… as tais mensagens para pombos politótólogos levarem ao júri…não são dadas pelas formas do cinema…parecem fóruns universitários com fatos de época… a justiça…a revolução…o melhor sistema…o menos mau…o salário…Bakunine, Badiou, Trotsky, William Morris…a esquerda reformista…a esquerda radical…o debate infindável sobre a colectivização…15 minutos a discutir …as contradições…as brechas ideológicas…um registo documental forçado…a câmara a “fotografar” diálogos aleatoriamente…um truque para parecer “realista”…a trampa de um realismo pornográfico da adivinhação… recriado e recreativo…o filme é como uma vaca que vai parir…ou se assiste bem ou morre a vaca… longe as fortes dialécticas da “Torre Bela” (1977) de Thomas Harlan…a resistência e a desistência…a desistência e a resistência…a câmara que faz História….a câmara de Harlan que já rendeu uma tese de doutoramento!… Louch gosta mais de bandeiras e slogans… Arte cinematográfica da República!…o cinema torna-se propaganda de queque… Loach cai cinematograficamente nos próprios empecilhos políticos que denuncia… vende a ideia de muitos políticos e gajos do meio do cinema… entreguem-se sob o comando do exército profissional… isso não significa perder conquistas…o cinema de Louch torna-se uma máquina de perseguição e aniquilação de dissidentes…não basta uma “poética esquerdista” fácil que se assoa à gravatinha do abjecto realismo inglês….Loach quer agradar aos júris nostálgicos…cansados de ver o Maio 68 no canal história… um interesse que se esgota numa aula de ciência política…um exame académico qualquer… coroado com uma palma de ouro e outras mil nas costas… a emancipação do cinema britânico contemporâneo…só um “génio” como Philippe Pilard acredita nisso… o entusiasmo revolucionário fá-lo tropeçar em todos os clichés de Loach… o desempregado David…filiado no partido comunista… sem saber que combaterá contra os próprios comunistas… o lenço vermelho de Blanca…um punhado de terra vermelha…o funeral da revolução e passagem de testemunho…“os filmes morrem quando se tornam simples veículos de mensagens” (Orson Welles)…a cinematograficamente pirosa morte de Blanca… a corrida disparatada…a queda absurda em câmara lenta…arrasa qualquer generosidade…o lenço de Blanca ficará com David…carrega a terra da Catalunha…o souvenir-fetichista de uma revolução falhada…os punhos a largar terra para o caixão de Blanca…o falso-raccord com o funeral de David…o poema de William Morris…a terra de Blanca e David…a jovem acaba com o punho em riste… a identificação de Blanca com a neta de David….outra vez o lenço vermelho…podia ser o barrete do Tocha…Fedorov, um crítico pouco conhecido, avançou a hipótese de a jovem beber uma coca-cola em Anfield Road…o que um crítico escreve vale mais que as tábuas de Moisés…não nos atrevemos a questioná-lo… o treino das milícias…o comando militar da esquerda direita e direita esquerda…lança as directrizes políticas…nada óbvio…a oposição entre poder militar organizado e impreparação das milícias… os encontros quase sempre mal filmados… a proximidade pornográfica…o distintivo do citado “realismo inglês”….veja-se David atingido…as caras feias em grande plano…quase batem com o nariz na lente… antes um dos poucos momentos fortes do filme…as milícias cantam “a internacional” com o som de petardos fora de campo…já em Barcelona não falta a cena de amorzinho numa pensãozita…seguida de mais um discussão revolucionária…reivindicações feministas…mulheres da linha de trás para a linha da frente…David votou nas milícias…juntou-se aos estalinistas…que acusavam os anarquistas de fascistas…uma salada russa…uma comerciante faz o seu número…”matem os fascistas em vez de se matarem uns aos outros”…verdade…verdadinha… David sente-se traído pelos comunistas…rasga o cartão do partido…volta para o P.A.O.M….reconcilia-se com Blanca…nada previsível…o partido afinal não presta…é vil e corrupto…viva o amor…ay carmela e tirinhos…vemos um actor que lembra o José Calado…grande dissidência na crítica cinematográfica…já teria sido transferido para o Bétis de Sevilha?...novos truques…os belíssimos fades a negro para dar a passagem do tempo nas trincheiras… a visão histórica redutora de Loach…como se o passado fosse um tubo de ensaio para evitar erros no futuro…nada garante que a própria democracia daqui a 100 anos não seja uma coisa estranhíssima…anacrónica…mais uma vez a falta de distância crítica…não sabemos o que aconteceria se tivesse triunfado a facção comunista…ou singrado a República Socialista das ambiguidades…provavelmente seria, pela experiência noutros países, uma ditadura de esquerda…um foco estalinista…Loach ignora isso…vai para o filme cheio de certezas…o ”soutien” político de Loach…tem no Sam Wood de “Por Quem os Sinos Dobram” um parceiro medíocre à altura… Loach não percebeu que a luta de classes é uma luta de imagens e sons…que “a História é um processo de montagem cinematográfica” (Georges Duby)…um confronto de visões…imagens…cortes…blocos…contra-campos…dialécticas... dissociações de som e imagem…”não faças um filme político, faz politicamente um filme” (Godard)… a História faz-se com o sangue das ideias através da violência do cinema...Loach está a milhas do realismo crítico de  Francesco Rosi…da interpretação histórica e sentido plástico sem cair no ilustrativo ou decorativo… a milhas da ironia do combate político de Renoir na “Marselhesa”…a tragédia de ”todo o mundo ter as suas razões”…mais complexa e concreta…a rebentar com todos os sistemas…a milhas da força bruta das imagens de Montagu, Malraux, Henri-Cartier Bresson em Espanha…ou de Joris Ivens nos movimentos de resistência por todo o mundo…a milhas do confronto directo e empenho político de Robert Kramer…que filmava uma revolução como Flaherty uma tempestade no mar…a milhas do artifício histórico (des)construído e (des)montado por Oliveira no “Non”…dos paradoxos de uma nação que só se transcende morrendo…a árvore de “Non” só se atira ao céu se lhe cortarem as raízes…a milhas da dignidade da câmara de Pedro Costa ao serviço do homem … a milhas das alegorias políticas de Pasolini, Glauber Rocha, Ruiz… nas suas contradições, ambiguidades e movimentos…a milhas da montagem dialéctica dentro dos planos nos blocos graníticos de Straub e Huillet…a milhas da ousadia de Rossellini em “Viva Itália”…um cinema que abraçava o homem Garibaldi…na força do “juntem-se a mim ou combatam contra mim”…ou na fraqueza da traição e do exílio…a milhas de Monicelli ou Olmi que nunca filmaram pessoas como adereços (vejam os negros a servir as férias em África do “comité central” liderado por Miguel Gomes)… a milhas dos choques de imagens de qualquer actualidade de propaganda russa…para não falar dos mestres… a milhas da “Guernica” de Picasso…a milhas dos “Fuzilamentos” de Goya…quadro cinematográfico que vale mais que a obra completa do Loach…execução e grito triunfal da liberdade…podem fuzilar tudo menos a luz…o homem dá o peito às balas…a luz projecta-se no rebelde…um morre…outro virá…e outro…e outro…um dia acabarão as balas e ficará só a luz…nada que a modinha esquerdista e maniqueísmo à priori de Louch possa sentir… incapaz de fazer da divisão política uma divisão cinematográfica…incapaz de realizar a ambiguidade de um acontecimento histórico…um filme de esquerda com formas burguesas só se pode dar mal…zero em risco…zero em atrevimento…zero em confronto…zero em distância crítica…nulidade cinematográfica…esqueceu a forma e o poder incomensurável de uma câmara para mudar o mundo… refugia-se num vago optimismo esquerdista…“as revoluções são contagiosas”…os piolhos também…Ken Loach “pasará”…

Mário Fernandes


....................


CINEMATECA PORTUGUESA-MUSEU DO CINEMA
MATINÉS DA CINEMATECA
23 de Abril de 2012


FOXTROT/ 1975
(O Outro Lado do Paraíso)

Um filme de Arturo Ripstein

Realização: Arturo Ripstein/ Argumento: Arturo Ripstein, José Emilio Pacheco, H.A.L. Craig /Fotografia: Alex Phillips/ Música: Pete Rugolo/ Montagem: Peter Zinner e Rafael Castanedo/ Interpretação: Peter O'Toole (Lívio Milescu), Charlotte Rampling (Júlia), Max von Sydow (Larsen), Jorge Luke (Eusébio), Helena Rojo (Alexandra), Claudio Brook (Paul), Max Kerlow (capitão Carnú), Christa Walter (Gertrude), Mario Castillón Bracho (marinheiro), Anne Porterfield (Marianna), Anaís de Melo, entre outros.

Produção Conacine (México, 1975) e Gerald Green (Inglaterra e Suiça, 1975) / Cópia: 35 mm, colorida, versão original em inglês com legendas em português/ Duração: 89 minutos/ Estreia em Portugal: 27 de Abril de 1977/ Primeira exibição na Cinemateca.


Arturo Ripstein foi assistente de realização de Buñuel no “Anjo Exterminador” e no “El”… achava a câmara “uma coisa linda”…um dia decidiu ser realizador…”Foxtrot” foi o seu filme mais ambicioso…um grande orçamento… actores finórios europeus…tentar agradar ao público…fazer uma obra de arte…filmou no cabo San Lucas e nos estúdios Churubusco…nos estúdios o ambiente foi bom…no cabo foi o cabo dos trabalhos… O´Toole não suportava o calor abrasador de dia…louve-se o masoquismo do “Lawrence da Arábia”… e depois o frio de rachar à noite… adoeceu antes da rodagem…não se pôde preparar convenientemente…o realizador e os actores também nunca se encontraram no deserto dos leões…onde supostamente deveriam ter começado as filmagens…mais uma rodagem acidentada… O´Toole e Charlotte acharam sempre que tinham uma patente mais alta do que a do jovem realizador… às aranhas com uma mega-produção…Ripstein desculpa-se… as queixinhas comuns…a música desafina com a barriguinha vazia…e o realizador queria tanto afiná-la…como nos clássicos americanos de Fritz Lang…segundo ele, houve pouco dinheiro… recebeu da “conacine” 3 milhões…os censores não acharam piada a uma produtora formada por aglutinação e tiraram-lhe o subsídio de alimentação…o depauperado herr direktor não faz milagres…nem as extraordinárias bilheteiras na Europa…o fluxo sanguíneo destes filmes é o desembolso… mas perdoe-se o mau realizador pela boa intenção com que filma: “atraiu-me o isolamento da civilização e a possibilidade de sobreviver nessas circunstâncias, gostava que fossem anti-Robinson Crusoé. Robinson Crusoé adapta a sua circunstância à natureza, e estas personagens pretendiam adaptar a natureza à sua circunstância”… um realizador mais inteligente do que o filme… “Foxtrot” tem o tempo suficiente para toda a classe de actividades e parvoíces…comer crepes Richelieu…amanhar um cocktail Shirley Temple…outras banalidades irónicas…ver o fantasmeca da ex-mulher com o som dos sinos na cabeça do conde… Lívio leva um abanão…regressa à tenda tremendo…a aparição de Nossa Senhora escandaliza o conde…está habituado à aristocracia chique… a modinha dos fantasmas que Apitchapong institui hoje… filmar um plano que alterará o curso da história do cinema…bater no Lívio (o que não significa bater na Lívia)…uma sesta na praia…sem ocultar as superfícies planetárias… depois a esfera de interesse desliza para a carne humana… exaltar o marmelanço…Lívio e Júlia bailam o “foxtrot”…outras beldades também bailam… as luzes artificiais…elas entregam-se mais facilmente…Eusébio e Larsen ficam-se pelo “fodetrot”…o ”membrum virile” notavelmente flácido… o furor rebelde de um candidato a cineasta…os bailaricos… as orgias…os lábios decadentes…o garanhão Max Von Sydow (os cinéfilos atentos devem conhecê-lo de Bergman)… o garbo de Anaís de Melo…mostra as “maminhas” ao melífluo Larsen…uma caça absurda às focas… corta-se do repasto de Júlia e Lívio para as focas em pose… um bom corte… parvoíces como a corrida de caranguejos… as projecções de filmes caseiros e não só…Charlotte bate umas “chapas”…também filma em super 8…o fantasma da ex-mulher aparece projectado…tudo ao serviço da mixórdia… Eusébio, além de criado, é projeccionista… outros parvoíces de referência cinéfila barata…o risinho ante os “gags” de Laurel e Hardy…até um “enxerto” do “Testamento do Dr. Mabuse” de Fritz Lang…e tão longe a cadência musical da montagem de Fritz Lang ou Hitchcock… as piscadelas de olho a Buñuel…as citações superficiais… as pernocas junto ao mar de “La Joven”… as mãos nos seios de “Un Chien Andalou”…o “puro” enrolado nas pernas…quando se fala em partilhar tudo há logo um corte denunciadíssimo para a mão do Conde no braço de Júlia…já sabemos que todos vão lutar pela mesma mulher… a óbvia metáfora do chapéu do conde a circular… onde Buñuel oculta, Ripstein exibe até ao aborrecimento…onde Buñuel conjectura, Ripstein expõe sem margem para dúvidas…onde Buñuel goza com o espectador, Ripstein exporta o “produto”… onde a câmara de Buñuel substantiva, a de Ripstein só adjectiva… Buñuel é um vândalo, Ripstein um menino de coro… a câmara um brinquedo… Eusébio chega à ilha sem se barbear…é chamado à atenção…barbeia-se para conservar as belas aparências… depois Ripstein dá 3 pontos de vista diferentes (sem interesse) de Eusébio a cavar um buraco diante dos patrões… muito moderno…o espectador que escolha… e a câmara ora “embeleza” macacadas…ora torna-se indiferente e só regista diálogos… a découpage “pobre” e académica… a luz intermitente para dar ares de mistério… e vejam o decoro dos fantasmas…os ”carregados de passado” muito apresentáveis…diz-me mais um vinco na cara estragada do Bogart… para o aspecto espectral até vivem bem… aquela abstinência forçada…estou tão apaixonado Astérix…hoje só comi um javali… Ripstein capta tudo sem fé…é só efeitos e “fait divers”…o conde continua a ser afectado pelo passado…as bizarrias impedem-no de vestir bem e comer ainda melhor…uma manhã um barco negro atraca na ilha…os passageiros são a ex-mulher Alexandra…actualmente mulher-a-noites de Paul…dizem que foram convidados por Lívio através de uma mensagem de rádio…Lívio diz que não tem rádio…tudo se resolve numa orgia…atracções sexuais e copázios…que preocupações enquanto há mulherio e licor?... paralelamente Larsen promove uma orgia sangrenta…mata todos os pássaros e focas da ilha…faz raccord com a espingarda que Paul oferece a Lívio na despedida…outras caçadas mais humanas…mais tarde o navio negro reaparece misteriosamente no horizonte…está povoado de ratos…a peste…há que deitar fogo…fazer explodir o barco…justificar o “budget”…a câmara, debalde, inespera sempre o esperado…as sérias incongruências estranhas… supostamente para quebrar o ambiente sereno e repastado… as fantasias anedóticas do conde Lívio…todos os exilados são condes…“a doença de Lívio é mais um dos seus luxos”… juntam-se as peneiras imbecis de Júlia…diz-se violada pelo lascivo Larsen…há que indagar…os maus instintos dos homens…Eusébio pactua com Larsen contra o parzito…a dor de corno faz alianças… a pupila cativa do meu inimigo… a tensão em montagem paralela entre Lívio e Júlia…entre Henrique Larsen e Eusébio da Silva… rebolanço e facadas… se o ridículo pagasse imposto… o barco providência não vem… “já não temos a ilha, é a ilha que nos tem a nós” (Larsen)…a peste é a peste dos homens…é preciso racionar a carne e os charutos… e que Deus nos assista se nos acaba o whisky… as distinções de classe esbatem-se…os “4 mosquiteiros” estão num ver-se-te-avias….Eusébio senta-se à mesa dos patrões…o sonho de qualquer criado… a “mise en scène” de Ripstein vai partindo da fuga para o encerro…dos exteriores da bela ilha para a claustrofobia… as pessoas tão apertadas no espaço…como viver sem cometer um assassinato?... da comodidade à escala azul do céu e do mar para o vermelho kitsch da tenda com objectos “art déco”… mais tarde Larsen fere Eusébio…Júlia caminha silenciosamente para o mar…Larsen encontra o cadáver e culpa Eusébio da morte de Júlia… o único momento forte do filme…Júlia com um belo vestido comprido branco…morta junto ao mar…vemos os troncos…as ondas a morrer na praia…em profundidade a tenda vermelha e o caminho para nenhures…um barco ancorado em terra…O´Toole condenado a ficar… o plano subjectivo de Lívio…tenta fazer alguma coisa…é tarde…já está K.O.…avia Eusébio…mais metodicamente Larsen…regressa à tenda assombrada… o único ser vivo na desolação da ilha… ”foxtrot” na banda de som…evidente… a rimar com a música “standard” anos 30 ao longo do filme…há alguma ironia de Ripstein em tudo isto…o problema é que nunca floresce e dá picos…o vinho é tão misturado…tão morto…nem aquece nem arrefece…o “pastiche” sem interesse de monta e a tirania do kitsch impõem-se sempre ao filme…em primeiríssimo plano e sem profundidade…e o artificialismo buscado não desculpa tudo…a maquilhagem também não cauciona tudo…os mortos não têm necessidades estéticas… Ripstein vai-se divertindo com as macacadas das personagens…nunca se comove verdadeiramente com nada…usa a distância de segurança estética…a fotografia impermeável aos afectos…este exibicionismo kitsch foi o livre-trânsito para o filme viajar por meio mundo…até Roger Corman comprou os direitos de exibição de “Foxtrot” no seu país: “Precisava de dinheiro e o kitsch vende-se sempre bem: para um público embrutecido e parvo, e para os críticos, que deliram com caldeiradas”…provavelmente sem o suspeitarem, Nicolau, Gomes e Esteves têm em Ripstein um grande mestre… este filme é m**** seca burguesa… entre o kitch e o aborrecimento em vão um passinho de “Foxtrot”…

Ripstein não é grande espingarda…há, no entanto, um interessante filme amador de Rupitein…”No coração da Liberdade” (1968)… pouca gente conhece…não aparece nas mais rigorosas filmografias… por sorte vi-o num cine-clube em Barcelona…apresentado por um investigador mexicano…é a história de um rapazito que escreve sobre filmes num jornal mexicano…um actor amador chamado Miguel Puñetas…um apelido que nem Salazar ousaria censurar…um dia o rapazito é censurado por escrever entusiasticamente sobre um filme de Buñuel…a direcção do jornal, que facilitava o visionamento de filmes proibidos, ficou escandalizada com o texto…um deslize moral…acusa-o de conduta desonrosa…”não respeita as expectativas dos leitores”…”há um paradigma institucional”…”vais sofrer as consequências”…”o texto é perigosamente pessoal e indecoroso”…reuniões e telefonemas…de escritório em escritório…o jovem resolve demitir-se…o filme termina com um discurso (não tão bom como o de Charles Laughton quando sonhava “que cada um pudesse dizer esta terra é minha”)…tomei nota e vou transcrevê-lo para aguçar o apetite do cinéfilo libertino:

“Excrementíssimos Senhores,

Aqui apresento a minha demissão. Vocês continuarão a narrativa jornalística dos dias e com o vosso bafiento moralismo, que atira para as fogueiras da intolerância tudo o que foge à cartilha. Nestes tempos em que a liberdade é ameaçada de todas as formas, a escrita podia ser uma arma como o cinema. Para quê padronizá-la pelo catecismo institucional? A vossa narrativa não me interessa. Banaliza o mal, neutraliza o belo, rasura a memória, branqueia crimes contra a liberdade de expressão. A vossa retórica da neutralidade jornalística como destino colectivo desvaloriza qualquer liberdade individual. E a única violência do meu texto era só uma: a da Liberdade individual. Convosco eu não posso ficar. Vocês seleccionam os textos de acordo com critérios subjugados a interesses restritos e mesquinhos. É nojento o vosso compadrio, escandalosa a vossa hipocrisia. Como se pode aceitar um filme sujo e não um texto sujo sobre um filme sujo? Não posso estar num jornal que não respeita a liberdade de expressão. Se os filmes são projectados livremente, os textos também devem ser escritos livremente. Um filme porco terá um texto porco, um filme político terá um texto político, um filme romântico terá um texto romântico, um filme neutro terá um texto neutro. Se um filme tiver tudo, um texto terá tudo. E só quem vê pode decidir isso, individualmente. Os textos são escritos por homens, com os seus defeitos e virtudes, nunca por instituições. Para censurar textos é preciso censurar primeiro os filmes. Quem censura a visão de quem vê, também deve censurar a visão de quem filma. Mas felizmente os filmes são mais livres do que muitos homens e instituições. Amarei os filmes, nunca o lápis azul. Voltaire, um aventureiro da liberdade, escreveu um dia: “Posso não concordar com o que dizes mas defenderei até à morte o teu direito de o dizer”. Eu não sei traduzir as minhas emoções para jornalês. Nesse aspecto, serei sempre mendigo e altivo, sempre pessoal e inflamável. E não confundo pessoas com cargos. Agradeço a todas as pessoas que me trataram muito bem, mas fica-me uma ideia amarga: há gente mais preocupada com o decoro do seu cargo do que com o mundo na sua mais alta expressão – o cinema. Deixo uma pergunta para quem fica: querem pessoas livres ou braços institucionais?”

Agora vou ali ver uns pinheiros…
 
Mário Fernandes

terça-feira, 17 de abril de 2012



No cinema como na vida existem os consensos imediatos, dos quais com a experiência tenho vindo a desconfiar de tais coros e globais adesões. E depois os objectos, as acções, as práticas absolutamente desprotegidas, nuas, sinceras. Por outras palavras: os falsos aconchegos que nos passam as mãos pelas costas e nos dizem que a vida e os sonhos e a fama são possíveis se lutarmos como lutam as lindas marionetas das telenovelas do horário nobre. E, contra toda esta areia toldante, algo que de quando em vez nos abre feridas profundas em vez de temporariamente as cicatrizar; verdades superiores como murros no estômago que nos escancaram a mente, o cérebro e os olhos para toda a lixeira de uma certa sociedade, de uma certa civilização, de uma certa mentira larga. Se quisermos e porque por aqui já se sabe do que costumo falar, é a discrepância entre o sensacionalismo televisivo ou jornalístico e logo comunicador, e a arte verdadeiramente arte, o cinema verdadeiramente cinema, que, antes de tudo, é questão de formas como princípio de mundo, questão de formas que medeiam qualquer sentimento e o possibilitam de todas as explosões possíveis. Lutas e distâncias entre imagens-sons-respiração-morte.

Se vier então agora pronunciar-me acerca de Vincent Gallo, dizer que esse músico, manequim, pintor, provocador profissional, etc., é também um dos cineastas contemporâneos que mais me interessa, e que fez talvez aquele filme que este milénio mais me tem obcecado e perseguido e espantado, espero não acometer de provocação contra nada – caso contrário a estupidez em vez de diminuir desde os felizmente longínquos 2003, ainda aumentou. Passou-se então quase uma década sobre uma tal estreia e um tal choque no festival de Cannes, tempo que julgo necessário para os bons olhos estarem limpos, os anedotários terem findado e os arremessos pessoais se denunciarem no seu ridículo reacionarismo.

“The Brown Bunny” começa logo por demarcar-se de qualquer corrente estética e visão do mundo que os anos dois mil nos trouxeram, correntes e visões essas que foram boas e más, ou seja, nada a ver com os tempos distendidos de “instalação” e consequentes estranhamentos exóticos de ultra novidades como Apichatpong Weerasethakul ou Raya Martin. Evidentemente longe do Kitsch admirativo de “nouvelle vague´s” ou liberdades à João César Monteiro, tais como Christophe Honoré ou João Nicolau. Tão oposto ao feito moderno e à fórmula dos últimos Bennings como aos narcisismos frigidos de um Boris Lehman. Quanto às “performances” tipo Peter Greenaway ou Hugo Vieira da Silva, mesmo os Warhol´s wanna be, sem mais conversas.

Grupos, modas, tendências, coutadas – Gallo demite-se de todas essas t-shirts.
O gesto e a construção de Gallo é a todo o momento raro e inaudito, mas se se pode dizer que no percurso traçado não se está atado a qualquer credo ou linguagem, que cada plano vale por si como peça autónoma, não há como não admitir que tudo ali é também perfeitamente clássico, de campo a contra campo. A um tempo sem raccords que não sejam os mentais e funcionando como um corpo e récito dorido, magoado, tantas vezes imerso numa corrosiva patologia que tanto parece advir do ar daquele tempo como de imortalidades.
A cena Inicial. Longos, silenciosos e austeros planos sobre uma pista de motos em competição. Longos mas de uma justeza de duração que se sente pelas permeabilidades várias aos sons do mundo e aos sons nascentes de uma sensibilidade actuante e interior; uma tateabilidade imagética extremamente delicada que parece desvanecer-se na sua abstração e ao mesmo tempo uma fisicalidade palpável, suada e urgente. E as distâncias e motes estéticos ficam logo aí lançados, cinco minutos depois já Gallo guardou a moto na sua negra carrinha, se pôs à estrada e contou à primeira das suas várias tentações que perdeu a corrida, o que parece já ser habitual, sina daqueles olhos imensamente tristes, imensamente perdidos.
Gesto de tábua rasa e um outono de Sam Peckinpah, como os homens dele pelas vias alternativas e sombrias das existências à sociedade ilícitas e suicidárias caminhavam. Se por um lado parece não se passar grande coisa, e isso é belo, nessa démarche ou via-sacra - jamais perscrutaremos certezas feitas no território do rosto de Vincent - estando esta expressão do mundo que passa próxima da influência confessada das telas minimalistas e perto do etéreo de Robert Ryman, ou, e aqui já leio eu, na difusão nostálgica e solitária das ambiências e vivências de J. D. Salinger, isto é, algo profundamente americano, algo profundamente universal. Micro movimentos, micro sensações, micro percepções que se podem volver a dado instante convulsões lácteas que a câmara detecta ao virar de uma curva.
Por outro, continuo, passa-se imensa coisa, imensa, desde o perdedor que atravessa essa américa com as suas paisagens desencantadas e sem grandes ilusões ilusórias; esses regressos à infância feitos de coelhos verdadeiros e de chocolate; engates envergonhados e mulheres em cada abrigo; arrependimentos e garrafas vermelhas de Coca-Cola; reencontros de vizinhança; e como é possível não ser grande coisa uma ida de moto por um deserto de sal até ao fim do mundo?;  beijar e ser beijado em fogosas ousadias; (deem-me aquela troca de olhares entre ele e uma das loiras num apeadeiro de caminho e não vos peço, Deuses ou loosers, mais cinema); flashbacks bucólicos e de fugazes porque horríficos lirismos; escritas de cartinhas a belas e colocadas nas suas portas; confrontos com a traição da única mulher que se amou; confrontos com a morte de um filho; tristezas sem nome; sexo oral em jeito de requiem ou de inelutável luto…
…Ou então Vincent decide continuar na estrada onde o Kowalski de “Vanishing Point” ou o John Wintergreen de “Electra Glide in Blue” se decidiram apagar…ou então apaga-se quando o filme apaga a luz e esse ondulante movimento fecha…aqui, sem certezas.
E depois…interessa o ar que lhe cai na cabeça. Que lhe entra ouvidos, nariz, boca, olhos adentro e lhe fulmina de oxigénio que é vida. Uma claridade ou escuros reveladores. Tempo a passar e a destruir na pele e nas veias. O corpo e a cabeça que tremem e estalam sobre vidraças embaciadas. Só quem muito andou e muito penou e se perdeu e deixou perder e talvez se achou pode saber do que se fala por aqui. As lágrimas secam-se-lhe no rosto e segue em frente.
Da pura efemeridade e provisório dos longos quadros da janela suja da carrinha e logo do olhar de Vincent, até à mais selvática explosão contida no broche de Chloë Sevigny, constantes invenções formais no pequeno, no íntimo, no amadorismo, o que vai provocar detonações vermelhas na pelicula, granulações vivas de quem expõe luz como quem respira, raios que inflectem pela objetiva e olhar adentro quais trovões. Invenções que nada tem de inventivo no sentido desdenhoso de “criatividade”, antes fisionomia e expressão exterior e plasmada da alma. Quadro, enquadramentos, composições ou ajustamentos que adquirem a fracção, o parcial, o subjectivo, a mutação a todo o instante e assim se demitem de quais queres ambições totalitárias, de abarcamento global – funciona neste como noutros aspectos a predisposição do viandante da tela e do viandante que frui à frente dela. Calmos e subtis encadeados utilizados sem pudor pois essenciais à constante metamorfose e união de todas as paisagens sentimentais umas nas outras. Sincera exposição, sinceros arcaísmos do arco-da-velha. Tudo, mas tudo, de mão dada com a dor.
Ao zero de decorativismo e ao aceitar das agruras orgânicas e vivificantes possíveis a qualquer um e não apenas ao “grande artista” e à “grande arte”, o que me interessa e me pasma acima de todas as coisas é a invenção do tempo, de um tempo. Do referido plano inicial da pista até à estrada sem talvez rumo com que o filme funde a negro e se espeta nos abismos que franqueou. Um tempo que é o de uma mágoa indizível, e que abre para outros tempos paralelos, inacessíveis e incomensuráveis. Um tempo também de puro andamento e contemplação. Correspondências, reconhecimentos e redescobertas ao meio primevo. Um tempo de Vincent Gallo e para Vincent Gallo; um tempo para quem quiser, tocado pela emancipação de qualquer impingimento ou amarra fílmica ou moral. “The Brown Bunny” tem o ritmo de um cortejo fúnebre, de um lamento arrastado ou de uma cura necessária, embalado por toda essa imobilidade andante, por todas essas baladas de recomeços e epílogos. Salta-se quando se quiser, parado ou em andamento, assim mesmo.
Não conheço nada tão antigo; não conheço nada tão actual. E o mundo continua a girar impassível sobre os seus imperiais eixos…

quarta-feira, 11 de abril de 2012


Quão estranho à prática do cinema é vagabundear, se dar a ares prazenteiros e idiossincráticos. É uma coisa cara, diz-se, por isso há que respeitar os públicos e confirmar as grandes teorias da época. Tão mal visto esse maravilhoso propósito que desde o Marco Ferreri de "Dillinger è morto" até tantas coisas de João César Monteiro me proporcionou dos mais inolvidáveis momentos da grande arte das luzes e das sombras projectadas. Venho agora falar de outro grande vadio, orgulhoso cultor do hedonismo – Otar Iosseliani. Muitas vezes tais abandonos a estas práticas estão almofadadas por um mal-estar qualquer, que pode ser existencial ou assente em algo bem mais concreto, que pode tocar o niilismo ou simplesmente a anarquia destruidora ou libertária. "Iko shashvi mgalobeli" que por aqui se apelidou de "Era uma vez um melro cantor", belíssimo título. Também assim o filme pode ser definido, e no entanto pouco se diz do que por lá se passa. Vamos acompanhar um tipo chamado Gia Agladze durante todo o tempo – num filme do lado do tempo – que é alguém que não é lá muito amigo de trabalhos, rotinas, obrigações ou compromissos. Cultiva então orgulhosamente o ócio, como cultiva o olhar sobre toda e qualquer mulher que lhe agrade à vista, a todas algo lhes promete, a quase todas se desculpa de alguma falta. Vê cair-lhes a luz sobre o rosto e sobre o corpo, fica literalmente estonteado com isso; essa luz e essas belezas que nos são devolvidas em acréscimo pelos milagres do cinematógrafo e da exposição e artesanato da película a preto e branco. Por elas, pelas mulheres, se vai extinguir no misterioso plano final. Está sempre de chegada ou sempre de partida – quando chega está de partida, quando parte está de chegada – sempre no risco de um incessável turbilhão. Muito perdido, sem saber o que fazer como tantos de nós, possivelmente sem grandes ambições, nem o seu vertiginoso rodopio consegue terminar ou mesmo dominar. Todos os que gravitam à sua volta são quase inevitabilidades ou consequências. Entre a possibilidade de um mal-estar próximo do da Delphin do Raio Verde de Eric Rohmer e a simples preguiça – que é o que um médico lhe vai atirar à cara – poderemos ir pela segunda opção. Os copos de vinho, o pão molhado e os cantares alegres, os cigarros que começa compulsivamente a fumar depois de alguém lhe ter gabado a qualidade de não apreciar o tabaco, confirmam essa via. E por aqui sim, o filme é tematicamente tão belíssimo como formalmente. Um pouco de seriedade na análise, "Era uma vez um melro cantor" é um filme sem grande história ou sem história nenhuma em relação ao que habitualmente se espera de um filme articulado, de possibilidades de sinopse bem reduzida para catálogos festivaleiros. Temos então a correr pelo tempo deambulações, olhares, desejos, dissimulações, enganos, momentos de pura verdade, fidelidades...incongruências ou absurdos repetidos ao infinito e não desprovidos de efeito boomerang.

Se tudo pode ter uma narrativa, um sentido, aqui é então o da música. Essa é a matéria que vai entrar em diálogo com o mundo e ordená-lo ou desordená-lo conforme os moods e os pontos de vista. Gia vai acabar por dizer a certo momento: “Eu tenho sempre alguma coisa para fazer...corro o dia todo...e no fim...nada...nada corre bem", é o seu fado. Mas como ele parece ser sobretudo músico, músico inquieto e fervilhante, também vai soltar: "o silêncio irrita-me, o barulho chateia-me". É por aí que Iosseliani vai orquestrando esse amontoado ou essa polifonia de movimentos, em suaves andamentos que se tão entrecortados se unem em fluida e una espiral. Tudo próximo do etéreo, tudo constantemente ameaçado. A música que irrompe pelos centros ou interstícios jamais "enche", nem "preenche" nada, conduz os fluxos materiais brutos e esvanecentes do campo e do fora de campo (o enquadramento que não se contenta com as margens e assim absorve tudo à sua volta) e faz deslizar o fugidio Gia pelo seu escorregadio habitat e seus anseios. O portentoso som ambiente em relação com a peça clássica logo no inicio – da intimidade caseira para o fora até às águas das cascatas, um passeio e relaxamento no campo e...a ponta final que ele vai em grandes corridas fazer ao concerto de uma orquestra, quando como sempre já todos perguntam por ele. Ali todos os sons concorrem em densas relações, aglutinam-se, amam-se e odeiam-se. Nada bate os sons originais da natureza, mas na intromissão dos resíduos fabricados pelo moderno ou pela ambição que polui, só aquele classicismo, que pode ser ou é espelho ou filho de uma natureza em estado primeiro e ardente, pode recompor. Voltar a sublimar. A música vai ter poderes mágicos e esotéricos, vai inclusivamente aclarar a noite e transformá-la em dia, num dos planos mais bonitos que qualquer obra poderia conter. Depois, a música não diegética que se volve diegética pela contemplação do homem ou pelo efeito do álcool, nesses fogachos de perfeição. A música diegética que se estende até à banda sonora do mundo e assim no cinema como na vida tudo se mistura. Ou como resume o professor Zeitblom no "Doktor Faustus" de Thomas Mann: "A meu ver, caberia justamente à música, pela sua índole mais intrínseca, servir de guia para nos fazer sair da esfera de absurda artificialidade e nos conduzir ao ar livre, ao mundo da natureza e da humanidade. " Precisamente, a música com o dom de quebrar o teatro de máscaras da sociedade e os bem-estar aparentes. Relação transcendente. Rumo a uma perfeição: vinho, mulheres, cigarros...música. Uma paixão indefinível que não pára de pulsar. Não é preciso mais nada.

terça-feira, 10 de abril de 2012



"The Last Sunset" de Robert Aldrich está ligado a coisas do espaço do universo constelações de estrelas que brilham lá em cima. Mas também está muito ligado à terra e é da terra. Panteísmo cósmico por onde passam homens. Oposições dualidades embates complementaridades brutais. Tanta coisa para escrever sobre uma obra inesgotável mas vou deter-me por estes caminhos. Um anjo de negro que não parece muito cowboy que diz que esses são bêbados e falidos e que tem alma elegância de um poeta e é poeta – Kirk Douglas. Um Xerife da tradição pura e dura de honra de compromissos e de provisão habitado por Rock Hudson. Kirk destila às mulheres e ao vento os versos de quem já muito amou já muito chagou. Kirk espalha morte rastros de violência de ódio sempre latente. Contradição e anomalia ambulante. Repara-se na reacção seca e silente de quando ele descobre que a sua ex-mulher ou ainda mulher se entrega nos braços de outrem – a economia formal e expressiva de Aldrich essa inteligência dramatúrgica é impressionante. A câmara pode escavar violentamente mas também pode em filigrana ou pacto metamorfosear-se às imperturbáveis sombras. Arte findada. A contrapor à explosão sem limites da implantada agulha sísmica quando descobre que é pai de por quem se apaixonou. Inicia-se a tragédia sempre prevista e só se espera que o sol caía rumo a consumações. Como sobreviver aos lirismos agrestes e empoeirados da terra e dos olhares e cabelos ao vento que se confrontam entre planos com um artificialismo quase opulento Wagneriano de fundo à Shane? Como um todo contido mesmo que em panela de pressão convive com um rebentar pelas costuras pictórico e carnal constante? Tensões...memórias destruidoras…pulsões de sexo...afloramentos húmidos...transgressões ou sensibilidades perto de Melville ou de Musil...corares lascivos...e depois...e depois a impotência conformada. Os céus carregados e as areias movediças. O azul frio e os grãos ardentes. Raiares que cegam e o igualmente azulado fogo de santelmo esses pirilampos noctívagos. Lembranças heranças da totalidade e ascetismo de John Ford e da aspereza do António Reis como muito bem me lembram. E lá dentro bem dentro da profundidade dos enquadramentos a fúria de Nick Ray de um Fuller ou a demência do tão esquecido Robert Rossen do Lilith. O operático grave e ameno como as baladas ao pôr-do-sol sobre os alpendres e o anárquico vociferar dos borrachões contentes. O cão também negro ultra raivoso e certos pássaros a chilrearem algures. Antes do final ainda as mulheres. A mãe e a filha cada uma mais bela e doce do que a outra. Em meio de tanta negrura às vezes macabra é ver os halos de luz sobre rostos transformados em cálices de salvação ou jardins de éden. O vestido amarelo que é um segundo sol intensíssimo e abrasador e prometedor de quimeras. E elas que assim são mas também seguram valentemente armas em punho também matam se assim tiver que ser. Faz-se o que se tem de fazer. O duelo final a um tempo e no mesmo tempo aritmético e possuído por algo de ordem vulcânica. Um Kirk Douglas que heroicamente e mudo faz o seu epílogo. A filha amada que o ama sempre o desejou mais loira do que nunca e em branco fogo como as lágrimas e as flores destinadas. Composição bíblica assim sagrada em zoom out dessas estátuas esculpidas sobre dor. Zoom out em direcção a um qualquer infinito a simplesmente nada. Dali do solo que todos pisámos até ao infinito das nossas perdições.

Mas entre tanta paixão tudo isto me diz muito e me alivia acerca de supostas coerências, projectos estéticos, equilíbrios e coisas assim. E lembra-me que para que as coisas mexam, vibrem, abanem, pode-se e deve-se sacrificar qualquer instituição, qualquer credo. Com certeza seria penosa a recepção e os escritos jornalísticos se este filme surgisse nos dias de hoje, como foi na altura e como o continua a ser via “fazedores da história do cinema oficial e higiénica”. Hoje em dia elogiar-se-ia talvez a fotografia numa ou noutra sequência, conforme os padrões técnicos e estéticos do “comité internacional do bom gosto”, mas reprovar-se-ia tamanhas liberdades e dubiedades e falta de educação…“The Last Sunset”, suprema capela imperfeita. Como uma picareta que sobre a mais resistente e inflexível das superfícies molda clamando às entranhas uma catedral como se fosse coisa de vida e de morte e só no nó da vida e da morte fosse possível.


domingo, 8 de abril de 2012


O mundo revolucionário, mágico e genial do cinema americano dos anos setenta que orgulhosamente rompeu com os mestres e reduziu a pó o sistema de estúdios. Os que se auto – intitularam mavericks ou rebeldes, os que encheram a pança de estatuetas douradas ou os que garantiram a boa vida com os incontáveis dólares. Uns não tiveram mais necessidade de voltar a pegar na câmara e quando voltaram a pegar nela já estavam anestesiados, outros venderam a mãe à custa de santificação.

Agora e aqui, tempo para os loosers. 1971. 1973. Falo de Richard C. Sarafian, falo de James William Guercio. Arte (coisa!) de rua, mais do lado da rugosidade e do visceral das matérias e dos espíritos do que de algo tematicamente prosaico, que jamais o é. Arte do tempo, do tempo perdido, do que dói e daquele que se receia. Longe das perfeições catedráticas, de decorativismos desbotados ou american dreams de t-shirt. "Vanishing Point". "Electra Glide in Blue". Ambos bem mais revisões do western por quem sabe que John Ford é a bíblia do cinema americano e do cinema por homens feito e habitado do que fascinação e utopia à maneira da balada inicial entusiasmante do "Easy Rider" de Dennis Hopper.


Tocados pelo absurdo e estupefacção do modo de habitar e de confraternizar moderno, rodam paradoxalmente quase em seco, e se a velocidade e a potência das grandes máquinas podem humilhar os velhos cavalos dos cowboys, os seus condutores estão cada vez mais isolados. Andam e andam e erram e destroem-se na sua tremenda desilusão, talvez porque já são incapazes de encontrarem as mesas de família intimistas e calorosas do citado John Ford ou as tascas habitadas pelos taberneiros profissionais de Howard Hawks. Triste e enigmático efeito ao retardador.

"Vanishing Point" ou o percurso pulsional, instintivo, irremediavelmente perdido, irracional e auto destruidor de um ex-, um daqueles seres que jamais descobriu para o que realmente serve e que no fugaz instante de radiação redentora se lhe viu estatelar no rosto o fatalista eclipse. Foi condutor de motos e de carros, foi policia, andou pelas guerras e no filme de Sarafian só quer pôr um automóvel em San Francisco, saindo de Denver, em tempo record...nunca se vai saber porquê e o seu rosto impenetrável, desiludido e apaziguado como os muito novos ou os muito velhos não nos vai fornecer chaves.

E se Sarafian ainda fez belos filmes posteriormente – diz-me quem sabe – Guercio fez este Electra e arrumou as botas. Acusado nesses doces anos da contra cultura e dos hippies de fascista e de reaccionário, foi preciso esperar umas boas décadas para se perceber de que lado estava o filme, o cineasta e o policia personagem principal a que o incomparável Robert Blake dá presença, voz, olhar. Esse minorca, inocente apesar de implacável, cavaleiro solitário Blacke. De que lado então? Do lado da solidão e as únicas ganas do seu protagonista é assentar o rabo num confortável carro ao invés do banco da motorizada que dá calos, vestir um fato impecável e fechar-se em escritórios. Mas vai ser fácil perceber que tais empresas desejadas nada mais são do que ironia com os pés para a cova.

"Vanishing Point" e "Electra Glide in Blue" são assim as mais belas e dolorosas rimas de um período, e se o cego locutor da rádio de Vanishing afirma que para o imparável Kowalski a velocidade é a liberdade da alma e que a questão não é quando vai parar, mas sim quem o vai parar, Blacke sabe e revela a outro invisual que a solidão mata mais do que uma magnum 44.

Lá para o final bifurcante do filme de Guercio, depois de um concerto em que vemos o pequeno polícia colocado no seu devido lugar de nada e  de quase ninguém, perfeitamente espezinhado por essa massa supostamente feliz, passamos para dentro de um pavilhão. Ali, um monólogo exteriorizado de ressaca e desabafo para com o referido invisual. Num plano afastadíssimo vamos tendo consciência das sombras e das trevas que envolvem e corroem uma alma, de um silêncio na banda som que é sinal de uma consciência terminal interna. Cada vez mais silencioso o corpo de Blacke e o movimento fílmico. Só depois de algum tempo e de uma provisória paz possível é que a câmara vai avançar muito até a um plano próximo de conjunto, mas...é a impossibilidade de reconciliação, talvez ao mundo e ao próximo, e é de um temperatura gélida. Tem a mesma função e a mesma força do que os muito grandes planos ao rosto granítico do Kowalski que rasga a América no Vanishing. Ao sangue encarnado que tem que correr já só se sente pedra e gamas de cinzentos a tenderem a negros.

Em Electra alguém enlouqueceu não porque sim, mas porque assolou um medo terrivél de se encontrar sozinho ao acordar e assim ter que atravessar o dia e os restos dos dias. E Kowalski preferiu o mais nefasto dos embates a ter de penar eternamente algo que não confessa, que não pode confessar.

Comungando espaços desmesurados, de aridez indelimitável, os rostos e os corpos destes por nada românticos parecem sufocar, suam e quase explodem em vivências e em sentimentos que inexplicavelmente os ultrapassam. À prometida liberdade e respiração de "Easy Rider", estas estradas já assim não se reconhecem, nem simbolicamente nem em termos práticos; estes andarilhos já estão presos pela aridez dos afectos. Dos rasgados horizontes impassíveis e indiferentes de Vanishing até às místicas e esotéricas envolvências Ciminianas de Electra (os grandes pioneiros...Cimino...até ao nervo estertor de Peckimpah - a mais bela e mais evocativa, bucólica e magoadamente nostálgica via do cinema americano), de uma predestinação até a um acordo calado e interior, ambos os filmes tem a grandeza e a humildade de se instalarem em território sagrado, o do western ou o das fundações de uma nação, para experimentarem ou saberem como se anda lá e o que lá acontece volvida a possibilidade não escassa dos sentimentos e das dádivas. Em Electra, a cena em que chamam “chefe” a Blacke e em que todos são índios, num paraíso perdido de uma possível comunhão logo quebrada pela lei sem qualquer grampo de escrúpulos. Em Vanishing, toda a dança sinfónica ou assimétrica das perseguições que a todo o instante pressentem em contra-campo massacres de outros tempos não muito remotos. Os filmes querem saber o que se passa agora nessas antigas terras dos cavalos, gados, onde quando se tinha de ir de um ponto A a um ponto B o sangue podia secar e era questão de vida e de morte e era para sobreviver a todo o custo com possivelmente alguém à espera – isto é, emocionalmente e esteticamente.


Kowalski – papel de uma vida de um transcendente Barry Newman – ou amou uma e uma só mulher para uma eternidade qualquer ou a agudez do desespero é tão profunda que as delicadas carnes que se lhe oferecem já não lhe provocam qualquer vontade. O filme em vez de escancarar só escurece e torna dúbios tais retraimentos, o porquê de se entregar a narcóticos e a nadas do que a tais céus. Mumificado ou zombificado, a chama que outras horas tanto ferveu está agora estagnada ou só corre em conformidade com o pé no acelerador que renuncia a acalmias rumo a vislumbres de mortes. Diferente ou não é o John Wintergreen composto por Blake, das poses de garanhão que fode a também perdida puta do povo pretendida boneca, até ao sorriso infantil com que macaquea jovens belas e frescas, passando pelo sério semblante que é protecção e generosidade, é como o Kowalski de Vanishing, um homem de interior quebrado e convulso mesmo que já de decisão tomada, e a maneira como Guercio o filma de inicio, em fragmentos, tal como quando Kowalski é estátua paralisada no imenso meio que é palco privilegiado para a perda, só confirmam uma doença que é tanto primitiva como nascente ou potenciada pelos ares daquele tempo.

Em Vanishing, diz ainda o speaker, os polícias fascistas perseguem o solitário herói. Em Electra pode-se pegar no discurso iniciático do Policia chefe para com os novatos, em que este lhes chama desde comunistas a fascistas ou a porcos e coisas que tais, para se perceber que aquele policia solitário e também o seu amigo que se mata porque não parece muito mais alegre, podem tanto ser vitimas dos hippies maus como de outros maus quaisqueres que gravitem ao seu lado. Preto e branco estilhaçado, maniqueísmos estilhaçados. Genuíno gesto emancipador.


Cena final de Electra que fala com a de Vanishing e assim perscruta os podres desta monstruosa sociedade que corrompe o mundo, mundo que é belo como belas são as montanhas escarpadas aos ventos e aos pós do Monumment Valley, cena final: Robert Blacke não morre com um brutal tiro de caçadeira de um alternativo, morre é de Solidão. De uma indizível solidão, muito muito mas mesmo muito mais mortal do que qualquer arma de morte. Assim como Kowalski se decide entregar no altar de uma humanidade que só o lixou, indo ao encontro de pérfidos monstros metálicos.

À imensa fragilidade destes frágeis (e extremamente fortes) seres em derrapagem (ou já com aquelas certezas e convencimentos do que não pode ser de outro modo e assim mesmo sem dúvidas) estruturas e construções formais que assentes em princípios sólidos e claros, e assim muito clássicos e nunca gritados apesar das ousadias, tantas vezes vibram e tremem por essa moral de nunca impor egos e sim buscar justos caminhos precisamente nos caminhos percorridos, geograficamente e intimamente, sendo certeza bem material e visível essa operação do olhar e do acolhimento e colhimento de uma fria câmara a tão preciosos e raros sentimentos. Em Electra a sequência da perseguição ao grupo motard é perfeitamente funcional e até banal, mas isto e outros despachos servem apenas para franquear vias a desgraças irreparáveis e comoventes. Uma construção que tudo absorve. Sem ilusões.

E assim...uma singular singeleza. E assim...John Ford. Tão singular que teve de ser apagada. Resíduos ou pedras no sapato que arriscavam revelar a outra face da moeda que ainda hoje se quer escondida – basta ler o supracitado puteiro demagógico de Peter Biskind sobre tal década.

Na indiferença e imperturbabilidade dos olhares finais de Vanishing e de posteriores rituais funéreos, ou na estrada que distende e dilata e eterniza os tempos em Electra, só se acentua o inescapável: esses pontos perdidos nos cosmos que somos nós. A qualquer momento vencemos montanhas, a qualquer momento trememos.