quarta-feira, 31 de julho de 2013


Histórias de pioneiros...Histórias de solitários...











“Ceiling Zero” é um Hawks de 36. “The Long Voyage Home”, um Ford de 40. Se nunca tive qualquer dúvida de que os dois grandes Cineastas-Homens partilharam sempre interesses, obsessões e olhares, nada como a visão conjunta destas duas obras tristes e desencantadas, em que os seus protagonistas, aviadores ou marinheiros, há muito ganharam consciência do seu lugar no mundo. Tristeza, desencanto, ou ainda mágoa, são chaves e tons definitórios, mas que tudo esteja igualmente envolto em sinceridade e derradeira ou primeira utopia, nada mais complexo e fatal para estas pinturas sobre o tempo. Dois amargos doces.
 
Tipos a quem a terra e o seu composto só fez mal, tratou mal, virou a cara, negou os cheiros, as correntes e belezas, as gentes e mesmo esse solo duro e intransigente. Escorraçados e proscritos dela, convidados a saírem, cuspidos, tratados como excrescências ou nocivos dejectos - sem hipérboles, com toda a evidência. Só no mar ou só no céu, no balanceamento constante do grande largo despido ou lá em cima perto das metáforas de Deus mas também da liberdade, se sentem vivos, bem recebidos, na sua casa. Só nesses terrenos uniformes e sem falsas promessas, sem as cores estridentes e sem os berros festivos ou mesquinhos, sempre o mesmo e sempre diferente nas generosas cambiantes, podem ser eles próprios, ruminarem animalmente por estados elementares, pré-educaçãozinha e pré-politicazinha, verdadeiros despidos de máscaras, imposições, traições.
 
Um dos marinheiros de Ford diz que tornado do mar e a ele se entregando de corpo e de alma não mais precisa de pensar nas coisas da terra, que acabou com ela e logo com os seus eternos e irremediáveis problemas. Certos deles opõe a luminosidade do mar à escuridão da terra, como se opõe uma peste a uma purificação; enquanto que o Cagney engatatão de Hawks, no meu melhor e mais denso papel, afirma perentoriamente, não obstante as centenas de miúdas e de êxitos que cá em baixo outros dizem que ele conseguiu, que só lá nas nuvens pode ser ele, vivendo à sua maneira, em contemplação ou em abismo ou não separando os dois, prazeres sem a sombra da corrupção ou da culpa, morrendo se lhe apetecer ou se assim tiver de ser.
 
Chegados a estes berços ou a estes leitos finais prometidos, não se quer sair de lá, e outro dos saberes e ousadias de realizadores assim é não precisarem de mais espaços do que a sala de controle dos aviões e o bar de Ceiling ou os puteiros e demais degredos de Voyage. O resto nem fora de campo parece ficar, antes num desprezo ou num limbo merecido. Cartografias não só dos rostos, movimentações ou palavras dos deserdados, mas de uma humanidade toda enquadrada ou emplacada em quadros cerrados, austeros, condensação onde dilatações e fugas internas se espraiam mais agudas.
 
Todos sem casa, mesmo o Wayne de Voyage que se tenta enganar constantemente, escolheram o que está entre ou acima do terreno seguro para assentarem arraiais, tendo no sangue a eterna temperatura ou a eterna flutuação dos chamados irresponsáveis. O Tex de Hawks é outro cúmulo, outro extremo, outra deformação dos bons modos, alguém que também se prefere imolar para um grande momento do perene amigo do que voltar para o antro de terror e ostracismo que é o seu lar de fachada com o seu carrasco. Assim como o violento soco final de Cagney antes do seu revolucionário e progressista apagamento, impulso imperial de quem decide que chega de aturar isto, esse soco que depois juntará ou não dois jovens tenros, soco que é um acto de amor e uma sublime dádiva, de onde me parece que nem a tal da redenção parece fazer sentido.
 
É também Cormac McCarthy que afirma, lá para os crepúsculos de “Blood Meridian”, que alguns homens fazem a guerra para combaterem a solidão. A doença da solidão. O mesmo o escancarou no cinema Alan Dwan, ou Capra ou Walsh, ou os dois senhores de que venho falando. Homens que se queimam por ir à guerra, que ardem por ela, se estraçalham, flagelam e consomem interiormente e exteriormente quando estão no descanso da pátria ou numa aleatória evasão , pois jamais o quotidiano lhes consegue superar ou sequer aproximar de emoção e adrenalina o que passaram nos campos de batalha.
 
Nada chega para quem se arrepiou com a careta da morte, como nada se equivale ao eterno leite ou embalo de uma Mãe. Quando já não há guerras ou desafios e a espera é sentida como uma tormenta, quando a chatice é de morte como o era sempre em terra para o Ishmael do “Moby Dick”, certos homens práticos, vendo que não podem descarregar munições ou espetar baionetas pelos estercos, indiferenças ou progressos infames da vil humanidade em que caíram, decidem discretamente retirar-se para longe, como dizem que os gatos fazem para findar, lá para as profundezas acolhedoras das águas ou no delicado algodão celeste. Aí encontram os seus anjos, as suas ninfas, sereias, o absoluto.
 
Dos altos, dos charcos ou de qualquer canto para bicho do mato, esses tais cagam imperturbáveis para a escumalha castradora, tendo alcançado a sua eterna droga e a sua eterna paz, não sabendo os outros que quem foi abandonado foi a maioria e não os happy fews que irão tombar nas estrelas ou nas pérolas que os amaram. A estabilidade na instabilidade, os sonhos no sonho, a vida na morte. John Wayne fuma descansadamente no turbilhão do caos final de “Sands of Iwo Jima”, em pleno inferno onde se ousa colocar uma bandeira no topo do mundo que ali é o Monte Suribachi, quando é atingido fatalmente da maneira como só aos grandes ou belos falhados é permitido – nada a ver com a ordem normal ou os orgulhos da vidinha. Cá se fazem cá se pagam, cada um vai ter direito aos brilhos ou às tempestades que provocou.
 
Belos e malditos parecem ser quase todos, o que amplifica o estranhamento que só não o é se formos pelas vias impedidas da sinceridade. Belo Cagney, belo Wayne, belo Pat, Stuart, Mitchell, Ward…Uns para quem as mulheres do ameaçador palco servem talvez para que o tempo passe rápido e imprevisível antes de voltarem para a autonomia e para todas as possibilidades, outros que pela bebida ou por últimos sonhos tentados, ilusões ilusórias, ainda pensam na palavra amor ou no aperto de coração que certo dia terão sentido. Já se esqueceram, como os muitos homens com cicatrizes de Hawks, como esse polidor de metais que já chamuscou as asas e que é uma das figuras mais comoventes de que me lembro, uma promessa para todos eles, de onde a capacidade de amar uma mulher foi aniquilada pelos felizes anestesiados estruturadores.
 
Que essas marcas no rosto e mais ainda na alma sejam aceites sem gritaria ou sem recursos, silenciosamente e detentoras do seu segredo inviolável, que a velhice e os velhos amanhãs que cantam estejam definitivamente enterrados na elipse da vivência do momento presente, que a acomodação possa estar na sua extremidade, tudo está na medida certa e acabada de uma moral que nada tem a ver com atrofios, derrotismos ou até mesmo niilismos, antes é o já referido retiro de Cagney que se mantêm fiel até à última, pioneiro até morrer, moderno e teimoso como um cepo antigo. Mas um pioneirismo original, fundador, desbravador, nada que ver como os aclamados fanfarrões das manchetes.
 
Chegados a “Rio Bravo” ou a “The Last Hurrah”, onde a fidelidade e a lucidez espantam e limpam tudo ao seu redor, como num poema de Sophia, é a constatação de que o homem faz o seu destino e vai para onde quer. Não pediu para nascer e agiganta-se ou devora-se a seu gosto. Quem o negar leva um soco tão potente como o de James ou o de Stewart a Wayne num certo Ford, mesmo que nunca se negue que o “eu fico”, como o “eu luto”, é o que de maior se pode almejar, é o que James conseguiu no final de Ceiling. O que John e Howard trilharam e suaram até se despedirem deste lado.
 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

 
 
“Onde Bate o Sol”, segunda longa-metragem de Joaquim Pinto realizada em 1989, abre com um largo plano do céu rasgado pelos vapores de um avião, parecidíssimo com um que Fernando Lopes também fez pelos inícios de “Matar Saudades”. Tanto num como noutro o avião surge-nos longíssimo, praticamente um risco animado na pelicula, para nos localizar, e para o filme se localizar, longe dos aeroportos, das capitais e de certas leis.
 
Assim como no belíssimo e cosmicamente sussurrado “Uma Pedra no Bolso”, tudo parece e é fragilidade, filigrana, mínimo, dos meios técnicos aos actores e não-actores, para nos momentos decisivos onde as coisas acontecem e abanam se tornar extremamente coeso, forte, físico. Dessa horizontalidade etérea da primeira imagem que logo desce em panorâmica total para as marcas e cicatrizes de um rosto até à profundidade em que o filme fecha, com dois seres caminhando verticalmente e mesmo desvanecendo-se no que pode ser a consumação dos segredos e descobertas de uma trama igual e logo diferente de todas as outras, tudo se pode passar.
 
Rodado e vivido em Vouzela e em idênticas regiões ingremes e agrestes, solares e faiscantes, a cidade e a sua poluição vão ser um lugar a evitar e o comboio vai teimar em não regressar desde a severa chegada encantatória e ambígua do protagonista. Quando esse regresso infame se dá, não pode durar. Protagonista que encontra um mundo que parecendo tão fora dele é verdadeiramente mundo, tão às avessas como o que deixou e tão propicio à  perdição, efabulação e caos. É a irmã que parece estar a desperdiçar a vida nas aparências quando podia ter tudo a seus pés, o ajudante da quinta onde tudo se passa que lhe mostra o que se calhar nunca esperou, sentimentos abafados e proibições imemoriais, enfim, também a letargia e desinteresses de que parece padecer a encontrarem terreno fértil para vingarem. A cena do primeiro almoço é assustadora de espelho e projecção de um ontem como hoje e assim de um fado muito nosso.
 
Entre cartas trocadas e queimadas, passeatas elipticamente sugestivas e detentoras de ramificações que baralham toda a aparente fina linha narrativa – esse pudor envolto ou enleado em urgente desejo – noutra queimante batalha, bailes, discotecas ainda suportáveis e vinhos de libertação com consequentes pagas, destrezas mas igualmente melindres de homens da terra e da guelra, o trabalho deste grande cineasta artesão volta a pôr tudo em causa, não se filiando em nenhum partido ou corrente. Nem arte povera, nem amadorismo no que tanto superficialmente se apreendeu da palavra e do seu modo de fazer, nada de teorias, desculpas ou cauções.
 
Joaquim Pinto dá-lhe com tudo do pouco que dispõe, dá-lhe com o arsenal todo e com a alma que vai sobre o fundamental, que é a realidade que está à sua frente e que se move da mesma maneira ardente com a sua humilde câmara ou com a mais sofisticada Panavision. E logo a abrir, quando Nuno é conduzido da estação para casa. Complicada filmagem dentro de um carro antigo em que o plano fixo sobre o conjunto de dois varre perfeitamente e limpidamente a cena? Nada disso, filma-se como se estivéssemos num qualquer auge da sagrada Hollywood, verdadeira atitude Hawksiana de profissionalismo, classe e amor, que seria depois levada ao extremo absoluto e ao perigo de “Rabo de Peixe”. Campo, contra campo, questão dos olhares e das escalas, definição exemplar do espaço, raccords apurados e decupagem finíssima, a depuração máxima que se conseguir, e por aí fora. Planos de pormenores, largos, lateralidades, frontalidades, tudo o que a dramaturgia e os sentimentos pedem o cineasta capta através da distância certa, da posição justa, com a duração preciosa. Nem mais nem menos. Poética da verdade. Máxima restrição – máximo saber – máxima disponibilidade - máxima liberdade.
 
Uma necessidade extrema de fazer o filme, captar ambiências inauditas como arbustos a arderem a vermelho e crepúsculos desmaiados, e sei lá, confrontar a beleza também muito frágil e jorrante de Laura Morante com a pronúncia local e a tristeza nos olhos de um amante calado e também prisioneiro que só parece ser dali e não um actor lisboeta que apanhou boleia e analisou vídeos de inspiração escolar. Necessidade extrema que não cede jamais lugar à mediocridade ou ao facilitismo. Em reinos de algodão, antes quebrar de que torcer, antes almejar do que se camuflar ou acobardar. No fundo, é aquele jogo de futebol empoeirado e esfolado que por lá se joga, onde entre bordoadas e magia destilada no jogo de cabeça, se filma mais uma vez o que em Portugal nunca se filmou, sempre tão preocupados estamos em não sairmos dos patamares operáticos e das altas culturas vigentes. Joaquim Pinto, seu Clint Eastwood ou seu Robert Mulligan dum raio, chega-lhes com força e mostra-lhes, eles merecem!
 
O que é imenso e abre para respirações, ritmos e experiências próximas do que Eric Rohmer andou toda a vida a perseguir e que ao contrário de Pinto o deixaram fazer sempre mais uma vez. Esse caudal que se surge com a aragem de um naturalismo espraiado é sempre potenciado pelo fogo de um realismo cru e despido de efeitos da paisagem, dos gestos, do cinema. O que nada tem a ver com uma ideia inocente de pureza ou de virgindade, para o contradizer e abismar para terrenos irracionais ou até fantásticos de cada mente que por lá galga, está a banda sonora sempre a entrar em conflitos, contradições, porradas violentíssimas com o que está em cena. Sejam tratores sejam ovelhas. Tal como o corpo de Joaquim Vicente  a falar pela voz de Luís Miguel Cintra, numa ilusão perfeitamente íntegra.
 
Depois de tanta subida e descida, dito e retraído, escancarado e aferrolhado, o sol bate lancinante e dorido como um fim definitivo e percebe-se a tal história de todos os termos serem portas revolucionárias ou ofertas divinas ou, mais terrenamente, a inexorabilidade da vida. Nada a fazer, tudo a caminhar. Venha a vida, a morte. O arco ou a grande coisa continuará a girar imperturbavelmente. Se não se quiser, nada de lá dos altos.
 
O porquê de Pinto ter tão curta obra desta em relação a tantos que muito mais filmaram e não têm nem um pouco do seu talento e vivência permanecerá um mistério. Ou então pode-se dizer que o seu domínio superior de coisas como o som ou a montagem ou a fotografia foi útil a outros e que também nesses aspectos há poucos que se lhe comparem. Na dita debilidade de quase todas as suas realizações a solo, o que lá está, enquadramento a enquadramento, suspiro a suspiro, aparece velado e agigantado pela força e evidência da verdade. Essa desarmante verdade de quem não quer ser o que não é, de quem se mexe escancarado no reino do sensível, ali onde a falha pode ter a essencialidade ou a causa do delicado sublime.