“Die große Liebe” é o sonho ou o pesadelo com
que Otto Preminger irrompeu no movimento do cinema ainda na sua terra natal e
algo indefinível que ficou muito tempo num nevoeiro que só pode estar de
consonância com o que lá se adensa, quebra, fragmenta, num inacabamento formal que
faz corpo com o desfasamento consciencioso. À primeira vista é um conto como
muitos de um soldado desaparecido e da espera cega da sua mãe. Mas logo na
sequência auroral – verdadeiramente e sem poesia minha- da chegada do comboio
que traz alguém de longe e que é paralelamente montada com a fé materna, entre
cânticos ressoantes, ruídos vivos sabe-se lá de onde e uma atmosfera carregada
de aleatório, fica-se a sentir que tudo pode acontecer para lá da razão. A mãe
não tem a cria há 10 anos, o homem que chega também parece procurar uma
substituição para a sua que já não respira. Nesse vertigo, a típica prometida
que não pode esperar e arranja uma boa peça que agrada a toda a gente e
sobretudo às finanças parentais. O que sucederá é uma comédia de enganos que se
emaranha pelo drama para nunca sabermos se se trata de riso ou de choro o que
sobeja, num dos desenrolares pictóricos e melódicos mais estranhos e de beleza inefável
que tal período – entrada no desconhecido sonoro e poderio total da imagem –
criou.
Uma perscrutação de 360º de uma câmara que vai da
estátua estoica da crente ou de quem se acerta com a farsa até ao espaço dos
espectros para a instalação de um presente insuportável; o momento Chaplinesco
da salvação da menina das águas que de uma só vez volve o “vagabundo” em herói
e entrega um milagre à medida de quem espera assim por ele; a Kafkiana burocracia
no local do jornal que tudo revirou até à simplicidade da solução que a faz ir
ao encontro procurado. Só falo da Mãe porque é ela quem faz todo o seu filme
que é o que vemos explanar-se em impossibilidade consumada e sem perguntas, sem
regra, nem alta moral. Quando se coloca em causa todo o mecanismo consciente e
inconsciente dela, momento perto da humilhação, o não filho começa a tratá-la
por Mãe. Até ao fim da comédia, até ao fim do drama. Filigrana lancinante.
Num cerramento feito em planos próximos, entre
velas consumidas na dilatada noite, tiquetaques persistentes, e deambulações
dos personagens e da encenação quase sempre de foras que não vemos para os
dentros sempre pesados, espécie de desfiles que provocam os factos, a obsessão
pelo tempo vai urgindo. E uma encenação outra que parte ou desequilibra ainda
mais o todo, esse gélido teatro à la vaudeville que precipita a referida
aceitação materna e ainda faz cair de um firmamento falsamente estrelado outro
anjo para a beira do errante rebatizado Franz que nada pede e tudo lhe aparece
de mãos vazias. Momento que se vai estendendo e distendendo na acção, que alarga
o nonsense, e aponta à tragédia que tanto absurdo teria de provocar. O futuro
planeia-se rápido demais, a coisa começa a dar para o torto e as cartas a distribuírem
mal-entendidos até aí ausentes, mas o vento vira de novo e acaba-se a sublinhar
a irrisão e o domínio da sorte e dos altos.
Se tudo parece acabar mesmo bem, sem mortos nem
feridos, em riso finalmente pacificado sem escarninhos, tudo o que para lá do términus
se pode imaginar pelas tamanhas ousadias, bem como o que ficou em elipse da
utópica e escandalosa manietação do curso dos acontecimentos e das relações que
não soubemos, aplica à beleza e harmonia um reflexo de gravidade que só pode
lembrar o Lubitsch de “Broken Lullaby” ou o Max Ophüls das operetas em palco
também Vienense. Se o show de salão é a seriedade e o aparelho de rua de truta
e meia que canta ou vocifera quando se vai pela última vez a negro é o baixo, não
pode haver melhor imagem para toda a reversibilidade que Preminger mete em cena
do que essa oposição - tornar o inverosímil verosímil pela necessidade e
acreditar supremo, flirtando com a metafisica e consumando mesmo o arrojo num
desprendimento pelo absoluto, pôr à prova a lógica. Lógica, que é todo o desafio
e corda bamba desta obra admiravelmente suspensa na crença da beleza para lá de
todas as considerações e impunidades. Ou um longo sono que reverte toda a
coerência do chamado real ou do guião aprovado, possibilitando a magia da
varinha da fada mesmo que só no efémero hiato do hoje. Fascinante gesto que
suprime a perdição.
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