quarta-feira, 21 de maio de 2014

 
 
 
“Die große Liebe” é o sonho ou o pesadelo com que Otto Preminger irrompeu no movimento do cinema ainda na sua terra natal e algo indefinível que ficou muito tempo num nevoeiro que só pode estar de consonância com o que lá se adensa, quebra, fragmenta, num inacabamento formal que faz corpo com o desfasamento consciencioso. À primeira vista é um conto como muitos de um soldado desaparecido e da espera cega da sua mãe. Mas logo na sequência auroral – verdadeiramente e sem poesia minha- da chegada do comboio que traz alguém de longe e que é paralelamente montada com a fé materna, entre cânticos ressoantes, ruídos vivos sabe-se lá de onde e uma atmosfera carregada de aleatório, fica-se a sentir que tudo pode acontecer para lá da razão. A mãe não tem a cria há 10 anos, o homem que chega também parece procurar uma substituição para a sua que já não respira. Nesse vertigo, a típica prometida que não pode esperar e arranja uma boa peça que agrada a toda a gente e sobretudo às finanças parentais. O que sucederá é uma comédia de enganos que se emaranha pelo drama para nunca sabermos se se trata de riso ou de choro o que sobeja, num dos desenrolares pictóricos e melódicos mais estranhos e de beleza inefável que tal período – entrada no desconhecido sonoro e poderio total da imagem – criou.
 
Uma perscrutação de 360º de uma câmara que vai da estátua estoica da crente ou de quem se acerta com a farsa até ao espaço dos espectros para a instalação de um presente insuportável; o momento Chaplinesco da salvação da menina das águas que de uma só vez volve o “vagabundo” em herói e entrega um milagre à medida de quem espera assim por ele; a Kafkiana burocracia no local do jornal que tudo revirou até à simplicidade da solução que a faz ir ao encontro procurado. Só falo da Mãe porque é ela quem faz todo o seu filme que é o que vemos explanar-se em impossibilidade consumada e sem perguntas, sem regra, nem alta moral. Quando se coloca em causa todo o mecanismo consciente e inconsciente dela, momento perto da humilhação, o não filho começa a tratá-la por Mãe. Até ao fim da comédia, até ao fim do drama. Filigrana lancinante.
 
Num cerramento feito em planos próximos, entre velas consumidas na dilatada noite, tiquetaques persistentes, e deambulações dos personagens e da encenação quase sempre de foras que não vemos para os dentros sempre pesados, espécie de desfiles que provocam os factos, a obsessão pelo tempo vai urgindo. E uma encenação outra que parte ou desequilibra ainda mais o todo, esse gélido teatro à la vaudeville que precipita a referida aceitação materna e ainda faz cair de um firmamento falsamente estrelado outro anjo para a beira do errante rebatizado Franz que nada pede e tudo lhe aparece de mãos vazias. Momento que se vai estendendo e distendendo na acção, que alarga o nonsense, e aponta à tragédia que tanto absurdo teria de provocar. O futuro planeia-se rápido demais, a coisa começa a dar para o torto e as cartas a distribuírem mal-entendidos até aí ausentes, mas o vento vira de novo e acaba-se a sublinhar a irrisão e o domínio da sorte e dos altos.
 
Se tudo parece acabar mesmo bem, sem mortos nem feridos, em riso finalmente pacificado sem escarninhos, tudo o que para lá do términus se pode imaginar pelas tamanhas ousadias, bem como o que ficou em elipse da utópica e escandalosa manietação do curso dos acontecimentos e das relações que não soubemos, aplica à beleza e harmonia um reflexo de gravidade que só pode lembrar o Lubitsch de “Broken Lullaby” ou o Max Ophüls das operetas em palco também Vienense. Se o show de salão é a seriedade e o aparelho de rua de truta e meia que canta ou vocifera quando se vai pela última vez a negro é o baixo, não pode haver melhor imagem para toda a reversibilidade que Preminger mete em cena do que essa oposição - tornar o inverosímil verosímil pela necessidade e acreditar supremo, flirtando com a metafisica e consumando mesmo o arrojo num desprendimento pelo absoluto, pôr à prova a lógica. Lógica, que é todo o desafio e corda bamba desta obra admiravelmente suspensa na crença da beleza para lá de todas as considerações e impunidades. Ou um longo sono que reverte toda a coerência do chamado real ou do guião aprovado, possibilitando a magia da varinha da fada mesmo que só no efémero hiato do hoje. Fascinante gesto que suprime a perdição.

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