"testemunho do que vai durar contra o que parece que está para durar".
J.B.C
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
Dans votre mise en scène, vous cultivez aussi l'aléatoire et l'accidentel ?
La dimension documentaire des films m'intéresse beaucoup. J'aime bien saisir des choses qui viennent de la réalité à l'intérieur d'un plan. Mais il n'y a aucune prétention à vouloir montrer de "l'arraché" à la réalité. Dans le recueil de mes chroniques des Cahiers, Poétique des auteurs (Cahiers du cinéma, 1988), il y a un article que j'ai intitulé Le Papillon de Griffith, à propos du Rayon vert de Rohmer. C'est un cinéma dans lequel le passage d'un papillon dans un plan appartient à la nature du plan et renforce l'impression de réalité. Beaucoup de cinéastes attendraient que le papillon passe pour faire jouer les acteurs, parce qu'ils considèrent que le papillon distrairait le spectateur de l'action dramatique. Alors que chez Rohmer, tout demande que le plan soit habité par les choses de la réalité. Chez Resnais, Sternberg ou Visconti, un papillon ne peut pas passer. Chez Kubrick non plus, interdit de papillon ! Chez les Straub, Ford, Walsh, Naruse ou Rivette, le papillon peut passer. Le papillon ne peut passer que chez les cinéastes où il y a de la contemplation du monde.
JEAN-CLAUDE BIETTE
La dimension documentaire des films m'intéresse beaucoup. J'aime bien saisir des choses qui viennent de la réalité à l'intérieur d'un plan. Mais il n'y a aucune prétention à vouloir montrer de "l'arraché" à la réalité. Dans le recueil de mes chroniques des Cahiers, Poétique des auteurs (Cahiers du cinéma, 1988), il y a un article que j'ai intitulé Le Papillon de Griffith, à propos du Rayon vert de Rohmer. C'est un cinéma dans lequel le passage d'un papillon dans un plan appartient à la nature du plan et renforce l'impression de réalité. Beaucoup de cinéastes attendraient que le papillon passe pour faire jouer les acteurs, parce qu'ils considèrent que le papillon distrairait le spectateur de l'action dramatique. Alors que chez Rohmer, tout demande que le plan soit habité par les choses de la réalité. Chez Resnais, Sternberg ou Visconti, un papillon ne peut pas passer. Chez Kubrick non plus, interdit de papillon ! Chez les Straub, Ford, Walsh, Naruse ou Rivette, le papillon peut passer. Le papillon ne peut passer que chez les cinéastes où il y a de la contemplation du monde.
JEAN-CLAUDE BIETTE
Castelos em penumbra tortos às vezes oblíquos e tão assustadores como os trovões que vezes sem conta o violam à descarada. Chuva ou as luas que lhe espreitam nas negríssimas noites. Animais que pelas pedras ou vegetações circundantes de soslaio espiam. Também por lá crianças de modos assaz assustadores. Serventes deformadas. Espelhos que afeiam corpos e linhas e vidas e pianos que sozinhos tocam. Maldições seculares segredos sagrados. Poderia estar a referir-me a filmes de Ulmer ou de Wise ou até mesmo daqueles italianos sanguinários que não só Argento. Poderia estar a pensar em contos de Lovecraft. Ou nas retorcidas pinceladas góticas. Portanto muito pouco surpreendido quando no genérico aparece o nome de Joseph L. Mankiewicz, que de “The Ghost and Mrs. Muir” passando pela “Cleópatra” ou esse estranhíssimo western “There Was a Crooked Man...” sempre espicaçou qualquer expectativa. Nesta que é a sua segunda obra o tom e o foco vai do encantatório ao demencial, do conto de fadas até ao pesadelo. A Gene Tierney que aqui vive Miranda Wells é uma jovem sonhadora e imaculada, severamente educada pelo amor a Deus e ao bem. É filha de camponeses e pelo campo viveu até se fazer mulher de corpo inteiro. Simples mas ansiosa por um inesperado ou um cavaleiro que dali a resgate. E uma carta chega que é a carta da perdição. Um dito parente distante que naquela terra já todos se esqueceram ou nunca se lembraram convida-a para o castelo das suas fantasias infantis para ajudar a tomar conta de uma filha pequena. O Pai que comanda uma família Fordiana abre a bíblia e sai-lhe uma passagem de Abraão que parece augurar boas perspectivas. Logo todos se encontram na sempre grande Nova Iorque e o apelidado parente é nada menos do que Vicent Price. Já se está a ver, aos olhos esfíngicos de Tierney opõe-se o semblante impenetrável e a postura hierática e vampírica do Price das casas de cera e de usher. E por encantos tamanhos e convicções de ferro lá a arranca ao Pai. “Dragonwyck” é uma peça de ambiências soturnas escorregadias húmidas enleadas a um manso barroquismo arquitectónico mas carregado de profusões simbólicas barroquismo formal nos seus claros-escuros e composições desviantes.
Perversa e fascinante é a complexidade e a evolução de Price. Da simplicidade e simpatia inicial para os laivos e certezas totalitárias com que verga os que nas suas terras trabalham e se senta em imponentes tronos, do respeito pelos valores sagrados daquela família até à ausência total de crenças e ao niilismo desesperante ou do romantismo que cedo dedica a Tierney – “o vento deve desfrutar muito quando toca a tua cara bela” – para no fim contaminar e semear o seu lado mais lúbrico e cruel e prepotente – “gosto de ficar nos cimos para ver as montanhas, as nuvens, o infinito…para ver de cima”. Só que quem tudo quer, das terras às ambições desmedidas aos servos ou a Tierney ou ao impossível filho acaba por se perder e num rol de delírios – assassina a mulher que é apenas um fantoche de aparências, planeia destinos idênticos para quem lhe resiste, isola-se para tudo de cima controlar – chega à loucura prometida. Tierney permaneceu sempre miúda e no berço embora encontro implacável ao deslumbramento dela a estética referida e desditosos acontecimentos, talvez sim talvez não merecidos. Mas o filme é do lado dela bem como a sorte. Pelos olhos dela então pelo seu estado mental. Não renegou origens e solicitou para si o campo e as crenças e o regresso final depois das tempestades, mesmo que isso lhe tenha custado a integração oficial dos falsos. No termo o castelo e as maldições fecham-se e um raio de esperança e de paixão surge candidamente naquelas alvoradas mais luzentes que pretas. Assim como a candura imensa deste filme tão simples e tão aventureiro nos seus significados e promessas e riscos que recupera e acredita no cinema como esse paraíso quimera perdida de humanos e monstros e luzes e sombras e todo o fascínio de uma arte que assim olhada parece sempre nascente. Vai-se um bocadinho a estes mundos e as estas feeries e volta-se…o cinema. Mank sabia destas coisas e seguir o seu percurso será sempre fascinante.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
“Liebelei” é de 1933 e foi realizado por um cineasta alemão, Max Ophüls. “Strangers When We Meet” já data de 1960 e tem a assinatura de um esquecidíssimo americano de seu nome Richard Quine. Ophüls tem as suas merecidíssimas páginas na história do cinema oficial ou não e o seu monumento final, “Lola Montes”, é o ponto culminante de uma mestria formal e sexual com escassos pares, um dos mais singulares cineastas da mulher e do lírico e das desmesuradas paixões que tudo quebram. De Quine conheço bem menos mas valeria a citada obra para nada dever aos maiores dos maiores, ainda que eu garanta que o vale a pena descobrir em objectos bem diferentes. Pode-se defender que ambos nada têm em comum bem como estes dois filmes se diferenciam como água e vinho. Ou então poder-se-ia evocar o santo nome do melodrama em vão e meter-lhes a mesma etiqueta. Mas não vou nessa e para o “Liebelei” poderia dizer como João Bénard da Costa que tão absurdas mortes finais porque tão absurdas razões e na surdina e emoção pura com que tudo isso é mostrado retira qualquer vontade de assim o considerar. “Strangers When We Meet” já é caso mas bicudo, filmado à largura e com as cores matriciais ou Sirkianas de tão famoso e cultivado género por essas alturas, tudo parece estar dentro dessas normas e desses códigos, o patético inclusive. Fico-me por agora mais neste filme porque a coisa é mais ambígua do que parece. A situação é simples e antiga, um arquitecto de sucesso num dos seus pontos mais altos da carreira, casado e com filhos, é apanhado por uma loira também casada que todas as manhãs leva a sua criança à escola. Conhecem-se nesse ritual e tudo o que se seguirá terá o condão de naquela sociedade despertar escândalo. Kirk Douglas, o arquitecto. Kim Novak, a loira. E se Kirk é tecido a obsessão e persistência e laivos de loucura, no trabalho e no amor, Novak, luxuriante e de presença que tudo à volta engole está paradoxalmente ou não ainda envolta em aura funesta e libidinosamente fantomática da Madeleine/Judy que em “Vertigo” tudo aniquilou, dois anos antes. Lá para o meio ou coisa assim existe um momento particularmente enigmático e obscuro quando numa das vezes em que Kirk encontra supostamente Novak sem querer, ao chamar por ela –Maggie, diminutivo que só o pai algum dia lhe ousou chamar – esta pergunta-lhe a quem ele chama e quais as razões ou audácia, mas isto com uma certeza e igualmente estranheza que nós e Kirk ficámos por momentos sem saber onde é o chão e onde é o tecto. Essa loira jamais foi pálida como ali, severa como ali, assustadora como ali. Ou como contar os instantes que antecedem e concretizam o primeiro beijo que instala o arrojo, nada menos do que assombroso: ele chega-se a ela e vai-a amarrando, ela diz que não que não faça isso, ele faz, ele vai beijá-la a qualquer momento e o impulso é irreprimível, ela diz-lhe insistentemente para a não beijar, ele beija-a contundentemente. Ela a realizar ou ela tramar? A mesma coisa? E depois pelas praias tórridas, pelas pedras e pelo mar, pela casa que eles constroem mais para os dois e para os seus sonhos e desejos do que para o escritor fanfarrão, os encontros enublados em sítios enublados ou os desaparecimentos dela e as dúvidas volvidas certezas e certezas volvidas dúvidas, a noção de que tudo aquilo não existe e é tão fruto da imaginação e vontade de escape e perigo do arquitecto tal como o foi para o James Stewart no Hitchcock citado, é para mim deveras atordoante. No final, depois dos problemas com os respectivos pares, muito mais ele do que ela, e de eternas fugas imaginadas, dizem adeus um ao outro na dita casa das montanhas. Um adeus para sempre que ninguém acredita numa casa hiper-irreal que parece flutuar nas suas cores em arco-íris veladas. Estamos num céu que para eles será a partir daí como inferno ou apenas nos estoura na cara um mundo para lá deste em que aqueles encontros abismais afinal sempre ou nunca se deram?
Pode ser que uma fantasma o tenha transformado em outro fantasma para o resto da vida, pode ser que não. Sem resposta. Tudo tão carnal e ao mesmo tempo de tão fina ilusão, eis o mistério e o triunfo da obra que a todos os instantes extravasa os pressupostos melodramáticos e já é outra coisa de que não disponho nome.
Volto a “Liebelei” e a uma história só aparentemente bem menos fora do mundo e bem menos flutuante – mesmo que uma das mais belas cenas do cinema se passe na neve e num pequeno cosmos de pura magia – do que a de Quine. Na Viena dos inícios do século vinte somos imediatamente introduzidos a um universo operático que orquestrará a tragédia e a gravidade de um tenente que possui às escondidas uma baronesa comprometida com um seu superior e tais consequentes inesperados. Esse tenente, de nome Fritz, conhece numa noite também ela nublada e carregada uma jovem aspirante a cantora e perde-se irremediavelmente de amores. Vai a correr acabar com a baronesa mas o barão ou seu general conclui as suas suspeitas e faz um ultimato fatal a Fritz. Naquele tempo e naquele contexto a honra era coisa absurdamente posta acima do amor e o duelo entre os dois homens é inevitável. Pertence ao barão o primeiro tiro e já não se vai escutar o segundo porque em of e lá longe no contra-campo um amor que tudo prometia é assim espezinhado. A jovem inocente de nome Christine nem em devaneios ou nos seus piores pesadelos poderia tal coisa supor e depois de uma audição que lhe correu às mil maravilhas só quer é beijar e abraçar o seu amado. Procura-o em todo o lado mas quem encontra são os portadores de tão pavorosa noticia. Ophüls cola a câmara à jovenzita e detêm-na a perscrutar o imperscrutável, a adivinhar e a repudiar e ainda a acreditar que tudo não passa de algo transcendente que se vai desvanecer. Terror do presente total e aleatórias distensões. Homilia e estilhaçamento. Mas o ambiente e as certezas adensam-se e adensam-se. Levanta-se e começa a descer umas escadas, e sabemos como este cineasta sabe filmar escadas. Abre uma janela e o plano seguinte já nos mostra uma multidão num passeio em volta de um corpo terminado. Antes um salto até ao desconhecido do que a puta da loucura. À memória inapagável, o risco sem limites. Seco, inaceitável, triste sequência de sabor para lá do amargo. O plano final é o de um cemitério gelado que enegrece precisamente a citada sequência do trenó na neve e que assim pode funcionar como união dessas condenadas almas. A imaculada e o honrado. Ó eternidade gritada um dia.
“Strangers When We Meet” e “Liebelei” têm progressões, movimentos, atmosferas e diálogos para lá do real ou do natural, instaladas campo do irreal. Se os amantes do primeiro parecem ter planado acima da terra para no fim do filme, que não o fim da história deles, dizerem que basta de tanta transgressão e preferirem uma suposta “normalidade”, já não sei a dimensão em que tudo aquilo afinal ficou e o que em cada um deles irremediavelmente transformou e o que se adivinha dali é adivinhavél, naquela paz ninguém acredita e se calhar aquela casa e aqueles altos querem dizer mais qualquer coisa. Já o tenente e a pura parecem ficar unidos no final mas já noutro reino, o dos mortos. Ela tão ainda desarmada percebe ou acredita que naquela vida já não vai ter hipóteses e a ele prefere juntar-se. Naquele momento paroxistico, acreditou-se que para lá da castradora realidade o amor ainda seria possível e um abismo abriu-se.
É provável que só para uns ou só para mim esta leitura faça o mínimo sentido e não delírio qualquer, mas no presumível hiato entre as duas artes, temperaturas e sufocos concordantes. Arte da crença. Quine, a fantasia carnívora e ideada para lá de todos os credos. Ophüls, o amor dos tão jovens que não se conformam na terra. Romanesco enviesado, fendido, carregado. Ambos em certo momento, a arrepio.
domingo, 11 de dezembro de 2011
Cela s'appelle l'aurore
Um dos mais belos filmes de Buñuel, certamente dos mais comoventes, ultra misterioso. Beleza que transborda serena dos encantos daquela terra e de uns homens bons que fazem esquecer o terror da escória. Comovente pelos rostos que exprimem tão nobres e genuínos sentimentos e pelo que no interior se adivinha escaldante, pelas certezas absolutas e pelas torturantes duvidas e contradições. Misterioso ao nível dos surrealistas pois o que ali se sente jamais se ousa gritar ou ostensivamente figurar, tão secreto, tão em filigrana. Doce e trágico a um tempo, de travo indefinível.
E é o filme do espanhol que tem a moral – palavra perigosa e para usar à cautela, sem vacilar muito - mais bonita de todos os seus, não só em filmes penso mas em qualquer obra ou em qualquer conto. Moral da história, isto é.
Amor entre homens e pelas mulheres assim não tinha visto nunca, nestes limites. Vale a pena dar a vida pelo casal puro e desfeito às mãos dos mercenários do dinheiro. Vale a pena ficar com o homem que pela amada perdida brutalmente partiu para o tudo ou nada. E como vale a pena estar do lado do seu duplo ou irmão de coração e perceber que pela quimera encontrada quando porventura jamais esperada, se deve ir até ao fim do mundo. As trocas de olhares que tudo dizem no mais inviolável silêncio, apetece que o tempo aí pare. Que coisa pungente, que alturas e profundezas dos sentimentos aquele final que tudo isso condensa – o seu "outro eu" morto nos braços e o correr posterior para os braços da sua amada, agora sem duvidas. E depois a câmara sobe e eles vão à vida. Por coisas assim, tudo.
sábado, 10 de dezembro de 2011
Há dois fatores determinantes. Em primeiro lugar, a extrema pobreza intelectual da maior parte dos críticos-diretores, visto que todos leram os mesmos livros, vêem os mesmos filmes, partilham dos mesmos valores e, às vezes, até o mesmo vocabulário, e quase sempre o mesmo “método de análise”. Em outras palavras: uma vez que não há olhar crítico, não há uma crítica. O olhar crítico precisa de liberdade, deslocamento e alguma solidão. De experiências, e não somente de conhecimento. Observou Larrosa: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. (...) Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”. O conhecimento não é necessariamente uma experiência. Você pode se deparar com algum conhecimento sem ser por ele afetado. Acreditamos que a experiência do homem se dá pela intensidade de sua relação com o objeto que lhe chama a atenção, que lhe fixa uma obsessão, um interesse que arde sem explicação ou contornos imediatos, num processo de assimilação e integração que implica uma ampliação de ângulo da realidade.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
"O riso é o canto dos anjos".
"A tree grows in Brooklyn" é o primeiro filme de Elia Kazan e pode logo ser o mais belo Kazan, tão magoado como "On the waterfront", tão propenso a brotar e a queimar de lirismo como "Wild River", enfim, tão emocionalmente e nostalgicamente violento como "Splendor in the Grass". Isto para ficarmos em três cumes. Pode ser tudo isto mas faltará sempre o que para Kazan ou Nick Ray ou Fuller era fundamental, um golpe de verdade que obliterasse os mundos e as pessoas captadas e que pusesse o foco em algo que soubéssemos perfeitamente físico e próximo. Visceralidade. Carne. Suor e o sangue que nos corre e escorre e nos faz agir. E as relações...e como são tocantes e ternas e duras nesta Brooklyn a arder de laços humanos.
Uma família e o bairro que as envolve, e tudo isto no mais dentro e no mais intimo que tal complexidade ostenta. Os Nolan, a família com que estaremos duas horas e se quisermos uma eternidade. Temos a mãe, o pai de vez em quando mas no fundo sempre, o filho e a filha que são pequenos mas tão velhos parecem. E mais.
Comecemos por Johnny Nolan, o bêbado e o sem rumo que talvez só o seja para, como se vai dizer, combater a sua falta de talento para ganhar dinheiro. Isso não sabe fazer, mas sabe amar com o coração e a cabeça e o corpo todo. Canta pelas ruas e quando entra em casa. A todos quer alegrar e ver bem. Cumprimenta um a um como se oferecesse sempre algo valioso. Andar a seu lado era como dar a mão a um rei, é o que reconhece a mulher após o turbilhão... Uma criança, portanto. De sorriso tão bonito, tão puro, tão ingénuo. Dos que não sabem jamais distinguir a irresponsabilidade dos dizeres do orgão que comanda a vida, mesmo que com heróicos esforços. Tão, tão inseguro. Tão, tão apaixonado.
Depois, a sua mulher que certa vez lhe vislumbrou esse brilho raro nos olhos que só alguns crentes e desesperados na terra possuem, mas que se assustou pela vida e suas responsabilidades e assim mesmo se esqueceu por tempo fatal. Viria uma redenção sem tempo, ficaria cravada uma marca certamente inapagável do valor das coisas que realmente importam. A entrega final a outro homem só noutra dimensão e distância se adivinha.
Ainda a filha que é anjo protector e consolador do Pai e do irmão também. Menina franzina e delicada que de tenra idade prefere Shakespeare às fábulas e lengalengas instituídas mas que mesmo assim gosta de finais felizes. Devora prateleiras de biblioteca na sua ordem alfabética. Quer ser escritora, fala com Deus e acaba feliz na incomensurável aventura da existência que o filme nos mostra. Frágil e de uma fé sem limites, de seu nome Francie.
Às vezes, em alguns lugares, olha-se lá para fora e tudo faz sentido.
E é sobre tudo isto e mais infinitas galáxias de vida – também não se esquece a tia Sissy que é gozada por amar homens sem conta; a professora que nota a verdade na mentira de Francie e lhe dá a tarte; o engate final do adolescente fã de basebol à mesma Francie; os seus olhares pelas janelas molhadas ou geladas; as idas transformadoras dos irmãos aos telhados, que tanto fazem lembrar o que se vai passar em "On the Waterfront", etc – nesta obsessão pelas pequenas grandes coisas, comportamentos, rostos, andares, famílias, que tão se nota o anacronismo em relação ao hoje, uma nobre tradição, algo que lamentavelmente nas telas contemporâneas pode passar por racionarismo ao "espectáculo do grande" ou igualmente às teorias bem pensantes de fim de curso, pois esses não percebem que o espectáculo e os segredos da vida e disto por onde passámos, sempre serão o essencial da arte. Chamem-me reaccionário, mil vezes.
Filme de anjos, de primeiras vezes e de superação, tal como a árvore selvagem que contra tudo e contra todos teima em crescer sempre, mesmo que vilipendiada. A mestria de Elia Kazan por 1945 é conservar a câmara como elemento altamente preciso e tremendamente sensual que compõe e harmoniza o espaço e a luz e os corpos, que se dispõe para as almas quaisquer que sejam, e já torcer e explodir tudo isso por dentro – o incontrolável que excede o cinema e os truques. Que afecta a invisibilidade da construção e a clareza clássica do recito. A sua modernidade ou o seu temperamento - o máximo de solidificação das formas e dos materiais e, pelo enquadramento adentro, tudo a poder pender para o mais negro ou para o abismo mais inescapável desses destinos. Tal como as imperturbáveis janelas da casa dos Nolan e a neve que se desfaz lá fora. Existem os que confundem os maneirismos vazios e aleatórios da movimentação exterior sobre a cena e só ai fazem coisas "bonitas" e sensoriais (ai os modernos de trazer por casa e os pós-modernos e os que experimentam nas superfícies) e depois aqueles que não desligam uma coisa da outra e onde um suspiro ínfimo lá dentro pode convocar a catástrofe. Aqui é a atenção a esses laços, afectos e dependências, bem como ao afunilamento da esperança, que faz nascer a posta em cena, num sensivél tomar de pulso e de temperaturas a cada singularidade. Superfícies de betão, homens que tremem, e tantas vezes vice-versa, fundamental. A justeza de tudo isso.
Elia Kazan, pulso de aço e interior convulso.
Elia Kazan, pulso de aço e interior convulso.