segunda-feira, 27 de agosto de 2012
O cinema é para a escumalha, esta é e sempre será uma das ideias que nele mais me apraz. Agora, pode-se entender isto metaforicamente, humanisticamente ou, e é assim que o defendo, de forma literal. Onde a palavra ”arte”, que poderia estar entre o substantivo e o adjectivo, não faz sequer sentido.
Assim como existem os cinéfilos bons e os cinéfilos maus, sendo os bons uma meia dúzia à face da terra, quando no antigamente eram bastantes, e os maus a dar com um pau. Já dizia o outro, os ventos mudam sempre. Os maus são aqueles que, entre muitas outras coisas imperdoáveis, se servem dos filmes para chegarem a qualquer lado e para brio e proveito próprio, para o canudo ou para a academia, não lhes retribuindo coisíssima nenhuma, nem ao filme nem ao seu próximo, antes, comumente, o tornando numa putaria que retira a vontade de o ver a quem ainda não viu. Enquanto os bons veem as fitas em correlação ao homem e ao mundo, eternidades e presentes de nada, essa bela quimera primitiva, as amam ao mesmo tempo como fim e como perceção ou rumor da vida interior e do que lhes aparece à frente dos seus olhos, tentando “passar” algo no sentido do bom Serge Daney, absorvendo ainda qualquer coisa ao coração. Amor ou ódio, esclareça-se.
O tipo de que vos vou falar e um seu filme em particular são coisas que se podem ligar a isto, e mesmo ao primeiro parágrafo de forma veemente, quer dizer, escumalha como uns últimos resistentes da opressão do modernismo e da evolução que todos os sentimentos querem nivelar e se possível aniquilar; como deixar para lá e tentar apanhar uma construção e uma visão de mundo e das existências já raríssima.
Alex Cox é desde há muito um exegeta de várias coisas. Do Western Spaghetti ou do Western tout court, de Sergio Leone, Sergio Corbucci ou Damiano Damiani, até Akira Kurosawa ou a ferocidade de Samuel Fuller. Alguém que tem a demolidora paixão de um Quentin Tarantino e a lucidez e generosidade de um Bernard Eisenschitz. O que é sempre precioso neste mundinho de “especialistas” de aritmética e “maluquinhos de cinema” prontos para darem cursos e imporem o seu dissimulado fascismo.
Cosmopolita, insurrecto, atraído pelas margens e pelas fugas ao suposto, da terra dos Beatles de nascença e nada a ver com os realismos e empedernimentos destes, planador do alto e do baixo, fascinado pelo bas fond, pelo crime e pela mais sensível das poiêsis, interessado na harmonia ou no caos da destruição, na combinação ou zanga das sublimes e ambíguas forças cósmicas, é então dono e senhor de uma complexidade a um mesmo tempo humilde porque atenta à realidade, e furiosa pois olhando o que não se deve.
“El patrullero” é dos anos noventa e sem hesitação uma peça já perfeitamente anacrónica, no sopro contrário a estas malfadadas brisas tecnologias. Fora dos trilhos das “audiovisualices” e assim esquecido. Só a sua moral final amarga já é assustadora para o acomodamento e anestesia geral deste século: algo que mostra que o dinheiro pode servir para deixar tudo numa subsistência precisamente em águas mornas, no quentinho da lareira. Que tanto serve para uma esposa respeitar o marido, como para se poder resguardar em segredo a mulher que se ama verdadeiramente. O dinheiro manchado de sangue ou simplesmente o dinheiro, esse mesmo, tanto mata como concilia. Mas comecemos pelo princípio.
Local: México. Centro de treino para cadetes que em breve patrulharão as diversas estradas fora. Pedro Rojas, jovem tenro, idílico, naïve, homem de fé antes de ter que a ludibriar, vai passar os testes com distinção máxima, receber os méritos e as potentes armas de fogo e ser lançado à bicharia mais perigosa lá para os lados fronteiriços, onde a droga, a volúpia a quilo e a bandidagem dominam o terreno. Daí para a frente é vermos alguém como tantos outros a ter de sair forçosamente da casca, ir de verde a maduro, tomar decisões que só ele pode tomar. No início das actividades, um justiceiro de corpo inteiro estilo Robert Blake no “Electra Glide in Blue”. O tempo corre, a mesma solidão daquele filme parece cortar o estomago como uma faca bem afiada corta queijo mole e…casa-se com a primeira.
Assim cumpridos os pressupostos, já não está só por si. As obrigações de esposo e o meio social e de trabalho onde está inserido retiram-lhe rapidamente ilusões e heroísmos. Desce de um qualquer céu de poucos à terra de todos. Entre o ter que pôr a comida na mesa, alimentar a boca do filho que ousou e as gorjetas e favores com que lhe acenam nas porcas estradas, escancaram-se os caminhos perigosos. Lá se vai a coragem de um jovem tão bonito que sente mais violência no prometedor seio familiar do que nos fuzilamentos exteriores dos cabrões. Entre a mulher que só o respeita quando sente o cheiro a dinheiro e o deslizamento ético, os copos tornam-se os melhores e indispensáveis amigos e, mais grave do que isso, descobre o romantismo. Mas um romantismo marado, caí de desejos e de afectos por uma puta que é puta numa pocilga qualquer.
Vai correndo a tal da vida com as suas primaveras, inconstante, duvidosa, medos, fragilidades. A sua insistência no cumprimento da lei acima de tudo o resto tanto o faz pensar que o melhor amigo morreu pela sua teimosia na limpeza, como lhe desperta uma benéfica consciência próxima do bom samaritano. E numa dessas suspensões e apertos onde o depois jamais poderá ser igual ao agora, decide que não vai querer acabar com uma bala no peito como o Blake do Electra, então como que se resigna, apaga o furor e as brutalidades místicas que ainda possuí dentro de si.
Última etapa: como Robin Wood, roubar aos ricos para dar aos pobres e desencaminhados. Arriscar a vida numa missão final para alcançar a paz, isto no antro do estupefaciente e da perda momentânea de valores. Então, meter meninos perdidos e prontos para o mal na escola. Fazer regressar a puta ao seu lar e quem sabe um dia poder amá-la. Atirar o crachá policial para o caixote do lixe e trabalhar com a mulher que só beija a pedido. Triste mas se calhar legítima aspiração – compra a vida calma e recatada e esperançosa, pois para ele, antes isso do que a cada dia espreitar a morte.
E incorruptível é Alex Cox. Mão de aço e olhar não viciado. Uma cena, um palco, um plano. Clareza. Obscuridade. Limpeza. Num filme enxuto ao máximo talvez também pelo abrasador calor que o fustiga, se calhar por isso só a guitarra esparsamente tenha direito a entrar. Espaço tratado como espaço e o tempo a fazer-se tempo - dimensões, limites, traçados, tensões, pesos, respirações, imponderabilidades, buscas, percas, regressos, reconhecimentos. Alguém que só ousa mudar de angulo por uma força e uma lógica maiores, vitais. E que em negativo deixa ver o fatídico casamento de Pedro Rojas com inútil ruido e ao calhas filmado, como a televisão ou a maior parte dos professores de cinema muito à frente ensinam aos adolescentes inconscientes.
E assim manter esse compromisso de honra com as geometrias e as durações, uma espécie de directo ultra sensível em solda com brutas e secretas elisões, permitindo alcançar uma verdade humana sobre um percurso e uma definição de um ser. Belíssima moral já perdida, que não se acobarda do real, única coisa que o cinema não pode escapar. E se o espólio Fordiano ou mais amplamente clássico se vê nitidamente nas formas, não é preciso grande paleio para não hesitar em escrever que Cox é um dos raros e últimos herdeiros de Sam Peckinpah. No modo como se sente no organismo e nas superfícies do filme, num todo, o corpo víscero, o sangue, as ganas, veias, nervos, suor e tudo do homem que atravessa em comunhão ou descomungado essas paisagens. Como essa efervescência explode num termo em que um dia tem mesmo que explodir e os tais suportes de cinema com ele. Febre e lucidez, dizia lá para trás nas palavras.
E volto aos dos audiovisuais e aos das fórmulas. Impossível os júris do bom gosto das escolas, workshops e festivais do agora admitirem estas infracções lesa majestades (*). Porque majestades são eles, especialistas em história MUNDIAL (e talvez europeia), orgulhosos enciclopedistas dos bonecos dourados da academia, docentes respeitáveis, arautos das novas modas e estéticas, proclamadores do científico, sociólogos e terapeutas dos novos cérebros da nova humanidade e das suas capacidades. Os intocáveis, os que viram tudo, os maiores. Os que dizem que já não se pode fazer David Llewelyn Wark Griffith porque o Fernando Meireles é que está de acordo com o melindre neurológico dos petizes. Videoclipes, spots publicitários, telenovelas, salas da lusomundo, tudo já o mesmo neste impagável universo virtual.
Esses elementos dos júris que se vissem o extraordinário plano carnívoro do polícia Pedro a arrastar-se de arma em pulso em direcção ao amigo que jaz morto, perna partida e alma desfeita, Robocop e Cristo salvador, que dura e dura e é frontal, diriam com certeza: “isto para resultar para a geração dos morangos com açúcar teria de ter, no minuto que demora, uns dez a quinze planos de pormenor no meio, só assim o espectador aguentaria, o realizador estaria em sintonia com o seu público, e quem o apanhasse na televisão, não fazia zapping.”
Ai fanfarrões que proclamariam que Alex Cox, o teatro filmado, a seca do cinema português e a farsa do Manoel de oliveira são uma e a mesma coisa, pois rejeitam os criativos movimentos de camara e o necessário espéctaculo da linguagem. Que o Cox não trabalhou para ganhar festivais e que é um anarquista e um petulante. Que se calhar até o perdoam, nos seus bons fundos, pois que talvez o Cox não tivesse à sua disposição as mais finas steady-cams, gruas e carris que lhe permitissem alcançar uma gramática mais bombástica e vistosa e aprazível. Não filmou com uma topo de gama Canon HD-DSLR (ou lá o que era por que eles se babavam, mesmo que em 1991), o workflow e os iluminadores hmi que transformam a noite em dia, filtros ultra pro top, etc. Que obviamente não teve prazo nem efeitos especiais nem orçamento para fazer um genérico Sin City carregado de reverberações sonoras 10.5 a quatro dimensões. Nem um bom director de fotografia profissional que escolhesse as tomadas de vista e as cores no lugar do realizador, para assim Cox poder reger conscientemente o investimento e coçar os tomates à vontade. E, coitado, não acompanhou a evolução técnica e as convergências entre a multimédia, a informática, a economia, a medicina e o audiovisual - por alguns também ainda chamado de cinema - ficando assim preso aos “filmes antigos” que tiveram o seu tempo e que, apesar de chatos, são importantes.
Coitado do Cox que não se inscreveu nas cadeiras de argumento e de teorias narrativas e que assim não domina os plot point, os ganchos, os clímax e falsos clímax, que não quis saber do Syd Field ou da estrutura infalível dos três actos que lhe equilibraria o filme. Muito menos cumpriu ou pensou cumprir um qualquer hipotético e idiota caderno de encargos que tanto seduz um qualquer Jorge Júri Mourinha. Não ambicionou a obra-prima. Coitado que preferiu confundir o cinema com a vida e assim não distinguir os campos. Podia ter ficado louco… Filmou complexos, contraditórios e fugidios indivíduos e não personagens arquitetadas segundo modelos estudados de comportamentos ou estúpidos arquétipos dramáticos. Não soube que urgem as festanças e as alegrias e que estas têm de continuar, como escape e entretenimento, pois a vida é dolorosa demais e precisamos de um balão de oxigénio e de uma guloseima quando chegamos a casa vindos do trabalho de todos os dias. Cox opôs a sujidade à asseptização dos radicais do after effects e por isso não pode levar canecos nos concursos. O que pulsa ao invés do eterno simulacro. É um rebelde, isto admite-se? Vamos castrá-lo!
Aqueles júris que fecham os olhos aos genuínos cinéfilos de vida ou de morte, os do amor e da cólera, os júris que, citando Anton Tchekhov, têm a necessidade de destruir o que não são capazes de criar. Com júris assim perto do autómato, espécie de coutadas que decoraram a mesma bíblia para a palrear alegremente, Alberto Seixas Santos, comparsa que gostava de conhecer, não há esperança, o cinema, de facto, acabou. Quando o tipo que fez “El patrullero”, e poderia ter feito só isto e nada mais, é só nota de roda pé nos almanaques por esses júris criados ou considerado uma anomalia a evitar, de facto, isto que era belo, acabou.
(*) A partir daqui, enumeração/relato baseados numa infeliz experiência real.