Sétima longa-metragem do por esta altura encapuçado Joseph Losey, "The Sleeping Tiger" é bem capaz de ser o ponto absoluto sintético de um trabalho feito no osso nos anteriores "The Prowler" e sobretudo "The Big Night". Só que aqui já nem somos conduzidos por atalhos, eles são simplesmente elididos ou passados a negro e vamos logo ao centro do embate. O ponto de partida é dado de rajada por alguns planos nocturnos a um tempo subliminares e concentradíssimos, rasgados por uma luz precisa e estonteante. A trama, que tem a ver com o médico que nos primeiros segundos de metragem desarmou um jovem com a vida e a cabeça escangalhada e o leva para sua casa onde se dará um choque sexual e talvez de sensibilidades com a esposa desesperada, participa de outras experiências e climas psicológicos de género que Hollywood ia cultivando, mas rapidamente abandona qualquer prisão ou demagogia a isso associado, para voar ou penetrar nas zonas mais terroríficas e adormecidas das nossas vísceras e dos nossos credos. Se a sinopse e o seu desenrolar não parecem ter grande senso, a ambiguidade logo irá impor sentidos outros, e já não se vai saber quem deseja o quê, como, e o nível de provocação, de onde qualquer vértice do triângulo é inocente ou sujo. Ódio, culpa e medo. E a culpa e o medo a gerar mais ódio - isto é o que diz o analista, mas todo o vertigo contradirá certezas. Sem impunidades. Psicologia que não terá viabilidade perante a furiosa combustão do presente. O passado a arder no instante. Assim a metáfora do tigre adormecido nesse demencial fecho que nada fecha literaliza-se numa tragédia sem nome, causa nem legislação. Tudo no emaranhado da cabeça. Não só da do ferido Dirk Bogarde que às tantas aparece como o ser menos contraditório. Em Losey, ou aqui mais do que nunca, toda a dialéctica, o conflito como o orgânico ou o patético, todos os tipos de montagem que muitos escancaram até ficar só a teoria inerte, encontra-se embrenhada ou esventrada no interior do corpo humano. Daí que todos os níveis de realidade advenham de tais pesos e metafísicas. Luz e sombra e enquadramento cinematográfico existem resolutamente por e com tudo isso. Uma ciência e um abismo. Quantas horas hoje para chegar a um vislumbre de tal intensidade?
sábado, 28 de fevereiro de 2015
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
Se em "The Chase" a tensão nos ombros de Marlon Brando armava directamente a mise-en-scène, conferindo-lhe o peso, a gravidade e todas as linhas de força inerentes a um genuíno plano cinematográfico, em Bonnie an Clyde", o filme imediatamente seguinte de Arthur Penn, todas essas características necessárias a algo vivo e pulsante formam-se através do sexo e da violência. Não sexo e violência por si, mas os dois no mesmo corpo e a uma mesma vez. Corpo que vai ser o da natureza, o grande meio original (se colocássemos a hipótese de análise de cada partícula funcionar como um universo próprio, não chegaria um tratado). As texturas, temperaturas, todas as variações orgânicas, resultam dessa fusão que se dá logo para a primeira imagem em celulóide, exactamente para os lábios de Faye Dunaway. Mais pormenorizadamente: a fotografia imóvel do Clyde que depois vai ser representado por Warren Beatty a possuir e a penetrar na carne e na libido de Bonnie e da constituição da película, e Bonnie a receber plenamente a investida. Se no filme anterior havia um atamento até à explosão, aqui já explodiu algo que esteve convenientemente latente e vemos e sentimos o trabalho e a direcção dos arremessos. No percurso do filme, que é a nascença de um par e logo de um insólito mundo até à consumação, a vitalidade, desejos, comunhões e dilacerações, enfim, o poder e os choques de todos os corpos em digladiação, vão gerar os arrepios e as pinceladas que nesta vez em Penn parecem mesmo representar amor sem meias medidas, destino ou referente. Era assim que se dava nas tragédias clássicas como em Shakespeare, os elementos a encarnar e a juntar-se no coração, no dentro dos seres, numa poesis total que finalmente aglutinava todas as coisas; mas se o lírico desmedido deste filme queimante vai tanto ao idealismo como ao delírio e ao sonho, permanece num grau de realismo corrente ou apurado. O trabalho dos grandes retratistas da época em questão, de Walker Evans e do comparsa James Agee até W. Eugene Smith ou ao genérico não é somente evocado para efeitos de sugestão e reconhecimento, mas comunga de uma frontalidade, de uma dureza e crueldade que eleva a matéria mais concreta ao abstraccionismo mais geral. Parece não haver um grande esforço de reconstituição por Dean Tavoularis, mesmo que passados uns bons anos da chamada era da depressão. Estão lá os abandonados, os injustiçados, meliantes, perdidos da terra e da morte no branco e no buraco negro, esses de John Steinbeck e de David W. Griffith, mas também o crepuscular e os encarnados e amarelos e o que fica longe da paleta a arder num romantismo sôfrego que só tem paralelo na pintura desregrada. Recentemente só um "Miami Vice" ou um "Cavalo Dinheiro", cantadores de rua ou de uma esfera aparte dos suplementos culturais é que atingiram tais graus de registo e de assombração consanguínea, balanço sempre perigoso mas fascinante pelo despegamento do quotidianozinho e paz podre que nos adormece. Da perfeição atingida numa intensidade não permitida à civilização regrada até à rajada derradeira que literalmente estraçalha os corpos, entre os cortes sequíssimos da montagem e as arrastadas variações solares, da lei à verdade, do terreno ao mito, temos uma condensação eléctrica e agonizante da história da liberdade e da história da dor. Embates e entrelaçamentos. Natura e estética sem possibilidades divisórias. Como na entrada em mansinho ou de rompante para a ficção, essa que descrevi no início e não tem nome de fade, crossfade ou cross dissolve. Sempre o eterno retorno a tudo prometido.
terça-feira, 24 de fevereiro de 2015
“Reconhecer a sabedoria não é segui-la passo por
passo com risco de destruir o impulso autêntico e a personalidade. Uns nascem pacíficos,
outros briguentos, mas são resistentes à malícia, outros mergulham nela até ao
calcanhar.”
(…)
“No fim de contas somos tentados ao mal como ao bem,
convém saber resistir a ambos com igual simplicidade; não estamos no mundo para
ser émulos de Deus mas para honrar a obra de Deus.”
(e etc.)
Numa das cartas de Agustina Bessa-Luís a José Régio.
"You cannot alibi"
Revendo (prefiro assim mesmo, no gerúndio, et pour
cause …) "American Sniper":
Por um lado torna-se claríssimo que estamos perante
um exigente e implacável trabalho sobre as formas, continuando Eastwood junto de
quem sempre esteve mais perto: Fuller, Siegel, algum Huston, e até Aldrich que agora
me foi sugerido. Ou seja, uma perfeita funcionalidade que se adapta
constantemente à cena, homem e espaço e homem no espaço, sem qualquer determinismo
ou imposição, antes reservando-se o direito a investir permanentemente no que
está em causa, numa procura incessante pela pulsão ajustada, plano a plano. Daí
que toda a possível incoerência que por vezes irrompe sem aviso faça parte de
uma dramaturgia febril em que o subjectivo é a forma mais acabada de ser
objectivo, resultante de um corpo a corpo e da impossibilidade de harmonia plena
entre olhar e matéria. Nunca um aleatório à Ridley Scott. Do aperto de “Play
Misty for Me” aos grandes espaços de “Unforgiven”, o instinto como lucidez, integridade por caminhos árduos. Quantas vezes Fuller ou De Toth falharam movimentações de câmara, colaram
travellings a panorâmicas ou chocaram pontos de vista? Quantas vezes vibrou descontroladamente
o enquadramento, carregado de energias desconhecidas e nervosismo individual?
Quanto de montagem tosca e cortes brutos? Tanto, e mesmo assim a justiça da
empreitada quase sempre se manteve em pé. Estirpe que se atira para o centro da
acção, contemplação inscrita na acção, mesmo que à custa de uns pontapés na
gramática escolar. Ou seja, a questão do sangue. E assim vamos dar a
Ford e a Cimino, não do lado sacro da observação ou da ascese (duração, ópera, fresco) que em Eastwood é
conseguida no efémero que mal se nota, mas da construção dos blocos (a maldita
cronologia sempre a ser ajustada, reajustada, repetida, invertida). Circularidade,
correspondências e dependências que complexificam a cada mudança de tempo o encaixe
geral. Tanto nas elipses iniciais que agregam décadas, gerações e fatalidade:
de pais para filhos, da guerra do quotidiano à guerra espectacular, da letargia
calculada ao despertar formativo. Como nas consequências: as crianças mortas ou
salvas pelo sniper e o próprio filho no caos, os actos de terror de ambos os
lados da barricada, mira para o inimigo e mira para o veado, os cães pastores e
a inocência, a bíblia e a decisão cega, todos os tormentos psíquicos que se
arrastam de um espaço para outro sem impostura de estrutura ou de lógica. Esses
raccords estilhaçados entre lar e pátria, pertença e deriva (ou seja, guerra e
paz) que estiveram sempre presentes nos momentos capitais do cinema americano,
isto é, da história da violência americana, fundação e consolidação. Entre outros: “The Birth of a Nation”, “The Wings of Eagles”
ou “The Deer Hunter”. Agora, inevitavelmente, “American Sniper”.
E mais lições de um homem
tão crente e livre como cada um dos citados: pode-se usar tudo o que se tem ao
dispor, sempre. Portanto, usa-se o CGI se for preciso, tal como Ford usou as
sobreimpressões ou Welles a “batota” toda (Pedro Costa trabalha e retrabalha à
exaustão também nos computadores o real e a sua condição fugidia). Os grandes
cineastas sempre souberam utilizar tudo, mesmo o que puseram de lado. E essa
bala que mata o sniper oponente no seu trabalho e na sua demência que o irmana imediatamente
ao americano, é tão fugaz e indiferente que só serve o seu objectivo. Objectivo
que não pretende tornar-se um evento mas cumprir uma função. Dura quanto: dois
segundos? Perfeito. Sniper inimigo que foi tratado com a maior decência, a mais
justa distância e silêncio, a preservação de um fundo a que por natureza (a de Eastwood, a
da América como a da Europa) não se pode aceder. Pode-se utilizar todos os
efeitos especiais, telemóveis ou até as malfadadas redes sociais, porque tudo é
mundo e tudo faz parte e converge para nós. Mesmo que o recusemos. O som a
estalar e a rebentar os picos ou as escalas, a vertigem e a limpeza do campo-contracampo,
o arremetimento ao grande-plano que não conforta mas antes expõe o ferimento. De
forma límpida e polida ou à beira do falhanço do incontrolável. Como Ford ou como Fuller, Costa ou
Ferrara, percebendo o meio, onde se está e com quem se está. De onde se olha e o que se recebe. E o que foi possível para uns e já não o é para outros. A pena de "How Green Was My Valley" já nunca mais poder ser feito. O tremendo esforço em ver e apreender o melhor que se possa no vale tudo da nossa contemporaneidade. Nunca heroísmo.
Uma tragédia, na qual um texto como este, ou textos contra, estão
inevitavelmente votados ao fracasso, pois também isto é problematizado no
filme, é a sua diegese. Limpíssimo.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015
Acerca de todo o movimento extenuante, das heranças e das consequências deixadas por “The Chase”, caso inarrumável que Arthur Penn ousou pelos anos sessenta do século passado, o grande crítico inglês Robin Wood já praticamente tudo disse do que é possível num filme de tal complexidade. O velho Oeste a ser violado pela civilização e torrente sexual, a violência kitsh a confluir com a intolerável, uma perfídia e uma sujidade abstracta a penetrar na verticalidade e na solidificação clássica. Podia-se escrever páginas e páginas sobre os suores, os afiamentos e os encornamentos ad infinitum que jamais são libertação mas antes degredo. Mas se tudo isso é uma girândola sem freios, o mais impressionante é que tudo está condensado e concentrado num corpo, o de Marlon Brando, xerife farto do mal em trabalho por todos os lados. Peso absolutamente físico e metafísico, acumulado mortalmente nos ombros e na restante carne, e em tudo o que teve de suportar mentalmente, ver, silenciar, enfim, despojos e efeitos da imperecível caminhada. Brando é o centro pois comporta todas as partes em graus díspares e incomparáveis, sendo correlativamente a geometria, esquadria e argamassa para a encenação fílmica. Impossível tecer sobre esta obra e dizer em rodapé da excelência do actor. Se Brando tem aqui o seu zénite, num sublime Cristo sagrado ou dessagrado, é porque tudo, todos e cada qual participa da sua via-sacra ou simplesmente da sua perdição. O final do filme foi perfeitamente sintético e claro para os tempos que se avizinhavam e que ainda são os nossos – todos os que amam, ou seja, tudo o que é limpo, ou morre, ou fica só, ou tem de se esconder (genocídios correntes, suicídios, emigrações). Calder vai da insurreição utópica à comunhão bíblica, de Gary Cooper a Eastwood, da liturgia amarrada com a anarquia, ousa a restituição e é furado pela desilusão. Os seus gestos desengonçados, os moveres desequilibrados e forçados, o instinto trôpego, esse caminhar em esforço por vezes perto do suplício, um sobreviver que anseia e desespera pelo alívio, ilha final. Cruz ou castigo antigo de onde uma certa ambiguidade do seu posto oficial rasga trilhos outros tortuosos de onde culpa e redenção travam batalhas similares. Calder tanto reage à destruição exterior, ao geral incendiado, como se queima interiormente, num calamento indizível. Como sempre, Penn elabora sobre a pertença e o agudo da transição, entre a retaliação cruel e a desistência negociada pelo aleatório, de onde tais confrontos, dialécticas em acção pura, levam inevitavelmente ao adeus (sempre os olhares lacrimosos, tão cheios de pena, ao para trás) e ao recomeçar do zero. Há um momento mágico, quando ainda se vislumbra a possibilidade da harmonia e um belo cavalo salta pungente para a Paz diante dos olhos estupefactos e sempre apaixonadamente fiéis de Calder e sua amada (Angie Dickinson, em lógica anacrónica). E há o terror que rima com todo o “novo” das cores, sons e danças, seduções inenarráveis, frigidas, nessa destruição dos cantares e melodias da infância que preside à morte de Redford, à morte do parceiro de brincadeiras e de assobios, ao baptismo além vida, até ao plano final totalmente abandonado de Jane Fonda, um anjo alvo e quebrado também prometido ao buraco negro que tudo anda a sugar. Lenta bifurcação que conduziu até a esse ponto apocalíptico, estertor finalizado num Brando particular e igualmente imagem de todos os pecados, pingado de sangue e retirando-se para uma hipótese de Paraíso longe das leis frias. “The Chase” é assim claro e cravado de cantos obscuros que cegam, nessas infinitas teias que emaranham e nas pobres felicidades podres, um dos avisos, diagnósticos e lamentos mais pungentes sobre uma espécie que tentou querer mais do que o desmesurado que lhe foi oferecido. “Young Mr. Lincoln” na via de “Zabriskie Point”. O maior dos actores no maior dos sacrifícios. “The Missouri Breaks” e as escarpas, vazio de valores e de metáforas aqui ainda entrevistas. Brando (supostamente) invertido. O Realismo. Lirismo indefinível.
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015
Hoje na Cinemateca - Portuguesa, às 22 horas
"35 anos depois, O movimento das coisas"
+
"O Movimento das Coisas"
+
"O Movimento das Coisas"
So
many images saved to fade away.
Try
it to show how it feels to be alive.
As a
witness, I am part of it.
I
take the risk
And I
look back without regrets,
Robert
Frank, Agosto de 1990
“O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra, concretizado entre 1978 e 1985, nunca chegou a estrear comercialmente em Portugal. Manuela Serra, a realizadora, faz parte de um grupo muito estrito do mundo do cinema, ao lado de nomes como Charles Laughton, Barbara Loden, Peter Lorre ou Marlon Brando, entre outros muito raros, por demais corajosos. Ou seja, assinou só um filme, mas tocou em tudo o que importa no Cinema como na Vida, matéria e espírito. A história é conhecida por alguns: depois do 25 de Abril e na febre de liberdade e de cooperativas que pudessem alcançar e manejar tal sede, Manuela Serra, sempre valente, meteu-se num automóvel e depois de tentar o Sul, os Centros e os outros lados, foi parar ao Norte, encontrando o seu Paraíso numa pequena terra encravada entre Braga, Ponte de Lima e Viana do Castelo. Lanheses, assim se chama esse Paraíso Perdido, detém ainda hoje uma beleza original que parece conservada desde os inícios da criação, e Manuela obteve-a imediatamente por uma limpidez de aproximação e de olhar que tudo lhe retribuiu. Lanheses aparece como lugar de beleza desmesurada, carregada de tempo sem tempo, espaço para todos os maravilhamentos e harmonias, abstracção sem idade. Toda a inocência, as brumas e as águas densas e claras, os sentimentos e sentidos belos que inundam o filme, não são criação e forçamento da máquina e da técnica do Cinema, mas estão lá, de raiz, e então emerge a única e fulgurante comunhão entre o que se filma e como se filma, quem representa e quem apreende, natureza e intenção. De onde não faz qualquer sentido as imemoriais e gastas fórmulas que separam documentos e ficção, quem manda e quem obedece, o ponto de vista e a ontologia. Existem e até abundam os chamados zooms, mas há que perceber e, sobretudo sentir, que jamais é facilitismo ou figura de estilo televisiva, mas antes lenta aproximação e confluência ao coração das coisas e dos seres. Maravilhamento mútuo. Temos a sedutora flauta de José Mário Branco, mas esta nunca embala simplesmente movimentações ou cores à maneira de muitos videoclipes posteriores, sim faz corpo com o que nasce na tela. Nasce, assim mesmo, pois parece tratar-se sempre de um movimento criador, recém-nascido, bruto, quase monstruoso ou por vezes monstruoso mesmo. Consanguinidade e reconhecimento – a câmara estará sempre onde deve estar, a lente a ínfimos centímetros da coisa amada ou a quinhentos metros, o passarinho cantará no momento devido, a Mulher embalará o bebé ao som ancestral da desfolhada. Movimento e tempo, é isto que vai desde a presença no ventre até à infinita eternidade - “O Movimento das Coisas” é composto por três dias, e acompanha outras tantas famílias, mas todas as auroras e crepúsculos, pequenos-almoços e deitares, uniões e contendas, atracções e contrários, só estão assentes e apelam ao presente. Presente finalmente absoluto e puro. Contemplação também, mas não a habitual que cede ao vácuo ou ao aleatório, antes contemplação que se admira e extasia no constante irromper e surpresa das coisas aparentes e ocultas. E assim, desta vez nem de acordo pleno estou com João Bénard da Costa – o maior entre os maiores e um dos poucos que separou imediatamente o trigo do joio – e acredito que se ele pudesse ter visto mais vezes as explosões e acalmias cósmicas que se centram, descentram, ordenam e reordenam, Manuela Serra teria sido imediatamente posta ao lado de António Reis, de António Campos, esses que por si só criaram uma bela ilha iluminada pelo mesmo sol de todos os superiores criadores. A força telúrica e queimante dos elementos em relação com uma montagem que também cria significações e avisos ao Homem e à evolução – basta referir, entre muitos outros momentos, a questão Cristã em alternância com as águas do rio; tanto como os motores furiosos contra as vacas e as feiras ou a maçã podre dessa infernal Fábrica que tanto ameaça – alcança uma transfiguração superior, de onde a Poesia sem amarras enlaça com as amarras da nossa ambição. Poesia, palavra derradeira e a única que pode assentar na extrema simplicidade e complexidade desta obra total, indefinição para lá de todas as considerações ou análises terráqueas. Total e a todo o momento possuidora da fragilidade e da sensibilidade mais imediata ou subterrânea a cada um de nós. Renascimentos, ciclos, mutações, rotações, translações, o efémero junto com o inabalável, é o movimento das coisas, sem trocadilho ou ironia. Se somos lavados e purificados por uma brisa inaudita, também sentimos perigos e ameaças de que convém desconfiar, sem legendas ou gritos mas ao canto do olho.
“O Movimento das Coisas”, nunca estreado em Portugal e com poucas projecções lá fora, nunca teve grandes hipóteses por tal convocação e presença de Cosmos, tamanha ousadia de uma jovem cineasta que tanto metia em ordem como apagava todas as demagogias que muito do cinema dessa época e particularmente das cooperativas demonstravam, isto para não falar das boas intenções de samaritanos encapuçados. E há que dizer que nenhum dos cineastas dessa época, da seguinte ou da de agora, ultrapassou o que aqui se alcançou de graça na feitura – milagre da dádiva e da recompensa das mãos vazias – para ser pago inumanamente depois – tanta beleza e genuinidade cegou e trouxe ao de cima o pior da raça, o nojo da vaidade e da dor de cotovelo, a cobardia de quem teve de travar de modo fascista essas constelações que bailam e cintilam além cinema. Percebendo que o génio essencial está na natureza, esse orgânico contra o qual nada podemos, e do qual metafísicas e religioso fazem parte indestrinçável. Génio da natura, não pretensão de artista. “35 anos depois, O movimento das coisas” é um pequeno presente, um agradecimento a um ser humano maravilhoso que eu, a Marta Ramos e o Mário Fernandes decidimos em boa hora oferecer à Manuela. Se possível, para tentar aniquilar algumas injustiças, mas, acima de tudo, para que quem nunca viu o filme original, o possa descobrir pleno, dos Lanhesenses até ao cinéfilo de Lisboa sempre ávido da catarse. Tudo é para ela e para quem assim quiser mergulhar, de maneira absoluta, fazendo do medo caminho para a revelação, suspendendo os brilhos falsos do reconhecimento de carreira e das perspectivas argentárias. Como diz a sinopse, tratou-se de acompanhar o regresso da cineasta Manuela Serra a Lanheses 35 anos depois de lá ter realizado “O Movimento das Coisas”, mas, antes de tudo, concretizar um antigo sonho, justiça poética, viagem escrita nas estrelas que o destino e os bons sentimentos encarreiraram a ferros, dor e inevitabilidade. Uma família, confraternização e viagem, íntimo e comum, resistência e disponibilidade, que permitiu encontrar - sempre os Encontros - uma pessoa como o Sérgio Moreira, que no nosso humilde filme tem o peso e a transparência do Paraíso que há 35 anos Manuela foi descobrir pelo Rio Lima, o tal do esquecimento – foi ele, exegeta incomparável e amador da terra, que identificou Lanheses como a personagem principal do filme, conhecendo e reconhecendo cada folha ou cada muro, cada criança já crescida ou Ser desaparecido, cada tonalidade, constantemente atento aos ritmos e respirações particulares, como era e como é; foi ele que moveu as montanhas do esquecimento para precipitar o adormecido sonho. E obviamente encontrar toda essa afável população, do Mestre Caninhas da inesperada jornada de barca, até ao Dom Lourenço d'Almada que humildemente abriu as portas do Paço de Lanheses à Manuela. Em torno, num só corpo abraçado pelas nobres circunstâncias, a determinação da Marta Ramos, a atenção do Mário Fernandes, a dedicação do Rui Pelejão, o companheirismo da Filipa Gambino e do Bruno Ramos, do João Palhares, do Hiroatsu Suzuki e demais. Galgando pela Capital ou de certeza na Cinemateca sua casa, a velar por cada um de nós, José Lopes, o imenso actor atirado para a lama e esquecido pelo meio podre, que na carta lida numa estação de serviço como que redime todos os crimes. E mais do que isto, já no campo divino e perigoso da fidelidade sem freios, estes não foram ao Paraíso armados até aos dentes da curiosidadezinha antropológica da praxe, citadinos e bem formados que olham de cima sociologicamente falando, com o compendio teórico da moda numa mão e a super-registadora na outra, cravados de pecados e amarelamente sorridentes, mas obviamente perceberam como a Manuela Serra tinha chegado na primeira idade àquelas águas e àquelas quentes casas e almas, como chegou toda disponível, despida de intenções, pronta a aprender e a partilhar. Outono Peckinpahniano unido ao mundo inaugural de “How Green Was My Valley”, tudo se une e reúne, fim e começo, e então trata-se de passar e deixar testemunho do que foi e do que já não é ou pode deixar de ser brevemente. Da parte que me toca, e sei que aos outros tocou na mesma, encontrei na constelação do rosto e na firmeza das gentes de Lanheses algo que tem de ser imutável, exemplo da grandeza do Homem que não pode ser traída ou vendida, que tem de ser defendida a sangue e a morte. Grandeza igual à das grandes Mães e Avós, nossas ou de John Ford ou Reis, que nos deram as genuínas e generosas lições que nenhum livro épico ou bíblico, objecto artístico ou cadeira académica sequer se aproximou. Que é o que consta também na conversa que vagamente estrutura o nosso filme, gente que teve e deteve esse amparo, dureza e carinho. Dureza e carinho, toda a ternura como toda a severidade, onde uma não existe sem a outra, correspondências exactas onde um beijo ou um berro querem dizer rigorosamente a mesma coisa. O nosso trabalho consistiu então em tornar mais fortes as palavras a par da recordação e erupção do filme primordial, do agora e das deambulações perpétuas. As coisas, movimentos ou temperaturas, como as pessoas, ou são ou não são, e se seria impossível e ingrato fazer jus pleno ao que tentei meter em pobres palavras neste texto, igualmente seria meter em imagens e sons. Pessoalmente, outra vez, nunca me senti tão nervoso a fazer um chamado filme, berrei e desesperei, fui injusto e perdi-me, não me reconheci e fui aos fundos nocturnos, e a única coisa que posso dizer em função disto é que vislumbrei, e toquei mesmo, em coisas, sentimentos e emoções, que nunca tinha encontrado, e não soube como lidar com isso, como não estragar, atraiçoar. Levei umas lições que já há muito merecia, e que vieram da pior e da maneira mais importante, inesperada. Esta foi a nossa tentativa, a prenda e o agradecimento, onde todos os que se vêem no ecrã, no genérico ou em espirito foram decisivos. Aqui e ali a imagem pode estar selvagem, o som indomado, a ligação de planos abrupta, mas saiu sempre de dentro, com empenho e muito amor. Amor, sempre o último reduto e possibilidade. Dedico também este momento à Isabel, a mais delicada e bonita jovem deste filme para sempre jovem e prevenido, que morreu na conclusão do projecto (uma das causas para que o filme demorasse 35 anos a lá voltar pronto), que de lá de cima, do Reino dos Céus, morada de Deuses, esboçou com certeza o mais cristalino dos sorrisos. Que se continue a descobrir e a redescobrir, sempre a rever e a experimentar iniciaticamente, confortado e virgem, esta obra, verdadeiramente infinita. E que regresse o tempo em que se façam sopas com tempo e se as comam com toda a disponibilidade. O Humano, sempre.
“O Movimento das Coisas”, de Manuela Serra, concretizado entre 1978 e 1985, nunca chegou a estrear comercialmente em Portugal. Manuela Serra, a realizadora, faz parte de um grupo muito estrito do mundo do cinema, ao lado de nomes como Charles Laughton, Barbara Loden, Peter Lorre ou Marlon Brando, entre outros muito raros, por demais corajosos. Ou seja, assinou só um filme, mas tocou em tudo o que importa no Cinema como na Vida, matéria e espírito. A história é conhecida por alguns: depois do 25 de Abril e na febre de liberdade e de cooperativas que pudessem alcançar e manejar tal sede, Manuela Serra, sempre valente, meteu-se num automóvel e depois de tentar o Sul, os Centros e os outros lados, foi parar ao Norte, encontrando o seu Paraíso numa pequena terra encravada entre Braga, Ponte de Lima e Viana do Castelo. Lanheses, assim se chama esse Paraíso Perdido, detém ainda hoje uma beleza original que parece conservada desde os inícios da criação, e Manuela obteve-a imediatamente por uma limpidez de aproximação e de olhar que tudo lhe retribuiu. Lanheses aparece como lugar de beleza desmesurada, carregada de tempo sem tempo, espaço para todos os maravilhamentos e harmonias, abstracção sem idade. Toda a inocência, as brumas e as águas densas e claras, os sentimentos e sentidos belos que inundam o filme, não são criação e forçamento da máquina e da técnica do Cinema, mas estão lá, de raiz, e então emerge a única e fulgurante comunhão entre o que se filma e como se filma, quem representa e quem apreende, natureza e intenção. De onde não faz qualquer sentido as imemoriais e gastas fórmulas que separam documentos e ficção, quem manda e quem obedece, o ponto de vista e a ontologia. Existem e até abundam os chamados zooms, mas há que perceber e, sobretudo sentir, que jamais é facilitismo ou figura de estilo televisiva, mas antes lenta aproximação e confluência ao coração das coisas e dos seres. Maravilhamento mútuo. Temos a sedutora flauta de José Mário Branco, mas esta nunca embala simplesmente movimentações ou cores à maneira de muitos videoclipes posteriores, sim faz corpo com o que nasce na tela. Nasce, assim mesmo, pois parece tratar-se sempre de um movimento criador, recém-nascido, bruto, quase monstruoso ou por vezes monstruoso mesmo. Consanguinidade e reconhecimento – a câmara estará sempre onde deve estar, a lente a ínfimos centímetros da coisa amada ou a quinhentos metros, o passarinho cantará no momento devido, a Mulher embalará o bebé ao som ancestral da desfolhada. Movimento e tempo, é isto que vai desde a presença no ventre até à infinita eternidade - “O Movimento das Coisas” é composto por três dias, e acompanha outras tantas famílias, mas todas as auroras e crepúsculos, pequenos-almoços e deitares, uniões e contendas, atracções e contrários, só estão assentes e apelam ao presente. Presente finalmente absoluto e puro. Contemplação também, mas não a habitual que cede ao vácuo ou ao aleatório, antes contemplação que se admira e extasia no constante irromper e surpresa das coisas aparentes e ocultas. E assim, desta vez nem de acordo pleno estou com João Bénard da Costa – o maior entre os maiores e um dos poucos que separou imediatamente o trigo do joio – e acredito que se ele pudesse ter visto mais vezes as explosões e acalmias cósmicas que se centram, descentram, ordenam e reordenam, Manuela Serra teria sido imediatamente posta ao lado de António Reis, de António Campos, esses que por si só criaram uma bela ilha iluminada pelo mesmo sol de todos os superiores criadores. A força telúrica e queimante dos elementos em relação com uma montagem que também cria significações e avisos ao Homem e à evolução – basta referir, entre muitos outros momentos, a questão Cristã em alternância com as águas do rio; tanto como os motores furiosos contra as vacas e as feiras ou a maçã podre dessa infernal Fábrica que tanto ameaça – alcança uma transfiguração superior, de onde a Poesia sem amarras enlaça com as amarras da nossa ambição. Poesia, palavra derradeira e a única que pode assentar na extrema simplicidade e complexidade desta obra total, indefinição para lá de todas as considerações ou análises terráqueas. Total e a todo o momento possuidora da fragilidade e da sensibilidade mais imediata ou subterrânea a cada um de nós. Renascimentos, ciclos, mutações, rotações, translações, o efémero junto com o inabalável, é o movimento das coisas, sem trocadilho ou ironia. Se somos lavados e purificados por uma brisa inaudita, também sentimos perigos e ameaças de que convém desconfiar, sem legendas ou gritos mas ao canto do olho.
“O Movimento das Coisas”, nunca estreado em Portugal e com poucas projecções lá fora, nunca teve grandes hipóteses por tal convocação e presença de Cosmos, tamanha ousadia de uma jovem cineasta que tanto metia em ordem como apagava todas as demagogias que muito do cinema dessa época e particularmente das cooperativas demonstravam, isto para não falar das boas intenções de samaritanos encapuçados. E há que dizer que nenhum dos cineastas dessa época, da seguinte ou da de agora, ultrapassou o que aqui se alcançou de graça na feitura – milagre da dádiva e da recompensa das mãos vazias – para ser pago inumanamente depois – tanta beleza e genuinidade cegou e trouxe ao de cima o pior da raça, o nojo da vaidade e da dor de cotovelo, a cobardia de quem teve de travar de modo fascista essas constelações que bailam e cintilam além cinema. Percebendo que o génio essencial está na natureza, esse orgânico contra o qual nada podemos, e do qual metafísicas e religioso fazem parte indestrinçável. Génio da natura, não pretensão de artista. “35 anos depois, O movimento das coisas” é um pequeno presente, um agradecimento a um ser humano maravilhoso que eu, a Marta Ramos e o Mário Fernandes decidimos em boa hora oferecer à Manuela. Se possível, para tentar aniquilar algumas injustiças, mas, acima de tudo, para que quem nunca viu o filme original, o possa descobrir pleno, dos Lanhesenses até ao cinéfilo de Lisboa sempre ávido da catarse. Tudo é para ela e para quem assim quiser mergulhar, de maneira absoluta, fazendo do medo caminho para a revelação, suspendendo os brilhos falsos do reconhecimento de carreira e das perspectivas argentárias. Como diz a sinopse, tratou-se de acompanhar o regresso da cineasta Manuela Serra a Lanheses 35 anos depois de lá ter realizado “O Movimento das Coisas”, mas, antes de tudo, concretizar um antigo sonho, justiça poética, viagem escrita nas estrelas que o destino e os bons sentimentos encarreiraram a ferros, dor e inevitabilidade. Uma família, confraternização e viagem, íntimo e comum, resistência e disponibilidade, que permitiu encontrar - sempre os Encontros - uma pessoa como o Sérgio Moreira, que no nosso humilde filme tem o peso e a transparência do Paraíso que há 35 anos Manuela foi descobrir pelo Rio Lima, o tal do esquecimento – foi ele, exegeta incomparável e amador da terra, que identificou Lanheses como a personagem principal do filme, conhecendo e reconhecendo cada folha ou cada muro, cada criança já crescida ou Ser desaparecido, cada tonalidade, constantemente atento aos ritmos e respirações particulares, como era e como é; foi ele que moveu as montanhas do esquecimento para precipitar o adormecido sonho. E obviamente encontrar toda essa afável população, do Mestre Caninhas da inesperada jornada de barca, até ao Dom Lourenço d'Almada que humildemente abriu as portas do Paço de Lanheses à Manuela. Em torno, num só corpo abraçado pelas nobres circunstâncias, a determinação da Marta Ramos, a atenção do Mário Fernandes, a dedicação do Rui Pelejão, o companheirismo da Filipa Gambino e do Bruno Ramos, do João Palhares, do Hiroatsu Suzuki e demais. Galgando pela Capital ou de certeza na Cinemateca sua casa, a velar por cada um de nós, José Lopes, o imenso actor atirado para a lama e esquecido pelo meio podre, que na carta lida numa estação de serviço como que redime todos os crimes. E mais do que isto, já no campo divino e perigoso da fidelidade sem freios, estes não foram ao Paraíso armados até aos dentes da curiosidadezinha antropológica da praxe, citadinos e bem formados que olham de cima sociologicamente falando, com o compendio teórico da moda numa mão e a super-registadora na outra, cravados de pecados e amarelamente sorridentes, mas obviamente perceberam como a Manuela Serra tinha chegado na primeira idade àquelas águas e àquelas quentes casas e almas, como chegou toda disponível, despida de intenções, pronta a aprender e a partilhar. Outono Peckinpahniano unido ao mundo inaugural de “How Green Was My Valley”, tudo se une e reúne, fim e começo, e então trata-se de passar e deixar testemunho do que foi e do que já não é ou pode deixar de ser brevemente. Da parte que me toca, e sei que aos outros tocou na mesma, encontrei na constelação do rosto e na firmeza das gentes de Lanheses algo que tem de ser imutável, exemplo da grandeza do Homem que não pode ser traída ou vendida, que tem de ser defendida a sangue e a morte. Grandeza igual à das grandes Mães e Avós, nossas ou de John Ford ou Reis, que nos deram as genuínas e generosas lições que nenhum livro épico ou bíblico, objecto artístico ou cadeira académica sequer se aproximou. Que é o que consta também na conversa que vagamente estrutura o nosso filme, gente que teve e deteve esse amparo, dureza e carinho. Dureza e carinho, toda a ternura como toda a severidade, onde uma não existe sem a outra, correspondências exactas onde um beijo ou um berro querem dizer rigorosamente a mesma coisa. O nosso trabalho consistiu então em tornar mais fortes as palavras a par da recordação e erupção do filme primordial, do agora e das deambulações perpétuas. As coisas, movimentos ou temperaturas, como as pessoas, ou são ou não são, e se seria impossível e ingrato fazer jus pleno ao que tentei meter em pobres palavras neste texto, igualmente seria meter em imagens e sons. Pessoalmente, outra vez, nunca me senti tão nervoso a fazer um chamado filme, berrei e desesperei, fui injusto e perdi-me, não me reconheci e fui aos fundos nocturnos, e a única coisa que posso dizer em função disto é que vislumbrei, e toquei mesmo, em coisas, sentimentos e emoções, que nunca tinha encontrado, e não soube como lidar com isso, como não estragar, atraiçoar. Levei umas lições que já há muito merecia, e que vieram da pior e da maneira mais importante, inesperada. Esta foi a nossa tentativa, a prenda e o agradecimento, onde todos os que se vêem no ecrã, no genérico ou em espirito foram decisivos. Aqui e ali a imagem pode estar selvagem, o som indomado, a ligação de planos abrupta, mas saiu sempre de dentro, com empenho e muito amor. Amor, sempre o último reduto e possibilidade. Dedico também este momento à Isabel, a mais delicada e bonita jovem deste filme para sempre jovem e prevenido, que morreu na conclusão do projecto (uma das causas para que o filme demorasse 35 anos a lá voltar pronto), que de lá de cima, do Reino dos Céus, morada de Deuses, esboçou com certeza o mais cristalino dos sorrisos. Que se continue a descobrir e a redescobrir, sempre a rever e a experimentar iniciaticamente, confortado e virgem, esta obra, verdadeiramente infinita. E que regresse o tempo em que se façam sopas com tempo e se as comam com toda a disponibilidade. O Humano, sempre.
José Oliveira
Fevereiro 2015
(foto: Filipa Gambino)
(foto: Filipa Gambino)
Clint / Cimino - not a political movie
It’s Clint’s best work as a director. By far. For all the reasons that people like it. I don’t think other directors, including myself, could have gotten the same result given the same resources. Clint got an extraordinary result because he is an extraordinary man. There’s no pretension about him. He could be Bradley Cooper, he could be the character. Clint inspired Bradley by virtue of who he is, a principled guy. Clint has remained my friend for over 40 years.
How does Sniper compare with The Deer Hunter?
It’s not, in my view, much like Deer Hunter. Though it was characterized [as such], Sniper’s not a political movie. It’s not about the rightness or wrongness of the war. It deals with the impact of trauma on people who go to war and people who stay behind.
But both Deer Hunter and American Sniper confront the grief of war …
Yes, especially at the end, the way it ends with the flashback to the death of the real protagonist and the reaction of people with flags. It reminded me of [the ending of Deer Hunter, when De Niro,Meryl Streep and others break out and sing] “God Bless America,” which again was not meant to be a political statement. You know, when you’re overwhelmed with grief? You see women in Africa, Arabia, Indonesia wail. But in America, I think what people do is reach out for a common expression. The idea came from an experience in a restaurant in Pittsburgh, where people actually for no reason whatsoever broke into that song. It’s a way of relieving the grief and knitting back a family. I’d never seen that footage before in the ending of Sniper with the multitudes of people. It overwhelmed me.
https://www.yahoo.com/movies/jon-voight-jane-fonda-and-michael-cimino-attend-111486364587.html
domingo, 15 de fevereiro de 2015
laboratório da vida *
"Interesso-me sobretudo por pessoas e pelo seu caráter - estou fora de políticas ou ideologias. Quero mostrar pessoas em determinadas situações. Os meus filmes são feitos por crianças que tentam dar o seu melhor, fascinadas pelo milagre do cinema: aquilo que está a acontecer, a luz, o argumento, o vento, o ambiente, a atmosfera... Não o fazem por dinheiro ou outra coisa qualquer."
"Nenhuma idéia, só quero filmar pessoas que sabem o que querem."
Michael Cimino
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015
extra shot II
Exemplos práticos:
- Autorismo: “J. Edgar” pode não ter a depuração e o
humanismo esventrado de “Mystic River” (nem essa ambiguidade terminal, essa "pequena" guerra imensamente mais pecaminosa e desonesta do que a de Sniper, o horror calado do gesto final entre Kevin Bacon e Sean Penn) ou de tantos tantos outros, mas o
carinho final só tem paralelo em Borzage. Assim como o poder de sugestão é
mais radical e potente do que o de qualquer contemporâneo que diz mandar às
urtigas as regras e a História e a moral - a liberdade tonta de pacotilha que
incendeia os festivais e as canetas excitadas que gritam ter descoberto a pólvora. O “Jersey Boys” respira leveza, diversão
e os personagens até falam para o espectador; mas então, dito isto e visto isso,
em que gaveta podemos encaixar o “último dos clássicos”?
- Confiança: tenho confiança no coração de Clint (mesmo
quando mata por amor a Million Dollar Baby) e na sua incorruptibilidade; confiança
extrema na dedicação de Pedro Costa a um povo e a uma herança; desconfio das
masturbações abjectas de Lars Von Trier ou das metafisicas balofas de um
Joaquim Sapinho – sem ser preciso retórica para explicar o que é evidente na
tela e a suja.
- Fidelidade: irei sempre ver os dois primeiros
tipos citados no ponto acima, como irei a uma cinemateca ou ao barraco de um perfeito
desconhecido que não queira impingir ou vender nada; nunca irei ver o “Mommy”
do Xavier Dolan depois de ter aguentado o trailer mais baixo e nojento para com
as distâncias ao Humano a que o Cinema tem de se sujeitar.
- Partidarismo, mestres e lendas: tal como a
confiança e a fidelidade aniquilam a falsa questão do autorismo, a cada qual se
reserva o direito ao erro e à contradição natural; jamais à indesculpável traição
e mercenarismo calculado, lixar o próximo, filhadaputice.
- Progressão na carreira: Religiosidade, trilho para o Sagrado (acreditar
no que se faz: no que se filma como no pão que vai ao forno) ou NADA.