quinta-feira, 26 de abril de 2018
sábado, 21 de abril de 2018
O mote para a Nouvelle Vague – movimento cinematográfico francês dos finais da década de 50 encetado ferozmente por um grupo de críticos vindos na maior parte da revista Cahiers du Cinéma, de outras publicações hoje injustamente esquecidas (Arts-Lettres-Spectacles, por exemplo, tem pedras preciosas) e do cineclubismo marginal (Cinéma Mac Mahon), fartos do artificialismo barato e do prestigio de um certo cinema de qualidade e inspirados por verdadeiros autores, daí a criação da “política dos autores” a defender com as garras afiadas e com toda a justiça e injustiça das paixões demenciais figuras e individualistas como Jean Renoir, Orson Welles, Alfred Hitchcock... mas também artesãos da sombra à maneira de Joseph H. Lewis ou Sam Fuller - foi dado por Jean-Luc Godard com o libertador O Acossado, por François Truffaut com o nostálgico Os Quatrocentos Golpes e com o mais lírico, o mais desesperadamente belo, poético e um dos filmes mais urgentemente românticos e aterradores alguma vez realizados: Hiroshima, meu Amor de Alan Resnais, o filme desta noite.
Toda a memória do mundo chamou-se uma curta-metragem de Alain Resnais mais de vinte anos depois de ter começado a confrontar a crueza da película cinematográfica com a crueldade dos homens, e todo o essencial se resumirá a isso até ao final da sua obra, inclusive nos mosaicos e nas polifonias finais que tão festivas nos surgem por vezes. Les statues meurent aussi, de 1953 e realizado a meias com o outro grande poeta da devastação e da terra queimada que o século tecnológico escancarou (sim, ler com estas imagens Ruy Belo e T. S. Eliot); Noite e Nevoeiro e a impossibilidade do romanesco ligada a máquina e a encenação na concatenação dos Apocalipses; todo o resvalar do sincronismo entre imagem e som, Homem e o seu meio, o presente mais do que puro e o passado em acção nos essenciais Muriel ou o tempo de um regresso ou Providence. O estatuário, a carne, o solo terrestre, o espaço desconhecido aqui e para lá das estrelas visíveis, a contaminação da física e do concreto; e tudo o que fizemos, cada um e a raça, do nascimento ao túmulo e depois.
Em Hiroshima um homem e uma mulher perdem-se de amores, ela é actriz, está lá a rodar um filme e partirá para o seu país no dia seguinte, ele habita em Hiroshima e no dia seguinte nunca mais a verá. Ela vive em Paris uma vida que não quer viver, ela conta ao amante o seu passado até aí aprisionado e insondável como forma de eternizar um amor condenado, ele não quer continuar a sua rotina de Pai de família, ele quer largar tudo e ficar com a mulher. A rondar tudo isso, como um pó de séculos que cobre e devasta um chão, as bombas atómicas, as guerras frias, as doenças mais escabrosas e as pestes mais negras, as quedas de pele e de cabelo nas doenças do ar e já a química cobarde das novas guerras anunciadas via Twitter; o risco e uma electricidade no ar que funde com o fim dos tempos tal como as visões mais alucinatórias nos fizeram espreitar até hoje, de George Orwell aos profetas Bíblicos.
A Mulher é “Nevers”, o Homem é simplesmente “Hiroshima”, e o filme fica como o canto mais profundo, mais sensível, o mais louco e terminal amor que o movimento libertário francês nos ofereceu no seu período dourado...sobretudo porque o escavamento temporal, narrativo, enfim, a sua total liberdade e totalidade dos temas e das formas surge revestida, investida de uma sensação de Apocalipse nascente da proeminente impossibilidade de um amor; impossibilidade concretizada pelo nosso avanço de inteligência e de poder maquiavélicos.
Os sentimentos, os gestos, os olhares, os corpos estão tão suspensos e assombrados pelo fantasma da noite e do nevoeiro derradeiros como do consequente regresso a uma normalidade desprezível que significa a paz podre que hoje vemos no mundo de Trump e de Putin. E o facto deste amor acontecer em Hiroshima contamina o filme com uma gravidade simbólica e prática de uma violência insuportável e intolerável. Pois tudo abarca, engole, vomita, aceita e abjecta: actualidades de telejornal descarnadas pela duração e frontalidade... profundezas da terra... criação poética... bichos da madeira e das tripas... o primeiro dia do mundo captado pelo cinematógrafo impossível... os corpos cadentes de Emmanuelle Riva e de Eiji Okada em transição e em fade à podridão das carnes, dos ossos e das vísceras dos campos de concentração ou do pó da bomba capital; em transição e em fade ao mais horroroso dos espaços off que o cinema e a sugestão ousaram: a indiferença perante tudo o que vemos no contracampo suado da entrega e do sexo.
E depois, claro: como nos filmes de Godard, como nos filmes de Truffaut, como nos filmes mais representativos da Nouvelle Vague que neste filme excedemos e resumimos no nosso ciclo, onde poderemos incluir Chabrol, Rivette ou Rohmer, entre outros, sente-se que o que se está a ver e a sentir é não identificável, não lugar sendo na terra nossa, híbrido acabado... com a inocência das primeiras vezes e o terror apurado em laboratório de ponta. Em Hiroshima, meu Amor os actores e quem o olha queima-se pela consciência, no inegociável.
A beleza assustadora das coisas que não duram...a mais bela cena de amor alguma vez filmada que é ao mesmo tempo a mais feia, a mais arrepiante voz-off, coro de todos aqueles mortos... um final enigmático que só o deixará de ser quando aparecer a paz sonhada... Hiroshima, meu Amor é o mais belo poema Nouvellevaguiano...e é um dos mais apaixonantes objectos artísticos, uma das experiências mais transformadoras alguma vez executadas: por ele vamos sentir a brisa de todo o romantismo procurado pela arte e pela emoção qualquer que seja, livre de conceitos e preconceitos, com o terror da espécie humana e dos actos a corroerem cada plano, cada som, cada teoria do mais astucioso analista, infinitamente para lá da jouissance frívola que muitos associam à NV.
Aqui estão todos os possíveis ciclos de Chris Marker, de Stan Brakhage, Stanley Kubrick, Norman McLaren, e mais uns quantos que aplicaram a mais potente das lupas tanto ao microscópico e às moléculas invisíveis como à explosão do dia final; percorreram essa distância, cegaram-se nesse espectro, ensurdeceram-se no silêncio mais furioso e calaram-se no estrondo total. Todos os trompetes e saxofones e carnificina do Charlie Parker que arrancou o Bebop ao inferno do ar do tempo ameaçado, o Dizzy Gillespie de pilhas ultra-duracel ou o Miles Davis da fusion incompreendida, que forjaram uma nova arte e uma nova sensação a partir da queimada prometida pelos cogumelos da nossa evolução. Marguerite Duras e uma sede dos poros dos cinco actores deste filme e de todas as existências somadas. Todos estes seres foram casualidades doentes de uma mesma era.
Mas o mais ambíguo, e naturalmente contraditório, tem a ver com a invenção e reconstrução a partir dos escombros operada pelo visionário Resnais. Muitos foram os escritores que partiram a pedra das palavras do terreno por eles habitado para erguerem uma nova linguagem (Thomas Pynchon, Joyce, um certo José Cardoso Pires), tal como Picasso ou Jackson Pollock esventram o caos circundante aliados a tintas, aos músculos e aos nervos; Hiroshima, meu Amor é tecido e fabricado com os restos deixados pelo urânio e pelo plutónio e afins, por esses cacos e esses ossos magros e desfeitos como cadáveres que não são actores nem documentário, entre o fumo do big bang e a radioactividade perene, a memória com a ameaça permanente fundidas a ferro de temperatura inédita; Resnais agarra nessa matéria que não dá para agarrar e enforma o que não tem forma possível; daí o constante espanto, assombro e inaceitável de cada quadro e de cada corte, de cada aparição e renascimento.
Mas é literalmente uma obra onde as palavras surgirão sempre em perca para a descrever, é um filme para habitar, para nos deixar perder nos seus labirintos e na sua vibração interior... para uma confissão. Para um trabalho de cura. E de aviso.
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)
segunda-feira, 9 de abril de 2018
Caros espectadores, o filme que hoje vamos ver é a obra final de um dos poetas mais raros e delicados de todo o cinema, um tipo de sensibilidade que o mundo do caos e da modernidade galopante teria obrigatoriamente de ceifar; mas foi uma tuberculose que lhe tirou a vida aos vinte e nove anos de idade, e L'atalante já foi tecido e terminado por um Jean Vigo sôfrego e porventura com a lucidez e a liberdade associada a quem tem a morte na ronda da noite. Com apenas quatro filmes transportou a arte das imagens e dos sons colhidos e manipulados em celulóide até às portas da total ousadia e da infinidade, sendo ainda hoje referência essencial para os mais opostos cineastas e artistas em geral. Começou no mudo e no mudo ficou, mesmo se L'atalante é tão descarnado, arejado e revolucionário a nível sonoro como o La nuit du carrefour de Jean Renoir.
À propos de Nice é de 1930, e desde os foguetes iniciáticos e das visões aéreas, são vinte e poucos minutos da mais descabelada feérie e de um documentarismo descritivo sem teorias nem amarras; realizado a par com o fotógrafo Boris Kaufman já o mergulho para o desconhecido de uma arte ainda no feto estava dado de cabeça; Taris, roi de l'eau de 1931 tem ainda menos metragem, 10 minutos apenas, é uma homenagem ao grande nadador Francês da época, um registo didático, que vai sendo enevoado e engolido por um surrealismo que já chega da fantasmagoria ontológica da película e pelo poder incomensurável e misterioso da câmara de filmar em transformar homens e carne em estátuas e na eternidade, com o elemento líquido e a magia associada a todas estas entidades formando um embrulho e um corpo intimamente cósmico; quase por último, Zéro de conduite: Jeunes diables au collège, o “filme dos filmes” da infância e o cúmulo do jogo de ambiguidades entre inocência e crueldade sem objectos perfeitamente definíveis e estanques, culminando na cena de almofadas do sono e de descoberta sexual que é a imagem acabada e desfeita de tais perfurações, momentos decisivos para o liricismo que François Truffaut sopraria mais tarde quando o cinema do seu país estava agónico e a precisar dele, começando no sedento e afagado Antoine et Colette.
Sobre toda a herança desta cosmogonia breve e tremenda como o mais rápido dos projécteis não identificados que se destrói ao entrar na atmosfera terrestre, João Bénard da Costa escreveu: «L'atalante é a matriz de onde vem todo o grande cinema francês futuro e, nesse sentido, é o maior dos filmes percursores. Posso pensar em Godard sem Renoir, por mais que saiba quanto Godard o amou. Não posso pensar em Godard sem pensar nesse cineasta que morreu aos vinte e nove anos e que teve de esperar vinte e cinco por uma posteridade. Sem a liberdade que Vigo teve, sem a poiesis que Vigo teve, o cinema nunca seria tão livre como foi e nalguns casos continua a ser. Todos somos filhos de L'atalante». Até Truffaut e até Godard, e até ao mais fascinante e inclassificável de todos os realizadores franceses ainda vivos, Leos Carax, que tem sofrido tanto como Vigo por reconhecimento, de que Les amants du Pont-Neuf (já lá voltaremos) é um remake total; e até Manoel de Oliveira que o homenageou não só na literalidade e reinvenção de Nice - À propos de Jean Vigo, mas sempre, por exemplo nas cintilações e nas Ofélias de Vale Abraão.
L'atalante foi, depois da morte de Vigo, um filme trucidado pelo estúdio que o produziu e esquecido por quase todos – dos inúmeros crimes destaca-se, já agora, a substituição da belíssima e inaugural música de Maurice Jaubert por um tema popular da época, subvertendo o celestial pelo comestível - sendo progressivamente descoberto ao longo dos anos pelos cinéfilos e cineastas mais veementes – como os citados da Nouvelle Vague ou a aparição na célebre lista dos melhores filmes de todos os tempos da Sight & Sound magazine em 1962 – para se chegar a uma montagem final apenas nos anos 90 (e obviamente muito contestada) na qual ajudaram, bem como nos recentes restauros, o grande investigador e escritor Bernard Eisenschitz, a filha de Vigo apelidada Luce Vigo, ou mesmo o esfomeado Martin Scorsese, que afirmou que o filme nasceu sozinho e continua sozinho, ainda hoje, como grande parte das obras essenciais.
Oitenta e nove minutos comporta a obra que hoje conhecemos e é assim um dos monumentos de qualquer arte; um altar, um depositário ou uma arca mítica de luz que jamais as tesouras dos produtores poderiam ter apagado; um movimento dissonante e harmónico que tem os fundos das águas e os confins do firmamento – para lá das portas dos céus – como limites, de onde a ordem das sequências e a significância de mistérios e de dialéticas sem precedentes existiriam fosse qual fosse a ordem das coisas, inclusive a ordem da sorte não poderia apagar o inapagável; enfim, a perdição e o milagre do existir num perpétuo equilíbrio e risco.
L'atalante inaugura-se com neblinas, águas, muito ar rarefeito, palpável, em sensações e atmosferas próximas à observação da formação de um feto, à saída da criança do ventre materno, à visão da primeira claridade deste mundo e das primeiras memórias que mais tarde se vão tentar refazer; sinos, casamentos, marchas, brancura, flores no charco, que parecem tão nupciais como funerárias, perfurando e unindo todas as pontas da existência, já li, na abertura. E já a bordo da embarcação que dá nome ao filme, tudo começa a escurecer, sendo de notar que não é a luz que baixa de intensidade, mas toda a envolvência com as situações e o desenrolar do novo estado do par – os gatos que invadem os beijos, que adiam os desejos e a libido, as desmultiplicações destes, os corpos e as salivas enrolados pelos chãos, a fricção com os restantes membros, os humanos a tornarem-se felinos (o noivo em cio a gatinhar no estrado é pura desgarrada animalesca), a besta humana a querer cantar, a danação a virar a cara à lua-de-mel e à sagração: o amor, o bem, e o maléfico e incontrolável, o outro lado do espelho que se irá partir lá para os meios do percurso, uma predestinação carregada de sinais e signos que consoante o contexto e a circunstância poderão ser todas as faces da moeda a mostrarem-se logo no dia primeiro do resto das suas vidas.
E é logo desde o primeiro instante que Michel Simon entra em cena como o dono do barco de todos os perigos e arcas-de-noé, esse Le père Jules que tem aqui a sua criação mais fascinante a par com a de Boudu sauvé des eaux, igualando-a incrivelmente em anarquia e resoluta fraternidade; é ele o Pai dos gatos e do noivo, o monstro da luta livre e das libertinagens cosmopolitas, o desflorador espiritual e logo carnal da noiva e dos véus restantes, com o corpo tatuado como se se tratasse do mapa do globo que correu e provou ou de painéis terroríficos dos apocalipses de um Hieronymus Bosch, esse acordeão que legará ao Denis Lavant de Carax, acabado funâmbulo que prova do próprio sangue sem fazer caretas e que guarda todas as feiras geladas e marionetas destroçadas no seu sétimo céu para as incendiar e trazer à vida a quem merece. Dançarino Nietzscheano que no término meterá a corda mestra mais uma vez em tensão para outro fogacho de equilíbrio.
Simon, como o seu ajudante que parece um bobo Shakespeariano, ou aquela personagem parisiense - numa paris de fundos, de cheiros e de horizontes somente sonhados nas entranhas dos desejos e das ilusões rurais – que tenta diabolicamente a noiva com todos os clichés dos brilhos da “cidade da luz” e as sugestões proibidas com que os papões devoram as crianças e juventudes (mais uma vez os gatos a comerem sem regra), perfazem uma galeria que juntamente com o nevoeiro, as névoas, neblinas e massas complexas de fumos e químicos, vão cercando o casal recém formado, como que precavendo e mostrando que sexo e morte podem falar de uma e da mesma coisa; assim como o encantatória e a fábula só atingem o fascínio por essa mesma consciência e união que escapa a definições e dicionários. O feérico com os fogos-de-artificio que vão excedendo e devorando tudo, outra espécie de patético, são o forçar do afastamento dessa visão baça, dessa falta de nitidez dos primeiros instantes do universo, o aprender a respirar, onde tudo vale, onde os indigentes são príncipes em castelos de papelão, os adultos oficiais retrocedem até à luta e aos estripar das almofadas dos quartos nocturnos das visitas-de-estudo ou dos orfanatos, sendo preciso provar a vagabundagem e o pó jazente em baixo das pontes para se sentir as sensações genuínas e não somente os conselhos e a palavra sagrada. Sexo e morte, inocência e terror, meninos e monstros, só muitos anos depois Leos Carax se suicidaria deste modo, se afogaria assim para visionar nessa morte a pureza e a transgressão absolutas e poder regressar, ressuscitado e transfigurado.
De que fala então L'atalante? Do tão banalizado mistério da luz. Que ilumina e revela todos os lados, desflora, mata e faz renascer. De todas as estações numa só. Da eterna busca por entre o nevoeiro, de todas as matérias aquela que a luminosidade mais adensa. Da necessidade dos corpos por todos os outros corpos. Do corpo do cinema que permitiu ampliar tudo isto até ao infinito.
Da poesia, assim, uma boa sessão a todos e um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, Espero, desejando uma boa navegação:
Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.
(texto escrito para o LUCKY STAR - Cineclube de Braga)