sexta-feira, 21 de março de 2008

Hawks/Kant

Só publico este trabalho, realizado na escola de cinema, na cadeira de estética, para verem o que é trabalho académico; não me orgulho dele nem um bocadinho e se o ponho aqui é porque o vou apagar do computador pois está a ocupar 54 kb e eu preciso deles para sacar filmes…(não leiam, a sério…)

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Em jeito de introdução, e para deixar claro a natureza deste meu trabalho, quero referir que este consistirá na ligação de um filme com a filosofia de Kant, no caso a sua noção do sublime.
Também convêm realçar que o trabalho conterá uma vertente cinéfila acentuada, sempre em relação com a filosofia do referido autor.
Em causa estará um dos filmes mais célebres daquele que foi reconhecidamente um dos mais ferozes cultores da era dourada do cinema americano – anos 30, 40 e 50 – ou seja, o cinema clássico, com que Hollywood fez a sua glória e estabeleceu a sua iconografia, bem como a fasquia á qual todo o cinema posterior é comparado – o cinema moderno, o maneirismo, o pós modernismo, alto modernismo, etc.
O realizador é Howard Hawks, no meu ponto de vista, a par com John Ford, o exemplo máximo do tal cinema clássico americano, modo de produção de filmes, em que o realizador não tinha, era mesmo proibido pelos estúdios – ao contrario de hoje em dia – que deixar a sua marca pessoal, e os filmes teriam então que ter uma decoupage invisível, clarividente, fluente, o que importava era acima de tudo contar uma historia de modo perspicaz, bem como deixar brilhar as estrelas dos filmes.
Claro que os gigantes deste período – Hawks, Ford, Cuckor, Wilder, Huston, etc. – dentro deste sistema rígido e apertado, com o seu génio que os demarcava da maior parte, conseguiram imprimir nos filmes marcas altamente reconhecíveis, eram homens altamente inteligentes e subversivos.
Fiquemos por Hawks: foi um dos mais prolifequos de todos, realizou desde comédias – o tão famoso subgénero das screwball comedies, que foi um dos fundadores – a filmes de gangsters, Westerns, e claro os seus famosos filmes de aviação.
Ficou conhecido como o cineasta que não comentava a técnica, que a desprezava mesmo, o contrário de Hitchcock, portanto.
O seu cinema ficou mesmo conhecido como a “arte da clarividência”, ou seja, construções tão obvias, secas e concretas que só podiam ser daquela forma – nem mais nem menos, Hawks atingiu, nos seus vários cumes, a perfeição das coisas justas.
A expressão “a câmara á altura do homem” que ficou celebre pela maneira como ele filmava as personagens e os meios, com a tal justeza, sem qualquer pretensão de pirueta meramente estilística e pueril, serve como demonstração perfeita para a arte do americano.Os jornalistas que nos anos 50 escreviam para a Cahiers du cinema, e que depois, como realizadores, fariam a passagem total para o cinema moderno – Godard, Truffaut, Chabrol, etc – encarregar-se iam de o mitificar, de o singularizar da maior parte dos tarefeiros que trabalhavam na Meca do cinema, através, por exemplo, da célebre noção que resumiria todo o cinema americano que importava na época, e sobre o qual tudo girava: eram os Hitchcok/Hawksianos. O homem – Hawks – que não comentava a técnica, mas que incutia nos seus filmes uma sofisticação e uma complexidade serena inultrapassável, mas nunca obvia a uma visão simples e primeira.
E Hitchcok, talvez o cineasta que mais ao limite levou a arte da mise en scene, mas que paradoxalmente, não era esse o factor que mais importaria na sua obra.

Dois pólos sobre qual tudo giraria, se quisermos.
Feita a introdução que julgo útil e necessária, proponho então ligar um dos seus filmes mais famosos, um dos melhores de todo o cinema, opinião consensual no meio: “Only Angels Have Wings” de 1939, que ente nós recebeu o titulo de “Paraíso Infernal”.
Resumirei o filme do seguinte modo, e da maneira que interessa para o trabalho, para o seu âmago: Algures nos Andes, um Homem – Cary Grant, papel de uma vida – dirige uma modestíssima companhia de correios aéreos, com meios escassos, pobres, talvez anacrónicos. Mas acima de tudo, o que impressiona, é a maneira como um grupo de homens, aceita trabalhar, pôr a toda a hora a sua vida em risco, nas piores condições possíveis, debaixo das mais altas tempestades e dos mais furiosos trovões a que o lugar é propicio. No meio haverá uma love story singular, e relações muito dúbias entre os homens, mas não será o mais importante.
O que me interessa para o caso, e para a ligação a Kant, é o modo como nos homens existe qualquer coisa, uma qualquer loucura e pulsão, que lhes tapa a visão, lhes neutraliza insanamente e para lá da razão, o medo e a constatação de que o que fazem é qualquer próxima do suicídio, e deste modo continuam a voar – para lá de qualquer ideia de sanidade ou raciocínio.
Os aviadores e a sua tarefa, fundido com o mais belo e hipnótico dos meios (o céu, sempre o céu e os seus simbolismos), tudo transposto magistralmente para a tela – visualmente, formalmente, dos filmes mais belos alguma vez feitos – nunca por nunca poderá causar prazer positivo ao espectador, muito menos ás personagens que habitam o filme, por isso Kant faz sentido nesta minha analise – só pelo lado do mais terrível do prazer, da mais tenebrosa beleza, é que tanto os espectadores que sentem o filme, como as figuras que o vivem e habitam, poderão visionar e aceitar, respectivamente.
Cruzarei tal filosofia sobre a narrativa, a ficção destes homens, ou seja, o sensível das personagens e as suas motivações e impulsos, mas também do modo como todo o filme, formalmente e estilisticamente, é construído, e que como veremos, está para lá de qualquer ideia de belo, estará no campo do sublime.

Existe num texto sobre o filme, escrito por João Benard da Costa, uma passagem que foi o mote para eu escolher realizar este trabalho. Por querer compreender a abrangência e o porquê de tais palavras, da relação filosófica que Benard da Costa estabelece com o filme, e que no meu ponto de vista, como escreve Kant, destrói qualquer noção de sublime normalizada que se possa ter para com o filme, para lá da cinéfilia.
A passagem é a seguinte: “Neste filme de décors e maquettes alucinantemente irrealista (já se disse que era o mais teatral dos filmes de Hawks), a única realidade com que ficamos (em elipse) é a morte de Kid, recusando qualquer companhia para his first solo. Mas essa realidade é a que dá asas aos anjos e permite que, no fundo dos Andes, alguns homens e algumas mulheres reaprendam a viver e a acreditar. Ou aprendam que o único vôo possível é o da morte. Quem foi que falou da lei moral dentro de nós e do céu estrelado por cima de nós? Emmanuel Kant ou Howard Hawks?”
É obvio que na passagem existem factos que não me interessem, e a ligação que o escriba estabelece poderá obviamente nada ter com a noção do sublime de Kant.
Mas, quanto a mim, nela existe algo que liga em absoluto com a loucura que os aviadores mantêm, que os faz voar diariamente no mais belo dos cenários – o céu – na mais bela da luz, equiparando-se a anjos, a Deuses, no tal céu estrelado, viver e ultrapassarem-se constantemente, como escreve Kant: “Assim o extenso oceano, revolto por tempestades, não pode ser denominado sublime. A sua contemplação é horrível.”
Na mais imediatista acepção da palavra – fora do significado que Kant atribui á palavra – todo o filme e o seu espírito, as suas imagens, o facto de termos em comunhão o homem com os céus, com o eterno desejo humano de voar e ultrapassar limites, tudo seria considerado sublime, sem hesitação.
Mas como considerar, de maneira pueril e sem recorrer a Kant, sublime, o acto de pôr diariamente a vida em risco, mesmo sobre o mais belo dos cenários? Como dizer simplesmente, este filme é sublime? Pela beleza de tudo o que é posto em cena? Pela coragem humana?
Teremos forçosamente que ir a Kant e á sua noção de sublime, para falarmos nestes termos do filme, aliás substitua-se o oceano que Kant fala pelo Céu e alcançaríamos uma lógica.
Se como diz Kant “o sentimento do sublime é um prazer que só surge indirectamente, produzido pelo sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais e pela efusão imediatamente consecutiva e tanto mais forte das mesmas”, penso que é o que se aplica, literalmente, á forma como os pilotos resolveram viver diariamente – naquele momento fugaz e singular em que o avião descola ou aterra, ou em que um trovão ou a mais violenta das tempestades caí sobre a máquina, só a inibição das forças vitais, um certo niilismo diria mesmo, esquecimento do puro presente, para de seguida, se a vida não acabar, poder chegar a uma sensação a que a maior parte do humano não chega – a sensação do prazer absoluto, de que se ultrapassou a si mesmo, quebrando todas as barreiras físicas, a tal efusão que Kant refere.
Pois claro, é obviamente um prazer negativo, a constante vivência no fio da navalha entre a atracção pelo acto e o seu repelimento, essa contradição, o esquecimento momentâneo da acção para atingir algo que está para além de todas as fronteiras e normas – nada de prazer positivo, convencional, prazer que merece, como diz Kant, ser admirado e respeitado.E se Kant diz que o sentimento do sublime pode aparecer quanto á “forma, contrario a fins para a nossa faculdade de juízo, inadequado á nossa faculdade de apresentação, violenta para a faculdade da imaginação”– tudo isto é obvio na maneira como estes homens, no momento em que resolvem dedicar-se a
essas vida, ou no instante em que na inércia momentânea, espécie de roleta russa, não sabem se vão continuar a viver, elidem qualquer ideia concebida de racionalidade e resolvem ir em direcção ao tal prazer negativo. Só por aqui, no meu ponto de vista, qualquer ideia de sublime poderá ser aplicada ao filme.
E é essa loucura que não pode ser delimitada, não pode ter forma, é sem dúvida ilimitada.
É a quantidade do conceito indeterminado da razão que está em causa e que faz que não estejamos nunca em presença do belo – a qualidade, a forma limitada – mas sim já no sublime.
Se o sublime é contrario a fins, se não pode estar contido em nenhuma forma sensível, mas concerne somente a ideias de razão, é então envoltos em tudo isto, neste abismo que não tem em vista um fim, sim a ideias de prazer que não seja o do belo, que os pilotos se entregam, para lá de toda a limitação do belo.
Kant afirma a certa altura que “o ânimo é incitado a abandonar a sensibilidade e ocupar-se com ideias que possuam uma conformidade a fins superiores”, tal afirmação faz raccord absoluto com aqueles instantes de uma urgência e de algo para lá de toda a estabilização, em que os pilotos, sossegados, nos momentos mortos, ouvem a ordem para voar sobre as condições mais horrendas, ou, o que vai dar ao mesmo, os momentos em que os homens, lá nos céus, nos momentos terminais em que sentem a proximidade do fim, tem que se entregar a ideias que estão para lá de qualquer ordem terrena, é o instante em que se auto aceita entrar pela loucura adentro.
Reparemos, no filme, que todo o prazer que a presença da mulher suscita no filme, é sempre um prazer em contra campo, perante o mais singular e indizível dos prazeres, o prazer que vislumbra, no “virar de uma esquina” a proximidade da morte, o sonho do voo – por isso é prazer sublime, nunca belo, e sublime segundo a noção Kantiana e nunca na verdadeira acepção da palavra.
Existe ainda duas ideias que estão presentes em muitas obras de hawks, deste filme a “Land of the Parahoes”, por exemplo, que tem a ver por um lado com uma certa divida com deus que certas as personagens aparentam ter, por outro lado, como escreveu Benard da Costa: “Á pena que tem de si próprio (personagem) substitui-se, a percepção fulminante que ninguém terá pena dele. Nem dos outros”
Ideia que remete, no caso da divida para com Deus, para o terreno do invisível que faz com que as personagens se entregarem aos mais profundos abismos e loucuras como forma, digamos, de redenção. Abismos que só no terreno do horrendo e do negativismo serão encontrados.
No caso da constatação do isolamento, ou da falta de memória, digamos que é a constatação do vazio que existe por detrás do prazer negativo, algo irreversível, um vácuo – sublime porque irreversível, nem mais.
Podemos entrar ainda um pouco na psicologia individual de duas personagens fulcrais no filme, Geoff Carter (interpretado por Cary Cranter) e Bat (Richard Barthlmess).Carter é o homem que dirige a companhia, que está em terra a comandar todos os outros homens (ou anjos como diria Benard da Costa) e é de uma ambiguidade tremenda e assustadora. Nos seus olhos incisivos, na sua aparente pacificação e acalmia temos a constatação de um humano que já viu de tudo, que já viu o contrário da vida, que já pressentiu a morte, lá por cima das estrelas, enquanto piloto – adivinha-se que todo o prazer negativo, o horrendo que caracteriza o sublime já está arrumado na gaveta, na cabeça de Carter, é o homem que se deixou “normalizar” depois de todas as tempestades e que já está disponível para amar e para zelar pelos outros pilotos que de certa maneira se revêem nele.
Se quisermos ir mais longe podemos tecer comparações sobre a maneira como Hawks desenha esta personagem – de um certo negrume, desconfiado, maduro – com a maneira como Hitchcock o usou em inúmeros dos seus filmes, sempre de um modo mais lúdico, irónico e distanciado, pensemos por exemplo em “North By NorthWest”. Os contrários sobre os quais o cinema americano e os seus temas e formas vagueavam nesse período.
A personagem de Bat é psicologicamente atormentada, transporta consigo um pesadíssimo sentimento de culpa, a pior das culpas, a culpa que queima. Olhado com desprezo por todos os outros (culpam-no da morte de um outro piloto) busca a redenção, e no seu olhar nota-se que está preparado para qualquer coisa que precisamente o redima – já não se interessa dos fins, só os meios contam para a sua meta, está preparado para todos os males inimagináveis, está pronto para entrar loucura a dentro, o que conta é então os meios que lhe atribuam dignidade – e nota-se, mais uma vez ambiguamente terrível, que esse prazer negativista lhe provoca, mesmo que ao virar de uma esquina, um sabor que ele não desdenha.
Carter já não precisa do sublime, estará porventura no belo, enquanto Bat está pronto e aceita entrar no estado do sublime Kantiano a qualquer momento.

E fundamental neste filme é falar na sua construção visual, que como já referi, não encontra par na história do cinema.
Para simplificar, poderia dizer, que no filme só os sentimentos do humano são verdadeiros, ou tratados verdadeiramente, tudo o resto é falso e artificial – e isso assusta.

Todo e qualquer cenário, dos céus ás florestas, os interiores, etc., são altamente artificiais, tudo são maquetas e efeitos, volumes e ambiências altamente exageradas. Como num melodrama (e sem o ser), os cenários estão lá para potenciar, para melhor revelar a emoção das personagens e dos acontecimentos.
E é então neste aspecto que o belo é elidido do filme, isto porque não estamos perante formas reais, naturalistas ou perfeitamente limitadas, estamos sim perante objectos sem forma, totalmente ilimitados – isto porque se trata de construções amplamente exageradas, ao infinito, uma beleza que não existe nas coisas naturais, tal perfeição que assusta e que concorre em prazer ou beleza negativa com a vida e as acções dos homens – estamos no terreno do sublime perfeito.
È a tal “técnica da natureza, representável como um sistema segundo leis, cujo principio não encontramos na nossa inteira faculdade do entendimento” a analogia com a arte, “o alargamento do nosso conceito da natureza, enquanto simples mecanismo”, ou seja, é através da tal falsificação e sublimação de todo um mundo natural, que não é assim, para lá de qualquer fechamento, que toda a construção visual do filme é assustadoramente sublime e atormenta todos os que a envolvem, todos os que ao filme assistem.
E se mais á frente Kant afirma que”o sublime não deve ser procurado nas coisas da natureza, mas unicamente nas nossa ideias", é a prova cabal que a visão de Hawks, quanto á forma como visualmente pôs todas as suas ideias e sensações na tela, foi no sentido de ignorar toda a natureza originária das coisas e do meio, sim envolver personagens e sentimentos, através dos meios e técnicas puramente artísticas, numa natureza outra, inaprisionável, que elevasse toda o negativismo dos jogos ambíguos de prazer.
Que quantidade de exagero? Que quantidade de sublime a este nível? Para lá de tudo, inimaginável e inaprisionavél, não equiparável a qualquer outra ordem de grandeza conhecida e adquirida, precisamente.
Para fechar o trabalho, volto a Benard da Costa, afinal foi ele que me incitou a escrever este artigo: o tal “…céu estrelado por cima de nós” com que ele finaliza ao texto é precisamente o máximo de ambição, mesmo que camuflada, que muitos dos aviadores têm – muitos humanos, diria, o sonho de voar para lá de tudo, livres, etc. – e que numa visão realista, razoável, principalmente no contexto infernal do filme, têm que ser visto como acto louco e puramente insano…acto ausente de qualquer razão, acto que requer, no limite, uma espécie de congelamento das forças e da razão vitais ao homem – é isto e é na esplendorosa construção visual que o filme está no mais puro terreno do sublime.

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