terça-feira, 4 de março de 2008

mestre Carpenter

... neste trabalho pretendo apenas ficar pelo autor em questão e pelo seu universo, pelo restante da sua carreira, porque inevitavelmente será sempre necessário estabelecer relação com o que está para trás, e ai aparecerão casualmente referências a épocas, autores e géneros que influenciaram o cineasta, mas acima de tudo nesta análise pretendo-me deter sobretudo sobre o filme em questão e sobre o universo autoral do cineasta.
O cineasta é o Americano John Carpenter, o filme é o seu ultimo opus, “Fantasmas de Marte” dirigido em 2001, e que têm como titulo original: “John Carpenter´s Ghosts of Mars”.
John Carpenter é se assim posso dizer, e posso com certeza, dos mais incorruptíveis cineastas que o cinema norte-americano já conheceu, ia dizer nos últimos vinte ou trinta anos, mas arrisco dizer da história do cinema americano, mesmo que alguns dos seus filmes sejam produzidos pelo chamado circuito mais comercial, ou que recebam dinheiro para a sua feitura proveniente de outros países.
Haverá poucos cineastas autores na América que tenham tido nas ultimas décadas este nível, digamos, de fidelidade, de se manterem fieis aos seus universos, de manterem o filme sob o seu total controlo e de criarem um fervoroso culto que faz com que os seu filmes sejam imediatamente reconhecíveis á primeira vista, assim de repente vem-me á cabeça, Jim Jarmusch, Abel Ferrara ou um Quentin Tarantino.
E a prova mais cabal desta lealdade tanto ao seu próprio universo como aos espectadores que esperam impacientemente por cada seu novo filme, na certeza que não irão ser enganados, é precisamente o facto de o nome do próprio realizador acompanhar sempre o titulo do filme, o realizador, na sua habitual rectidão e sem meias mediadas justifica-se assim: “Ás vezes as pessoas dizem-me: Não acha que é muita presunção colocar o seu nome antes dos títulos dos filmes? A única resposta que posso dar-lhes é: Sabem, levei uma eternidade a ganhar esse estatuto, e não foi fácil. As pessoas que vêem o meu nome nos meus filmes sabem o que lhes ofereço, não vão enganadas, podem ir ao cinema e sabem exactamente o que vão ver. Depois de tantos anos e tantos filmes, continuo a ser o mesmo de sempre, a fazer o mesmo. Alguns gostam e outros não, mas eu não faço os filmes para divertir o publico, faço-os para me divertir, e sabem uma coisa? Divirto-me que nem um doido” – a frase é assaz sintomática da personalidade do realizador, que depois se reflecte nos seus filmes, o que faz que qualquer que seja a experiência, o filme que dele vejamos, estaremos sempre defronte de um universo, de um estilo e de temas sempre reconhecíveis, e o facto de Carpenter dizer que não faz os filmes para o publico, isso não é contradição ao que atrás disse, mais, é constatação, ou seja, o gesto de ele fazer os filmes para si próprio, de criar e de manter sempre um clima perfeitamente coerente de filme para filme faz com que muitos espectadores mergulhando e sendo absorvido por um universo e por temáticas absolutamente singulares se tenham mantido ao longo dos tempos absolutamente fiéis aos seus filmes, de querem sempre mais e mais.
Daqui nasce outra constatação evidente e que se tem de fazer: o cinema de Carpenter racha a meio, divide facções, espectadores, caso para se dizer que ou se gosta ou não se gosta…caso não se goste dificilmente se gostará de um filme em particular, caso se goste é motivo para mergulhar de cabeça na obra, deixar-se banhar pelo universo único e intransmissível, e esperar então por cada nova obra.
E ao decidir-me analisar este e não outro, primeiro prende-se com o facto de ser o ultimo, e num cineasta como carpenter, como com todos os grandes cineastas (salvo raríssimas excepções), em minha opinião, o ultimo filme será onde tematicamente e esteticamente a depuração surgirá num grau mais elevado, num zénite absoluto…e mesmo que isto seja polémico, e é-o com certeza, é uma ideia que eu tenho para mim como útil, é a ideia de Truffaut de que não existem propriamente filmes isolados em carreiras de grandes autores, o que existe é uma obra em que o seu todo forma um corpo uno e absoluto – esta é também a minha visão eminentemente pessoal, e por isso mesmo discutível e susceptível de ser posta em causa, mas é a minha.

A outra razão tem a ver com o factor que eu mais quero, tanto relacionar com o universo, a obra de carpenter, como especialmente em “Fantasmas de Marte”, que é o onirismo, esse estado ambíguo, perturbador e fascinante ao mesmo tempo.
O maravilhosamente do estranho, algo que sempre nos foge e que nos faz a nós espectadores estar nos filmes de carpenter entre os estado de sonho e de vigília, boquiabertos face a um universo que desconhecíamos.
E neste estado de letargia derivada do fantástico, face a estas peças atmosféricas, somos puxados para um lugar que não suspeitávamos, a não ser, possivelmente nos sonhos ou pesadelos do nosso espírito, o que faz com que os seu filmes habitem um tempo/espaço paralelo e por isso puramente cinematográfico, é o poder do cinema.
E numa carreira tão rica e tão longa, cheia de objectos que mesmo assentes em princípios autorais únicos, é tão variada e tão fascinante – e leia-se fascínio no sentido de puro encantamento que os filmes provocam – é de facto também possível encontrar vários céus, vários tectos em que o grau de onirismo – ou outros estados, tão denso é este universo: a pura fantasia trash, o gore estilizado, sensual, o enclausuramento e a claustrofobia dos espaços, do espaço, e mesmo sentimentos de melancolia profunda e de exclusão, bem como metáforas politicas subliminares, como em “Fantasmas de Marte”precisamente” – aparece em estado de graça, elevado a uma dimensão que nos deixa, aos que conseguem entrar, puramente encantados, perdidos no tempo e nos meios, metidos “á força” num lugar que é então o cinema como arte de nos propor lugares e sítios inimagináveis, de nos transportar para além dos limites da nossa própria imaginação
Por isto mesmo o cinema de carpenter animado por esta terrível força das formas e dos ambientes provoca em nós o mais desejado e revelador dos sentimentos, a catarse, que será um dos pontos mais altos a que qualquer arte desejará chegar.
E é fundamental dizer que os sentimentos e estados múltiplos e novos em que o espectador se encontra quando consegue aceder de corpo e alma ao universo de carpenter, pode nascer de factores vários e extremos, ou seja, quando se fala em fantasia ela pode não ser necessariamente edílica ou reconfortante, a luz que anima as formas e constrói as tais peças atmosféricas podem ser dirigidas ou erguidas sobre estados apocalípticos, sobre o caos do fim e da destruição, ou como já se disse sobre o gore, ou outros sub produtos em que carpenter frequentemente se move para insuflar temáticas próprias recorrentes.
E por falar em sub produtos há dois factores que quero introduzir para melhor me poder mover na análise posterior, o primeiro têm a ver precisamente com os sub produtos, com a série b, em que depois dos grandes autores que neste campo trabalharam, sobretudo nos anos 50 por diante como Sam Fuller, Don Siegel, Joseph H. Lewis, Allan Dwan, Budd Boetticher entre muitos, muitos outros, e claro um dos mitos maiores desta designação, desta maneira de fazer cinema, que começou também pelos anos 50 e que nos anos 70 acabaria por formar alguns dos mais famosos movie brates:, Roger Corman, para muitos o Papa do género.
A série b, é então uma maneira, guerrilheira e comovedora, de fazer cinema, de se movimentar nos géneros com muito pouco dinheiro, mas com grande imaginação e muita exigência técnica e estética, para encontrarmos uma definição poderei dar a palavra a Bogdanovich: “A razão pela qual o «cinema de segunda» foi tantas vezes capaz de atingir um tal vigor e interesse é que era feito, por assim dizer, quando ninguém estava a ver. Nunca tendo sido muito tomado pelos estúdios (desde que fossem rigorosamente observados os custos e os prazos), o realizador de filmes da série b conseguia muitas vezes trabalhar numa atmosfera mais livre que alguns dos seus contemporâneos com orçamentos mais elevados…isso é uma das razões principais porque se lhes exigia serem muito mais expeditos e imaginativos na execução dos seus resultados que os tipos dos orçamentos A.”
E se aqui tento demonstrar o que é isso de filmes de série b, é porque os filmes de Carpenter, mais vincadamente os inícios, mas assumirei, todo o seu cinema – porque os seus filmes sempre tiveram baixos orçamentos, curtos prazos de rodagem, são vendidos antes de estarem feitos, para evitar catástrofes – daí o cineasta sempre ter feito apelo ás características acima citadas, sempre revestiu o seu cinema de uma urgência, de uma consisão tal, e da fidelidade aos temas pessoais que enformaram os seus filmes, que é então forçoso ter em conta estes elementos quando se parte para a analise de qualquer obra de Carpenter.

O segundo factor diz respeito a um fetichismo, a uma sensualidade nas formas, meio lúgubre, meio luxuriante, que o cineasta cultivou, diria maniacamente, desde os primeiros filmes, a saber: o uso exacerbado do formato Scope, e isto não pode ser um pormenor insignificante, porque é em primeiro de tudo uma forma de adquirir, de fazer reviver a tal sensualidade que se perdeu com o fim do cinema clássico, aquela elegância e froça/fragilidade extrema que só o glorioso Scope poderia oferecer, e é tanto uma maneira de revivalismo do melhor do cinema americano, do mais excitante, revertido a seu favor, aplicado ao seu universo como forma de potenciar as atmosferas e os ambientes das suas histórias, como também, e isto é muito importante, realçar o terreno do Western como género escondido de todo o seu cinema
E se facilmente se contesta que todo o seu cinema, todos os seus filmes são moldados e trabalhados sob o modelo do género americano por excelência, mesmo subliminarmente como se disse, demos então a palavra ao próprio Carpenter: “Toda a gente sabe que tenho passado a vida inteira a fazer Westerns. Adoro Westerns, Dizem que homenageio sempre Howard Hawks, e sabem que mais? É absolutamente verdade…E continuarei a fazer Westerns, simplesmente porque acho que é o que faço melhor. Terror? Sim, mas Westerns de terror, como “Fantasmas de Marte”. Que ninguém vá ver o filme a pensar que é um filme de acção, ou de terror…não façam confusão…é um western, só que é passado em Marte”.
Faz sentido então realçar o uso do Scope, como veiculador de um imaginário perdido, como potenciador da referência ao western, e de outra fixação que surgiu nestas palavras, Howard Hawks, como Hawks os filmes de Carpenter passam-se no próprio cinema, tanto em termos de espaço como de tempo, e como Hawks se mexia nos mais variadíssimos géneros, do western á comédia, do policial ao filme de aviões, mas sempre com uma temática absolutamente constante de filme para filme, sempre mantendo um tom que depois originou e epíteto «Hawksiano», que ia desde a relação de companheirismos entre os seres masculinos, ou cinematograficamente a simplicidade e primitivismo das formas, Carpenter mexendo-se nos terrenos da série b, mais descomprometido e livre, é um herdeiro directo dessa maneira de revestimento de toda uma obra segundo princípios fortes, e como ele também procura um simplicidade e uma secura, dispensando veemente por exemplo o novo riquismo dos efeitos especiais e os artifícios contemporâneos, investindo antes numa veia artesanal, que lhe permita ir ao fundo das suas obsessões.

Se “Fantasmas de Marte” pode ser visto como um cumulo do onirismo estarrecedor de carpenter, um western passado em Marte, mas também das suas visões apocalípticas, do caos e do fim, metáfora eminentemente politica ao estado das coisas, haverá diversos filmes ao longo da sua filmografia que podem ser considerados o topo da sua arte.
Por exemplo, logo nos primórdios da sua carreira, em Assalto á 13º Esquadra”, 1976, western urbano, crepuscular, violento, portador de um onirismo quase insuportável, muitas vezes a fazer raccord, com “Fantasmas de Marte”, que nascia da sensação terminal, constatação de proximidade de um fim, o sistema policial, a autoridade entre a espada e a parede, cercados por bandidos, num jogo funesto em que policias e bandidos se confundem na tentativa de restabelecer a normalidade…e nunca o scope foi usado tão apuradamente, justamente e elegantemente como aqui, em que a câmara de carpenter desliza a seu belo prazer pelas zonas escorregadias e escuras de uma selva urbana e eminentemente apocalíptica.
“O Nevoeiro”de 1980, em que uma pequena vila de pescadores é invadida por uma misteriosa raça de zombies sedenta de vingança, aqui como o título indica, o nevoeiro funciona como elemento propulsionador do desconhecido, do mal, do obscuro, elemento sempre presente em carpenter que aqui é sublimada tragicamente pelo facto de as criaturas virem literalmente do nevoeiro.
Em “Nova York, 1997”, que teve posteriormente a sua sequela, “Fuga de Los Angeles” de 1996, somos introduzidos a uma das mais representativas personagens do seu cinema, Kurt Russel, quase alter-ego do próprio carpenter, figura dura e tradicionalista, obscura e ambígua
Neste filme somos confrontados com um futuro próximo, terrível e pavoroso, em que a um antigo herói de guerra, que caiu em desgraça e se encontra preso, é oferecida possibilidade de libertação se ele se aventurar a ir a uma Nova York transformada em prisão de máxima segurança, recheada dos mais terrivéis criminosos e bandidos, e neste universo de absoluto caos, visão literalmente apocalíptica, o fantástico e o onirico nasce então da visão assustadora, negra e caustica de um futuro proposto pelo cineasta, e as metáforas politicas e económicas nunca foram tão duras e vertiginosas.
O final, aquela destruição da cassete e o acender do cigarro são a justificação para a palavra: POLITICAMENTE INCORRECTO.
Se nos quisermos deter em mais um momento poderá ser “A Coisa”, 1982, e nunca como neste filme a sensação de claustrofobia de um espaço, no caso a base de cientistas americanos na Antártida, foi tão avassaladora e irrespirável, ponto limite do cinema também físico e ofegante de Carpenter.
Nestes filmes, como em muitos outros, existe então ambientes e atmosferas vibrantes de onirismo, de fantasia, surrealistas mesmo.

Mas o que resgata então o cinema de carpenter a simples formalismo ou criação de ambientes? É uma visão eminentemente pessimista e negra sobre a raça humana, sobre os seus actos e sobre as sua consequências, visões futuristas, alarmantes, que mais não fazem que criticar e alertar os tempos…mas que são criadas com tal arte e com tal paixão pela historia e pelos recursos do cinema, que como por magia – a magia do cinema – nos acordam para o que pode estar a acontecer, e para o que pode vir a acontecer, como também nos divertem, nos espantam, nos põe constantemente boquiabertos pelas proezas cinematográficas e pela tal beleza que nasce do desconhecido e que vêm carregadinha de gravidade e de fantasia inidentificável, daí a evocação do estado sonho/vigília a propósito do cinema de Carpenter.
Dito isto fixemo-nos então no ponto de chegada da obra de Carpenter, “Fantasmas de Marte”, onde tentarei descortinar e desmontar os factores que fazem brotar o incomensurável onirismo desta obra, bem como metáforas causticas e uma espécie de baile de máscaras, de reversão das convenções e das ordens que juntamente com o tratamento sobre as matérias tornam o filme numa experiência sempre nova, sempre incaracterizável, mesmo que Carpenter diga que faz sempre o mesmo filme, é a auto-ironia dos autores.
O filme, como se sabe baratíssimo, se comparado com a média que os filmes de Hollywood gastam é todo passado no Planeta Marte, num futuro mais ao menos próximo, e logo no inicio, com as indicações da temperatura e da atmosfera, somos logo de rajada introduzidos ao universo mais estranho e onírico do cinema contemporâneo. Estamos então na primeira cidade alguma vez habitada em Marte, somos inseridos numa panorama de escuridão, de negrume, todo revestido a vermelho, e depois é o pó, é o fumo, no meio disso tudo, de um aparente cãos nada agradável, vemos a cortar, e trespassar tudo isso um comboio, de aspecto fantástico – fantástico, no sentido de inocência, cândido e infantil – dentro dele apenas uma pessoa, que perceberemos logo que é a heroína da história, de nome Melanie Ballard, a única sobrevivente de algo que nos irá ser apresentado.
Temos também a sala de interrogatório, uma autoridade que questiona Melanie, a responsável por uma missão, uma espécie de diligência (sim é mesmo ao western que me refiro), que tinha por missão ir a outra cidade, Shininh Canyon, que mais á frente um dos membros da diligência chamará de “grande espelunca” – reforçando o universo trash de todo o filme – e trazer um perigoso criminoso, de seu nome James “Desolation” Williams.
Como vemos, mais uma vez o mesmo motivo na obra de Carpenter, tantas vezes um prisioneiro, tantas vezes uma missão.
E aqui somos logo atirados para o principal flashback do filme, principal porque vão haver muitos mais ao longo dele, flashbacks dentro de flashbacks, reforçando a obliquidade e a anarquia a que o filme de Carpenter apesar de todo o seu classicismo também ambiciona.
Acompanhamos então a missão desta tripulação, e verificamos a tempestade desoladora e aterradora que está a decorrer lá fora, que faz com que nós espectadores, estranhemos, mas logo mergulhemos dentro deste caos e fiquemos junto deles até ao fim da missão, num dos universos mais oníricos, viscerais e fantasiosos desde “After Hours” de Scorsese.
Os tripulantes na ambição de sobreviverem e de aguentarem no meio deste ambiente que os reprime vão entregando-se a tripes, começando aqui os paralelismos corrosivos de Carpenter, neste caso ás drogas.
Chegado o comboio á tal cidade é-nos apresentada um ambiente árido, terra de ninguém, os tripulantes usam as suas mascaras, o ar ali ainda não é respirável – no entanto os humanos foram para lá – entram na prisão onde supostamente estará o prisioneiro, e ai deparamo-nos imediatamente com sinais que os humanos tentaram exportar directamente da vida da terra, são os sistemas de vigilância, a maquinaria, etc.

E logo se ouve uma frase sintomática para tudo o que a seguir vai decorrer e que faz raccord com muitos dos outros filmes de Carpenter, “Onde está toda a gente? Pergunta um dos polícias, e aí nesse espaço vigiado, claustrofóbico, enclausurado, vermelho e sujo, funciona como espaço concentrionário dos medos e descobertas que irão sendo reveladas no decorrer do conto.
E a tripulação, junta, desconfiada e com medo, temendo esse espaço, sai para a aridez do deserto vermelho, continuando a não vislumbrar ninguém, segurando as armas como faziam os velhos cowboys nos westerns, os ângulos de câmara ajudam nessa estranha construção, lembramo-nos das palavras de Carpenter acerca da sua arte.
Uma cientista é encontrada, desconfia-se logo que será preponderante, têm no rosto algo insondável mas também de culpa, conta como chegou ali, e neste flashback inserido num flashback, Carpenter parece mais uma vez querer introduzir um lado lúdico e infantil no meio do restante negrume, na história do balão que seguiu o trilho do comboio e que assentou naquele local.
Outro dos aspectos que começamos a reter é o da supremacia da mulher, elas estão em maior numero, parecem ser sempre mais fortes e decididas, espécie de reversão do convencionado também pelo cinema.
Basta ver-mos a maneira como Melanie se dirige ao perigoso bandido, chamando-lhe para espanto dos restantes de: palhaço.
Nos filmes de Carpenter existem sempre personagens que anunciam o perigo, aqui aparece por exemplo num tipo que Melanie e Jericho encontram fechado numa estrutura, abandonado no meio do deserto e que lhes diz em tom premonitório: “Afastem-se, não abram essa porta”.
Quando Melanie regressa á prisão iniciam os primeiros “bailes de mascaras” e inversão de identidades, como forma de questionamento, em que o cinema de Carpenter é tão pródigo.
Williams está solto e com uma arma apontada a Helena Braddock – interpretada por Pam Grier, símbolo do baxploition cinema dos anos setenta, recuperada por Tarantino em “Jackie Brown”, e que continua aqui e com grande significado os seus papéis de mulher de armas, de corpo inteiro – Melanie cheia de coragem oferece-se em troca de Helena, Williams vacila, como que surpreendido pelo gesto e foge.
Melanie indo ao encontro de Williams, numa clínica degradada e repelente, é atacada por uns estranhos seres – primeira manifestação dos fantasmas que dão titulo ao filme e que tomaram conta do sitio – e aqui começa a entreajuda entre autoridade e criminosos, entre a policias e fora da lei – como em “Assalto á 13º esquadra, por exemplo – num jogo onde o que importa em primeiro de tudo é a sobrevivência.
Pouco depois mais um flashback em cima de outro flashback, mas aqui com uma importância simbólica, que é o momento em que Williams conta o que de facto aconteceu no local onde o acusam de ter infringido a lei, acabando este por dizer que não é inocente mas que não matou ninguém, e que eles, os policias, não poderão garantir grande coisa porque “hoje em dia é ténue a divisão entre o policia e o patife”, acabando por confessar que o que realmente o interessou foi o dinheiro…o dinheiro, o ouro, sempre o ouro como nos westerns, chega a ser desopilante a moral árida, caustica e literal que Carpenter aplica aqui, como que rimando por exemplo com o opus de Peckimpah, “The Wild Bunch”.
“Está-se a escudar por ser mulher, salvei-lhe a vida, parece estar a tripar neste momento”, é com este comentário meio irónico, meio corrosivo com que Williams, neste jogo de aparências, que acabará, volta para a prisão.
E a tensão do filme vai crescendo, a atmosfera vai-se adensando, a personagem de Jericho descobre a cabeça de Helena espetada numa lança, e descobre também os fantasmas que querem dominar Marte e que não se deixam invadir, descobre também os seus rituais, a sua loucura, etc., “Estão todos loucos” grita Jericho em tom de constatação.
Até que há uma revelação na personagem dúbia da cientista, “Fosse o que fosse que vivesse aqui, nós despertamo-los”, pode ser vista como metáfora politica, o outro dos lados provocadores de Carpenter, como se questionasse o direito de aqueles humanos estarem lá.
Jericho encontra três pessoas aparentemente normais, descobriremos a seguir que pertencem ao bando de Williams, e que têm o condão de aclarar, ou escurecer, como quisermos a situação, “eram mineiros, mas acabaram por enlouquecer, andam aí a cortar cabeças” e em mais um flashback somos atirados para o momento em que uma tempestade vermelha começou a invadir os mineiros no final de mais um dia de trabalho.
E as imagens que Carpenter nos oferece são a um tempo simbólicas e delirantes, “depois da tempestade levantara-se e ficaram assim…confusos, perdidos…arrancaram os dentes, auto mutilaram-se, arranjaram armas”, e é velo-os a levantarem-se do meio do caos e da poeira, transformados depois da catástrofe…
E na prisão é constatar autoridade e bandidos em quezílias, a quererem uniformizarem-se, mesmo no meio da calamidade, no vislumbre do cataclismo…tão típico dos humanos
É como se Carpenter se risse da situação, até que alguém iluminado diz: “ O que importa é que nos mantenhamos unidos para sair-mos daqui, todos nós”, “Vocês precisam de nós, e nós precisamos de vocês”, e finalmente juntos partem para a luta, e se tivemos até aqui um universo de um onírismo sufocante, sempre adensado pelos vermelhos e pela poeira, a partir daqui esse universo vai ser entrecortado pelos rides de pura acção e aventura, o lado lúdico e até festivo que o cinema de Carpenter sempre conteve.

E no meio dos estilhaços do confronto, a maneira como os fantasmas de Marte são representados é sintomática, as lanças, as vestes índias, a linguagem primitiva e animalesca, e se é tudo isto e mais alguma coisa, as conecções destes seres com Marilin Mason também já se tornou famosa – é mais uma vez o lado parodiante e negro do cineasta…e é mais uma vez como se estivéssemos em pleno oeste, mas vermelho, em Marte…”vingam-se em todos os que tem pretensões ao planeta deles” constata mais uma vez um das personagens.
A cientista volta a ser importante, reveladora, quando conta que foi ela que em mais uma suposta operação 740 veio a descobrir uma passagem que existiria há muito, “Fui eu, abri a boceta de Pandora”diz ela, “tinha-os deixado fugir”, ressonâncias bíblicas? Talvez, mas se daqui quisermos fugir poderemos referir o tom negro com que a série b e Carpenter sempre usufruíram.
Pouco depois há um momento único, espécie de experiência última, quando acompanhamos uma viagem á mente de Melanie, que está sobre o efeito de uma tripe, é um momento vibrante e catartico, como se fosse o 2001 de John Carpenter
E depois desta viagem em que Melanie regressa literalmente para o mundo dos vivos, faz-se luz na sua cabeça e ela diz: “Querem a destruição de qualquer espécie invasora…para eles somos nós os invasores”…estaria o cineasta a querer dizer alguma coisa ao seu país e aos seus líderes?
Depois de se terem unido, de terem ido á luta e de terem agarrado e fugido no comboio mágico acabam por fazer uma consciencialização e decidem voltar para trás, para salvar o planeta dos fantasmas…mas o que acontece é que traçam um plano desastroso, como tantas vezes acontece nas tantas guerras do planeta terra, e acabam por sobreviver apenas dois para contar a história: Melanie e o terrível criminoso Williams.
Fica então o final em que Melanie deixa Williams ir-se embora, e as palavras de este no plano final “é altura de nos mantermos vivos” numa espécie de troca de posições como possível moral deste conto.

Para finalizar gostaria apenas de deixar uma reflexão que a mim me parece particularmente importante fazer, nos dias que correm, ou seja: nestes tempo em que o cinema e os jogos de computador parecem ter como objectivo uma metamorfose, querendo atingir qualquer coisa em que o próprio espectador seja já elemento participativo no decurso do filme, podendo escolher o seu desenrolar, ou seja, um work in progress em que a palavra REALIZADOR já não faz mais sentido, tal o nível de virtualização a que o cinema pretende atingir com os “Dooms” e “ Final Fantasy´s” destes nossos tempos, recheados de efeitos especiais demonstrativos, como se bastasse bater recordes olímpicos de barulhos e de explosões para o espectador se satisfazer (olá R. Scott) …o que pensará por exemplo John Carpenter a propósito disto? Os seus filmes parecem-me ser a melhor resposta, e não é preciso evocar novamente as suas homenagens e inspirações eminentemente clássicas.
É claríssimo que “Fantasmas de Marte” é uma peça de cinema artesanal, mesmo com a sua dose de efeitos especiais, isto pois são usados com um propósito e com uma leveza tal, sempre ao serviço da história, como os velhos contadores, que quase não damos por eles.
E se parece existir, na maneira como eles são utilizados, uma critica, uma resposta, ao modo como estes são produzidos hoje em dia – por exemplo nas visões subjectivas, em que parece existir uma negação destes apesar deles, ou o comboio que dispensa qualquer pomposidade, saído de um conto infantil, ou exportado dos primórdios para o século XXI.
E pronto, para mim John carpenter é um grande autor, nunca menor, como as mentes bem pensantes querem fazer querer.
E Godardianamente digo: realizou alguns dos mais imaginativos, originais e fabulosos filmes das ultimas décadas, e o que virá ainda deixa-me com elevadíssima ansiedade.
Carpenter Rules!!!

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