terça-feira, 1 de abril de 2008

CONVERSA SOBRE
HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN
(EXCERTOS – CAHIERS DU CINÉMA, NOVEMBRO DE 2003)


Emmanuelle, você recebeu um projecto de filme assinado por jacques rivette. isso é suficiente para si?
EMMANUELLE BÉART » Pode ser...
JACQUES RIVETTE » Não necessariamente. A última vez recusaste. E tinhas razão!
EMMANUELLE BÉART » Sabia que nos voltaríamos a encontrar depois de “A Bela Impertinente”, só não sabia quando. Senti que o momento ainda não tinha chegado com “Sabe-se lá!”. Mas tive a certeza que HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN era para mim.
JACQUES RIVETTE » Aliás não teria feito este filme com outra actriz. Só depois de a Emmanuelle ter concordado é que mandei as famosas páginas à Christine e ao Pascal. E quis também logo dar o papel de Julien a Jerzy.
PASCAL BONITZER » Em cada filme do Jacques há um desafio especial. Desta vez, precisávamos de voltar a pegar no antigo projecto, tentando guardar algo do documento de origem.
JACQUES RIVETTE » Ou seja, manter também as passagens misteriosas, ou incompreensíveis. O início da sinopse de 1975 é claro, e foi seguido fielmente, mas depois começa a tornar-se enigmático. Como por exemplo esta frase entre parênteses: “Não esquecer o gesto proibido”. O que será que isto queria dizer? Nem eu nem Claire nos conseguimos lembrar. E com Pascal e Christine inventámos outra coisa. Só não seguimos as indicações que já não faziam sentido, como a hipótese de Marie ser cega.

Nessa altura o gato falava...
JACQUES RIVETTE » Sim, mas 30 anos depois seria arriscar tornar-se Disney. Mesmo assim, Pascal escreveu páginas e páginas de diálogos do gato. Um dia, passaremos isso para os arquivos da Cinemateca.

A referência mais explícita remete-nos para Edgar Poe.
JACQUES RIVETTE »
Sim, apesar de nos ter ocorrido mais tarde, tal como as comparações eventuais com “Vertigo”. Mas é claro que pensámos nisso, em Morella e Ligeia sobretudo. O gato ficou com o papel do corvo.

Jacques, quis que o filme se chamasse HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN? A palavra História conta?
JACQUES RIVETTE » Tive o mesmo problema com “Céline et Julie” (há tantos filmes cujos títulos são dois nomes). Na altura prolonguei o título, desta vez coloquei algo antes. HISTÓRIA DE para transmitir a ideia que não se trata da vida quotidiana, que é um conto. Se não tivesse medo de soar demasiado pretensioso teria intitulado o filme de “Lenda de Marie e Julien” – como “Lenda de Tristão e Isolda”.
PASCAL BONITZER » História remete para um mistério. E há um mistério.
JACQUES RIVETTE » Há até vários mistérios!.
EMMANUELLE BÉART » É esse o trabalho do filme. No momento em que eu chego não há “história” nem “lenda”. É preciso dar vida a alguém. Para interpretar Marie tenho em conta os desequilíbrios, as dissonâncias, as mudanças de temperatura da personagem tal como o Jacques, a Christine e o Pascal a escreveram. Mas com o único objectivo de estar lá, viva.
PASCAL BONITZER » O que é especialmente paradoxal neste caso particular...
EMMANUELLE BÉART » Sem dúvida, mas eu estou ao lado de Marie e não do vosso, dos argumentistas. Sabendo o que sei, ou sabendo aquilo que quero ignorar.
JACQUES RIVETTE » Marie não tem as soluções da sua personagem. Vamos descobrindo Marie através dos olhos de Julien, mas apercebemo-nos que nem ele sabe nada sobre ela própria. O espectador começa por acreditar que ela é intrigante, e quando tem a certeza que o é, nunca percebe bem de que intriga se trata.
EMMANUELLE BÉART » E por isso me deixei cair num estado de instabilidade e até mesmo de incompreensão que se tornaram indispensáveis para interpretar esta personagem. Não quero entrar na lógica dos que escreveram e sabem. Por exemplo, eu não conhecia as cenas entre Julien e Madame X...
JACQUES RIVETTE » Tu tinhas essas cenas, mas não as leste. E tiveste razão em fazê-lo.
PASCAL BONITZER » Como é normal com o Jacques, escrevemos as cenas e os actores só as recebem uns dias antes da rodagem.
EMMANUELLE BÉART » Não tinha necessidade de saber nada antes. Pelo contrário, essa ideia de desequilíbrio era importante...
JACQUES RIVETTE » Eu diria mesmo fundamental! Mas há muito tempo que aprendi que não é útil dar muita informação aos actores. Desde “A Religiosa”.
Na altura, achava que era bom dar à Anna Karina o máximo de elementos possíveis sobre a personagem, a situação, os planos. E ela já tinha o argumento há cinco anos, já tinha interpretado Suzanne Simonin trinta vezes no teatro... Um dia, Anna encheu-se de coragem e disse-me: “Jacques, peço-te por favor não me digas mais nada! Diz-me só se devo chegar pela direita ou pela esquerda, se me sento ou fico de pé. Mas tem piedade de mim, não me digas mais nada”. Fiquei surpreendido, levei aquilo à letra. E depois a rodagem começou a correr melhor, não só com Anna, mas também com as outras actrizes. Foi aí que tive vontade de trabalhar a improvisação, ter uma relação mais aberta com os actores.
PASCAL BONITZER » É o contrário daquela anedota famosa, em que se conta que John Wayne pergunta a John Ford o que é que ele deveria pensar durante uma certa cena. E Ford respondeu-lhe: “Por favor, não penses”
EMMANUELLE BÉART » Não, é a mesma coisa. Não é preciso explicar tudo, nem mesmo o realizador. É preciso conservar o mistério. Uma grande parte do trabalho passa pela “infra-comunicação”, são signos que partilhamos. Pode ser um sorriso, uma forma de nos aproximarmos de alguém. Preciso cada vez menos de palavras.
JACQUES RIVETTE » O importante é o que eu vejo a partir do que ele dá, através de um processo para lá chegar que não me diz respeito. Quando a Emmanuelle me quer propor qualquer coisa não vem ter comigo, dizendo “e se eu fizesse assim...”. Ela faz. Depois eu vejo-a interpretar e posso reagir em relação ao real, a uma matéria que existe. Esse real, essa “matéria” é a Emmanuelle a interpretar. Jerzy às vezes precisa de mais indicações, porque é sobretudo um actor de teatro.
EMMANUELLE BÉART » Ele, ao contrário de mim, tentava compreender tudo.
JACQUES RIVETTE » Senti que essa diferença entre vocês os dois seria fecunda. Os casais interessantes são os que têm muitos contrastes. Não só os actores são diferentes entre si, como cada actor é diferente de um filme para o seguinte. James Steward é diferente em todos os westerns que fez com Anthony Mann, não só porque envelheceu, mas porque a situação e a personagem são diferentes.
PASCAL BONITZER » Em cada filme do Jacques há sempre um problema, ou um conjunto de problemas novos.
JACQUES RIVETTE » Ao trabalhar com a Christine e o Pascal descobri que o importante não é solucionar os problemas, mas colocar bem as questões. E depois, ir dormir. A solução aparece mais tarde, quase sozinha, por ela própria, por termos colocado bem a equação.
Houve uma continuidade entre o filme que queria fazer em 1975 e este filme?
JACQUES RIVETTE » Se tivesse feito o filme na altura teria sido diferente, mais abstracto, mas “desenhado”, mas estilizado. E Leslie Caron não se mexe da mesma forma como Emmanuelle Béart, ela guardou os seus movimentos de bailarina. Teria sido mais próximo de Cocteau.

O filme tem algumas das mais belas e perturbadoras cenas de amor físico vistas até hoje no cinema.
PASCAL BONITZER » Quando escrevemos o argumento, tínhamos a certeza que seria necessário mostrar a relação sexual entre os dois, mostrar que nesse plano tudo estava bem. Mas não imaginava como é que o poderíamos fazer.
CHRISTINE LAURENT » Para nós, era quase uma transgressão. Nunca tínhamos escrito cenas destas para o Jacques, que nunca filmou estas situações.
PASCAL BONITZER » São cenas muito difíceis de escrever. Pode cair-se facilmente no ridículo.
JACQUES RIVETTE » Cada uma das cenas de amor foi concebida segundo um princípio diferente. E cada um foi filmada de forma diferente. Mas nem tudo é controlado. A primeira vez que Marie e Julien fazem amor na casa de Julien foi encenado pela Emmanuelle.
EMMANUELLE BÉART » O ponto comum entre estas cenas é a voz e as palavras, que dão o movimento aos corpos. A sexualidade, a excitação vêm da história. É isso que leva os corpos a mexerem-se e a encontrarem-se. Era muito difícil de interpretar, mas é uma das mais belas lembranças. Jacques é muito pudico. Quando todos tivemos de nos despir para estas cenas, que eram indispensáveis, houve uma distensão entre nós que me deu essa possibilidade.
JACQUES RIVETTE » Sabia que não podia esquivar-me aos problemas de mise en scène que essas cenas colocavam, sabia que teria de os enfrentar. E foi pensando nisso que sugeri a ideia de história, que existisse uma narração. Com Pascal e Christine pensei em alguns fios narrativos, sobretudo a partir do tema de “a cativa”. Acabámos por escolher a história da floresta e do combate e queria muito que Pascal escrevesse uma e Christine a outra. São as únicas cenas em que houve várias conversas com os actores. E as únicas em que era quase imperativo que as falas fossem ditas exactamente como estava escrito. Rodámos estas cenas mais tarde, era necessária alguma preparação. A fadiga da rodagem também nos ajudou...

Na rodagem da terceira cena de amor, a do “combate”, chegámos a algo de extremo, no que diz respeito aos corpos. Porque são sobretudo grandes planos e a nudez só é entrevista.
EMMANUELLE BÉART »
Numa altura assim as palavras assumem uma tal importância. É importante que elas saiam de nós, do nosso ventre, do nosso sexo, que a nudez já não seja uma preocupação. Nesse ponto, o pudor sobre a aparência dos corpos fora totalmente ultrapassado.
JACQUES RIVETTE » Não se trata apenas da nudez. Vocês mexiam-se de uma forma muito forte, muito física, apesar de eu ter dito que filmaria sobretudo os rostos. E são esses rostos que “atiram” o texto, que o projectam.
EMMANUELLE BÉART » São também os corpos!
JACQUES RIVETTE » Sim, mas a sequência seria muito diferente se fosse filmada em planos gerais. Esse é um dos raros momentos do filme em que estamos muito perto de vocês. Na câmara, Willy Lubtchansky não podia antecipar os vossos movimentos, era obrigado a seguir-vos.
EMMANUELLE BÉART » Estávamos muito próximos nessa cama, para mim Jacques também estava lá dentro... (risos). E rimos muito também!

Há alguma coisa de que se arrependa no filme, algum desgosto?
JACQUES RIVETTE » Há uma coisa que me esqueci de dizer ao Jerzy, que teria modificado um pouco uma etapa da sua personagem: um pequeno detalhe, que estava mencionado no texto de 1975 e de que eu me esqueci durante a rodagem. Mas não direi o quê, talvez esteja também bem assim...
PASCAL BONITZER » Procurem o erro!
CHRISTINE LAURENT » O erro não, o esquecimento!
JACQUES RIVETTE » Uma coisa de que nunca me arrependo mesmo é das minhas escolhas na montagem. Um filme nasce dessas escolhas e das formas de as organizar, sem volta atrás.

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