sexta-feira, 13 de junho de 2008

No corpo da imagem

Enigma do Poder, de Abel Ferrara

O número reduzido de atores, a quantidade restrita de cenários, pouco mais que três quartos de hotel e dois restaurantes japoneses, o ambiente de mistério e complô, e uma maneira de evacuar para fora de campo o essencial do espetáculo descontado (a intriga), parecendo primeiramente autorizar, tratando-se de Enigma do Poder, uma interpretação do tipo filme-B, ou até Z. Em que se explicaria como um filme frágil, transformando a pobreza ou a economia de meios (dinheiro e representação) em virtude, afronta-se com algo mais forte que ele, a globalização, o reino invisível das multinacionais, os vírus de todas as espécies, "as potências diabólicas que batem na porta". Esse velho reflexo seria um impasse: nenhum contraste em Enigma do Poder, mesmo estupefaciente, do continente e do conteúdo, nenhum milagre da bricolagem. Ao contrário, o tema e a maneira de abordá-lo, e, por conseguinte, tudo aquilo que é grande e tudo aquilo que é pequeno, ou suposto como tal, deixam aqui de se opor para deixar ver entre eles uma profunda intimidade. Compreendemos então como um filme pode ser mundial, se é verdade que mundial significa, não simplesmente o alargamento de perspectivas e a aceleração dos deslocamentos, mas, num estágio mais avançado, a liberação e o rompimento de toda perspectiva, o abandono de toda relação mensurável entre o espaço e o tempo – a deposição de toda noção de velocidade –, em proveito da constituição de uma zona de vizinhança ou de indiscernibilidade entre pequeno e grande, local e internacional, aqui e lá. Pelo cinema, Ferrara conquista essa zona de vizinhança ou de indiscernibilidade, e se aproxima assim de Welles, já que se Arkadin não se contentava em estar muito longe quando acreditavam que ele estava muito perto, ou atrás de você, quando se acreditava que ele estava longe. Como Welles, Ferrara sabe que não basta mostrar o mundo como uma aldeia, e que é preciso também, e que isso é sem dúvida o mais difícil, o mais importante, mostrar a aldeia como um mundo. Ele consegue fazê-lo, contando uma história cuja star não é o exuberante Fox (Christopher Walken), especialista em espionagem industrial, nem X (Willem Dafoe), seu sócio e amigo, nem Sandii (Asia Argento), a prostituta italiana por quem X está apaixonado, e com a ajuda de quem Fox e ele, em troca de uma bela comissão, vão vender a um novo empregador o célebre geneticista japonês Hiroshi – mas a imagem, nela mesma, por ela mesma, que em Enigma do Poder introduz à vertigem. Como é vertiginosa essa pequena bengala verde que aparece na tela miniatura de X quando ele recebe uma mensagem de Fox, e que condensa num motivo único a relativa imobilidade deste (que tem a coluna quebrada) e a louca mobilidade moderna. No começo é simples: à direita as armas clássicas do cinema (planos fixos e fusões essencialmente), à esquerda os rostos novos da imagem. O 35mm não está sozinho, ele deve compor de igual a igual com outras formas (o vídeo, clássico ou digital), que implicam também em outros empregos (uso privado, filme institucional, sistema de vigilância, espionagem). Diante das imagens, transformadas em sua preocupação primeira, o cinema contemporâneo nos habituou a sermos animados por uma tripla preocupação: de onde elas vêm (sua fonte), que fazem elas aqui (o que elas mostram), para onde elas se dirigem (seu destinatário)? Ele nos ensinou a sempre considerá-las relativamente a um lugar. Mesmo um cineasta tão esclarecido quanto Brian De Palma não concebe seus filmes sem uma remissão à origem, ao termo da qual é o lugar da imagem (mesmo se, em Olhos de Serpente, este lugar é definido como aquilo que se aproxima tanto quanto possível de um fora-de-lugar) que lhe fixa o valor. Do outro lado, alguém como Todd Haynes (mas não só ele) é apaixonado pela difusão e a propagação das imagens. Uma quarta dimensão falta muitas vezes, a mais sensual, e é ela que Ferrara retém: uma imagem, aqui, agora, que ar ela tem? Que corpo tem ela, como ela evolui? Qual é sua cor, seu grão, sua profundidade? É evidente que a propriedade e a boa saúde do 35mm se distinguem, no olho e no toque, da sujeira do vídeo, dos traços que ele deixa, da má qualidade de sua luz. Como diferem fisicamente uma imagem desfilando no ritmo normal de vinte e quatro por segundo, uma outra em câmera lenta e outra parada. Enigma do Poder não se interessa pelo trajeto mas pela presença das imagens entre nós, nos efeitos em nós desta presença. Ele convoca todos os tipos de imagens para culminar em sua aparência, seu invólucro, um trabalho que, no interior de um filme de ficção, seja alguma coisa além do trabalho do maneirismo, que supõe uma imagem de partida (o modelo) e uma outra de chegada (a cópia curiosa). Trata-se, nem mais nem menos, de saber o que significa ser contemporâneo de uma imagem (ou de várias). A esse respeito, é importante que Enigma do Poder se desenvolva em espaços intermediários, meio privados, meio públicos, quartos de hotel, bordéis, restaurantes, casas noturnas, absolutamente não-situadas umas em relação às outras e disponíveis a tudo e a qualquer coisa, discutir, comer, fazer negócios ou fazer amor.

Um mundo em que pululam as imagens não é obrigatoriamente um mundo em que superabundam as telas e as câmeras. Preparando o golpe, X e Fox vêem filmes amadores que lhes informam sobre a vida e os modos de Hiroshi, mas em nenhum momento Ferrara liga os dois homens ao que eles vêem, e de uma forma geral, a mise en scène é como que atingida por uma impossibilidade de bem encadear que faz com que não haja em todo o filme dos planos que se associem perfeitamente. Hiroshi permanecerá de cabo a rabo uma pura criatura de vídeo, com o rosto mastigado pelo preto e pelas manchas do vídeo, sem ser todavia o habitante de um universo paralelo, de um espaço-tempo ao qual não têm acesso X e Fox, e no qual finalmente Sandii entrará. O cientista faz corpo com o vídeo, o vídeo o define, porque o projeto de Ferrara, levada a sua última concretização, consistiria em realizar um filme em que as imagens seriam os únicos personagens. As articulações da mise en scène não se fariam mais por pedaços de tempo e de espaço, mas unicamente entre diferentes tipos de imagem, que cessariam de se referir a territórios, geográficos ou estéticos, distintos, para formar elementos de base de uma nova gramática.

Articulação, a palavra é talvez forte demais, se consideramos que a imagem, mais ainda que um personagem, é um todo. Cada plano é trabalhado por Ferrara de forma que possa independer de todo fora-de-campo do qual ele dependeria, de toda relação com um fora. Passar de um plano a outro, não é unicamente mudar de grão ou de pele, é principalmente mudar de corpo, de orientação, de escala, de volume. O quadro fixo permanece igual a si mesmo, mas uma fusão pode fazer sucederem-se dois tipos de percepção absolutamente opostos: um primeiro plano todo em superfície líquida, como aquele da piscina em que Sandii e X se banham e se beijam, e um segundo em profundidade escura, como o do corredor que os conduz ao quarto do hotel. Ou se organizar em torno da passagem de um formato a outro, de corpos filmados em cinema a dois outros pintados e filmados em vídeo, no caso da viagem da América à Europa. O plano torna-se por si mesmo sua própria medida, ele contém seu próprio abismo, um fundo no qual pode desaparecer, uma extensão plana para desaparecer, uma água para se afogar, um poço para afundar ou um buraco negro para ser tragado. Instigado pela assinatura do contrato, Fox leva X para jantar no restaurante. Os espelhos colocados acima e atrás deles inscrevem o contracampo no campo. Bruscamente, xingando um hipotético funcionário, Fox exclama: "Coleslaw for everyone!" e, juntando-se o gesto à palavra, invoca a assembléia de convivas com um generoso movimento de braços. Mas não há ninguém. Como poderia haver alguém já que tudo está lá? A própria morte torna-se, ou torna-se de novo, estranhamento próxima e simples, ela deixa de requisitar o discurso a um outro lugar, de coincidir forçosamente com a fuga para o fora-de-campo. Traído por Sandii, arruinado, Fox só precisa pegar um pouco de impulso e saltar por cima da grade do hall de seu hotel. A morte está aí, à distância da mão. O além é aqui. Quando fronteiras e separações desapareceram, os raros que ficam precisam lidar com o único limite do qual não se retorna, o que separa a vida da morte.

E a falta, grande obsessão ferrariana, toma ela mesmo um sentido completamente diferente. Depois do desaparecimento de Sandii, depois do suicídio de Fox, X encontrou refúgio num dos boxes do estranho New Rose Hotel. Começam então os últimos quinze minutos, exclusivamente composto de fragmentos de flashbacks. X lembra sozinho de suas memórias, e algumas diferenças aparecem em relação àquilo que vimos antes, uma palavra, às vezes uma frase, um ligeiro erro de momento ou de lugar. Não muita coisa, na verdade. Uma certa verossimilhança pediria que X se lembrasse na esperança de descobrir onde e quando ele foi enganado, o lugar e a hora da mentira de Sandii que seria a causa de tudo. Mas, para começar, não há talvez nada a descobrir: antes de encontrar com X, Sandii tinha trabalhado para Hosaka, a firma que cobiçava Hiroshi, e ela terminou certamente se vendendo a eles. Tudo o que há de mais tristemente banal, em suma. O que acontece depois não tem a menor importância. É preciso acreditar na idéia de que os últimos minutos de Enigma do Poder são isentos de todo esforço de elucidação retrospectiva. Ferrara, mais próximo nisso de Tsui Hark do que de De Palma, está entre os poucos cineastas para quem a imagem se pensa fora da dupla verdadeiro-falso. Novamente Welles não está muito distante, dessa vez Otelo e o assassinato de Desdêmona, sufocada em seu sono por um tecido branco através do qual se imagina o relevo de seu rosto. Blackout ia muito longe nesse sentido, asfixiando Matthew Modine sob as espessuras múltiplas de superexposições e de fusões. Enigma do Poder continua a tarefa iniciada neste filme, e o jogo renovado das fusões dissolve umas nas outras as imagens, ora finas ora espessas, ora planas ora profundas, como acontece com tecidos muito frágeis para que não se perceba outros sob eles por transparência. Pensamos nas metáforas bazinianas, véu, molde, múmia da mudança, ainda que seja necessário fazer a nuança entre a sã elegância, a delicada peneira do 35mm e a impura friabilidade, o grão vilão do vídeo. Mas não há entre elas diferenças de natureza. Elas existem todas as duas como impressões, numa mesma relação estreita com a degradação. Se o cinema torna o trabalho da morte visível, o vídeo também, apenas de forma mais manifesta.

X lembra-se, então. Seria mais justo dizer que ele está na lembrança, que ele flutua na imanência das imagens. A falta que o corrói não diz respeito a um saber sobre elas, mas sim à impossibilidade simétrica de preservar duravelmente uma delas e tê-las todas juntas. No fundo, em sua superposição, sua simultaneidade, sua indiferença à verdade como a todo fora, todas as imagens se valem – e nenhuma basta. O homem sem nome é também aquele das imagens quaisquer, quaisquer porque em cada uma o mundo se efetua, ou se retira. Há poucas chances, então, de que ele possa emergir das trevas do New Rose Hotel. Ele não consegue: ele está por demais aterrorizado pela falta, paralisado pela lembrança de Sandii. Ele também não tem nenhuma razão válida para querer sair de lá. Ao lado dele, no chão, ele juntou algumas coisas, algo de comer, o mínimo vital, mas no momento suas coisas, são elas, essas imagens que acabaram tornando-se as dele. Ele as trouxe com ele, ele faz delas o que ele quer. O estoque é bem pequeno, mas os suportes são variados: X não está perto de se cansar. Ele não tem necessidade, do lugar onde está, de imaginar o que se passou entre Sandii e Hiroshi, ele não se dá o trabalho de fabricar por sua própria conta as imagens desse filme que foi feito em sua ausência, pelo qual Fox e ele tinham contratado Sandii para que ela interpretasse o primeiro papel, aquele de beautiful temptress. No limite o cinema mesmo torna-se inútil, a filmagem, em todo caso, o casting e os ensaios podem bastar. Caminho livre para X fazer retornar as poucas imagens de que ele dispõe, de se abolir interminavelmente nelas como elas submergem e se abolem umas através das outras. Talvez ele até se sinta bem. Que nos fazem as imagens? Quantas são necessárias para nos manter? Essas questões, o cinema coloca muito menos do que se acredita. Ferrara traz aqui sua resposta. Ela é extraordinária. Ela é a fórmula ali onde isso acontece, para ele como para nós: em pleno meio das imagens.

Emmanuel Burdeau

Cahiers du cinéma, n° 534, abril de 1999, páginas 48-51

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