segunda-feira, 7 de julho de 2008

TARANTINO

Aquela maldita perna

Conta-se, e talvez seja mesmo Luis Buñuel quem o conta na sua autobiografia ("O Meu Último Suspiro"), que por ocasião de um encontro entre o cineasta espanhol e Alfred Hitchcock no princípio dos anos 70, Hitch, acabadinho de ver "Tristana", praticamente só repetia, extasiado: "ah, that leg! That damn cut leg!" ("ah, aquela perna! Aquela maldita perna amputada!").

Não imaginamos o que Hitchcock diria de "À Prova de Morte", embora suspeitemos de que até gostasse - afinal de contas é um filme razoavelmente sádico, cheio de raparigas giras a quem acontecem coisas horríveis, nalguns casos mesmo a meio do filme, e isto tudo ("Psico" e Janet Leigh, exemplo óbvio) configura uma prática a que o velho Hitch raramente disse "não". Se bem nos lembramos, a perna amputada de "Tristana" não se via, via-se apenas o corpo (o de Catherine Deneuve) a que ela faltava; em "À Prova de Morte" é ao contrário: há um plano com uma perna feminina que, amputada na sequência de um acidente de automóvel, voa ao ralenti, totalmente perdido de vista o corpo a que pertencia. É o plano mais "gore" do filme, é o plano que nos tem há quinze dias a repetir "ah, that leg!", e é uma espécie de corolário do exercício teórico a que Tarantino aqui se dedica.

Teórico? Sim, nem percebemos a surpresa. Houve sempre um lado teórico em Tarantino; e uma vez, depois de "Pulp Fiction", até escrevemos (frase que nos envergonhou ligeiramente durante anos, mas agora, depois de "À Prova de Morte", talvez um pouco menos) que os "primeiros Tarantinos" só se podiam comparar aos "primeiros Godards". Em rigor, não podem, são coisas demasiado diferentes, produtos de tempos, contextos e personalidades diversas - mas há uma atitude, um "gesto", que tem pontos de contacto: uma vontade de "reescrita", à beira do palimpsesto, e a partir daí uma espécie de crítica do cinema (que lhes é, ou foi) contemporâneo. Até a "erudição cinéfila" (pesem os diferentes moldes referenciais de cada um) é um dado comum, que desemboca na atracção por géneros populares degradados - trata-se, pondo as coisas assim, de fazer os mesmos filmes que os outros andam a fazer, só que bem feitos (Godard dizia "os filmes que os outros fariam se conhecessem Griffith", Tarantino mudaria apenas a referência). Não diremos que isto é o mais fascinante de "À Prova de Morte", filme de uma volúpia formal disfarçada de aridez que dá um prazer imenso contemplar, mas está seguramente entre o que tem de mais entusiasmante: é uma crítica de cinema, é uma crítica do cinema contemporâneo.

Cinema contemporâneo popular e hollywoodiano, obviamente. É o ressentimento número um de todo o cinéfilo contra Hollywood, a degradação do seu cinema popular. As personagens de "À Prova de Morte" falam que se desunham, falam, falam e não dizem nada - ao pé disto, ao pé de 99 por cento dos diálogos deste filme (logo o primeiro, conversa a quatro entre um grupo de raparigas num automóvel, que Tarantino faz durar até aos extremos da paciência), o "Madonna rap" de abertura dos "Cães Danados" tem a densidade de um tratado lógico-filosófico. O diálogo, em Tarantino, presta-se sempre a equívocos - há quem seja sobretudo seduzido por eles, há quem se afaste por causa do seu brilhantismo oco e da pobreza da sua referencialidade "pop". Aqui o diálogo é tão gritantemente inútil que não lugar para equívocos, e quando alguém diz alguma coisa importante (e isso é uma percentagem infíma, para aí 1 por cento, do que é dito), sobressai logo. As únicas deixas luminosas de "À Prova de Morte" são as de Stuntman Mike (Kurt Russell), representante de uma espécie em vias de extinção (os duplos) e de um tempo, como ele salienta, "pré-CGI". Fornecem o bocadinho de cola que faltava para unir os pontinhos, e para garantir a intencionalidade (a "crítica", e a "teoria") do gesto de Tarantino: o filme é um manifesto, político e estético, certamente reaccionário, por um cinema artesanal, feito à mão. É por aí que Tarantino ultrapassa a mera ideia de reciclagem épica em que, nalgumas ocasiões, terá caído, fazendo de "À Prova de Morte" menos um objecto nostálgico do que, chamemos-lhe, uma "intervenção" sobre o presente. As marcas de desgaste da película (riscos, saltos, etc) artificialmente criadas, como se o filme fosse visto em cópias velhas: isto não é um efeito, é uma "inscrição" daquele que é o grande "remorso" do cinema da idade digital. Quando "À Prova de Morte" só for visível em cópias digitais, esse remorso estará lá, como parte integrante.

Tudo isto também serve para explicar a perna. Que faz esse plano se não lembrar, a todo um público habituado aos "falsos corpos" dos efeitos especiais e dos jogos de computador, que um corpo humano, submetido a determinados tratos, não se limita a "desaparecer", antes sobrando sempre alguma coisa, pedaços se mais não for, para dizer que "isto foi um corpo"? Absoluto contracampo da espectacularidade da violência "gráfica" e cartoonesca, esse é o mais "moral" plano de um filme esteticamente moralista e esteticamente político. Como os de John Carpenter; estará Kurt Russell em "Deathproof" por mero acaso?

Luís Miguel Oliveira (PÚBLICO)

2 comentários:

  1. excelente e inspirado texto. se és fã de tarantino, tenho la no tasco uma reliquia de que vais gostar

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  2. "Absoluto contracampo da espectacularidade da violência "gráfica" e cartoonesca, esse é o mais "moral" plano de um filme esteticamente moralista e esteticamente político".Foda.

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