quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

“Cigarrete Burns” é outra viagem à “boca da loucura”, e a loucura aqui tem um nome: chama-se “cinefilia” e é uma coisa em extinção. O primeiro filme de Carpenter sem suporte em película é um filme sobre…a película. Quando, nas cenas finais, o demente coleccionador de filmes interpretado por Udo Kier, completamente transtornado depois de ter finalmente posto os olhos em La Fin Absolue du Monde (um filme “maldito”, desaparecido de circulação desde a caótica estreia), abre a barriga e começa a “projectar” as próprias tripas, não se trata apenas de uma divertida concretização de uma bengala retórica usada por críticos de cinema do mundo inteiro (um “cinema visceral”, enfim literalmente) mas do corolário, absurdo, insano, de uma relação física com o cinema, e que por ser física exige matéria, exige um objecto. Justamente, o objecto que já não há: os rolos de película em que “Cigarette Burns” não foi filmado nem reproduzido. De certa maneira, “Cigarette Burns” é um filme sobre “o fim absoluto do cinema”, e na ânsia de todos por encontrar aquele filme desaparecido reflecte-se um tipo de relacionamento com o cinema que tende a extinguir-se na idade dos “downloads” e, como já se vai prenunciando, das cinematecas “online”. Filmando desse ponto do tempo, tão curiosamente “godardiano”, Carpenter, “homem analógico num mundo digital” segundo a feliz expressão de alguém, pode ir evocando, numa homenagem de uma simplicidade quase “naive” (no sentido em que apela à “suspension of disbelief” de uma maneira que nada tem a ver com um processo impositivo: um plano-bilhete-postal com uma legenda a dizer “Paris”, uns escritórios e uns interiores que o filme nos diz serem na Cinemateca Francesa, e nós acreditamos, como acreditamos nos lugares estrangeiros feitos em estúdio na Hollywood de 30 e de 40), uma série de figuras sob quem pesa a ameaça de se extinguirem com a película: as salas de cinema, os críticos, os restauradores e os descobridores de filmes, os projeccionistas, todos personagens e lugares de um mundo cada vez mais espectral. É toda a cinefilia, todo o cinema, que se transforma numa coisa fantástica.

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Luís Miguel Oliveira sobre o filme que mais me entusiasmou – de maneira literal, pulsante – nesta década. O que é paradoxalmente fodido, ou seja, desprezando eu a televisão e toda e qualquer série, tangente, etc., Carpenter faz, através dela – para um canal de cabo da televisão americana – o objecto mais brutalmente obsessivo, demente e conclusivo sobre a pulsão cinéfila e sobre a proximidade do fim do cinema Cinema. Tão sobre o fim do Cinema como “The Thing” foi sobre o fim do mundo. O resto é premonição, que já não o é (a minha hard-drive ali ao lado confirma-o cabalmente) e constatação que os cinéfilos já são criaturas novas. Deixemo-nos de tretas, até o scope do Cinema de Carpenter, como por golpe de magica, parece evadir os pequenos ecrãs e rasgar o formato.

*p.s: o catálogo da cinemateca, dedicado a John Carpenter, foi a coisa que mais gostei de ler este ano. Kent Jones incluído.

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