quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

É para mim um dos momentos mais comoventes e vitalistas dos últimos tempos. Jerzy Skolimowski regressou assim ao cinema com um objecto absolutamente virgem e perfeitamente aparte de qualquer coisa que se faça hoje em dia. Aparte de qualquer cinefilia também. Tive muita sorte ter descoberto a obra do polaco no mesmo ano em que ele fez este extraordinário “Quatro Noites com Anna”, pois apesar de tudo ser cândido e novo, e bastante experimental mesmo, está bem próximo de um filme que me impressionou de maneira indizível, “Deep End”. Assim como naquele filme um rapaz expiava e se apaixonava pela rapariga dos balneários públicos, neste temos um homem, já com uma idade bem diferenciada do rapaz, que também expia e vive uma paixão surreal com uma enfermeira que mora em frente da sua casa. E se em “Deep End” era convocada a juventude e, num certo sentido, a perda da inocência e a entrada na idade maior, neste temos um senhor, já bem feito e experimentado, mas possuidor de pulsões e desejos tão à beira da infância (e do todos os universos contíguos) e do crescimento, bem como uma ânsia voyeurista e uma curiosidade tão inevitável como acontece sempre nesse paraíso onde a maravilha ultima é o desejo transgressor. No fundo aquela ideia de que todos os s impulsos e maravilhamentos primitivos poderão sempre voltar. Um eterno retorno do sensível e desse prazer.
E a forma como Skolimowski trabalha essa circularidade, juntando a pureza e os actos jovens daquele homem com todos os sinais de morte e envelhecimento presentes no filme, aquele pequeno quarto como lugar de todo o fascínio e redescoberta e a atmosfera opressora e feia daquele lugar, a intriga paralela de uma violação e o presente da paixão e do encantamento, é assim tão significativa e demonstradora da própria vontade do cineasta numa segunda juventude. Pois é cinema essencial, cheio de desejo experimentador, libertador, sem atenção a qualquer convenção e sem medo algum de arriscar, de criar raccords demenciais, de inventar atmosferas. Mas se é tão próximo daquele filme de 1971 também o será, por exemplo, de “Moonlighting”, nessa vontade voraz de trabalhar cada imagem e cada som como algo absolutamente singular e possuidor de vida própria, como um velho artista que carpinteira pacientemente cada elemento da sua obra. Daí essa paradoxal crispação entre sons e imagens para tudo permanecer tão virgem e caloroso, tão conciso mas tão vibrante.
Insisto no forte sentimento infantil – de resto a banda som enche vários momentos do filme com sons que parecem advir de qualquer brinquedo – na convocação desse mundo, que tão fortemente se desprende do filme. Nesse sentido a cena final, no tribunal, é reveladora e tocante: aquele homem, um empregado de crematório e homem perfeitamente comum, só a dizer verdades e a contar a transgressão que cometeu, mas como uma criança, cheia de vergonha, prestes a corar, as palavras a saírem-lhe com dificuldade. Contra-campo para a Anna do título, que age como verdadeira rapariguinha que descobriu do que foi vitima e que mal consegue enfrentar o rapaz. E até nesse aspecto Skolimowski impõe uma distância e um pudismo que evita qualquer escorregamento para algo explicito, muito menos pornográfico, tudo aparece em surdina e visto pelo entreaberto, pelo olhar hesitante e curioso daquele personagem inesquecível. E aqueles momentos em que o homem observa o objecto da sua loucura, pela janela, no escuro, são de uma fascinação que já não julgava possível, uma excitação mesmo, com as imagens e as suas possibilidades e promessas, com os segredos a desvelar, quase como nos primórdios. E aquele muro final, todos já sabemos o que representa, quem o não souber não é deste mundo. Enfim, foram precisos 15 anos para isto voltar a ser possível.

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