sábado, 14 de março de 2009

sempre achei que o lirismo só arrebata verdadeiramente, só me põe de rastos verdadeiramente, quando em comunhão com uma violência qualquer. quando advém de uma violência. quando a par com uma violência. violência como coisa abstracta, indefinível, metafísica mesmo (merda, já não me lembrava como tenho medo à palavra…). lirismo que tanto pode queimar no sol como num rosto. num deserto de areia ou na pedra mais anódina. em qualquer matéria claro está, a mais concreta ou a mais abstracta, mas quando tocada pelo fogo de uma qualquer violência, uffffff…
a violência do lirismo....menos conversa, à frente.


Tais palavras e Samuel Fuller são para mim a mesma coisa. Se juntarmos solidões incomensuráveis e desilusões irremediáveis temos um quadro significativo e só falamos do mesmo. Acho que poderia pensar tais coisas de praticamente todos os seus filmes, de “Pickup on South Street” a “Run of the Arrow”, mas penso no que ontem vi, “The Crimson Kimono”.

Nada que se distinga pela originalidade do conto, nada de efeitos espectaculares, surpresas atrás de surpresas, etc., como sempre, nada disso. Mais coisa menos coisa é um thriller entre americanos e japoneses que acontece em Los Angeles e que até têm triangulo amoroso. Nada de extraordinário dito assim, tudo extraordinário quando plasmado por Sam para a grande tela. Começa em plano geral sobre a dita cidade, bem do alto, escuríssimo e fugidio, quase a derreter-se, vai descendo até ao nível da rua, entra num qualquer bar e fixa-se numa bailarina. Bailarina que não dura mais de dois minutos na fita mas que vai dar muito que falar. O resto é investigação mais ao menos à maneira clássica, dois detectives que se apaixonam pela mesma mulher, muitas dúvidas e muitas indecisões, desconfianças, violência emocional. Isto mais do que tudo – violência emocional. Algo que Fuller vai desprendendo a cada enquadramento e a cada movimento de câmara até ao limite do suportável. E nossa, é aqui que a coisa atinge aqueles voos e aquela chama que só um Fuller deste mundo poderia conseguir. É coisa temperamental, obviamente. Nenhuma procura da obra-prima/perfeita, redonda, acabada, limada, equilibrada, ó não, com Sam não, apenas que as imagens e sons tenham vida, vibrem, peguem fogo. Paixão, sinceridade, apenas isto.

E naqueles momentos em que aqueles seres – tão comoventes, tão desprotegidos – estão sobre o quadro de Fuller e sobre a luz de Fuller, um quadro que se recusa a fragmentar e a ilustrar, uma luz tão emotiva como as emoções que em jogo estão, ai sei, de certeza certa, que a arte lírica é a arte mais violenta e que a mais violenta é a mais lírica.
A câmara de Fuller é utensílio que se recusa a seguir uma linguagem comum, que vibra como o próprio Fuller vibra como sempre que o ouvi falar, obcecada com as pessoas e com o que dentro delas está, atenta a alguma variação ínfima, a uma subtileza qualquer, que se recusa a cortar e que prefere reenquadrar, é método que não é método, é olhar ávido de emoção e de verdade. Depois reparo que nas cenas puramente action – e Sam foi quem disse que “cinema is action” – os planos já são outros, já são mais sobretudo, o filme já corre como que ansioso por poder reencontrar o que não parece action mas que é o cúmulo do action – duas pessoas num espaço, às vezes mais, o mundo todo naquelas almas. È como comparar uma potente carga de porrada a uma insuportável descarga eléctrica, descarga que não dá para escapar. Por surpreendente que possa parecer preferido a porrada, a mil.

“A câmara é um microscópio que detecta a melodia do olhar.”, disse-o Nick Ray, e tanto ele como Sam nunca a utilizaram de outra forma, e é assim que tais corpos e tais olhares, tais espaços e tal ar do tempo, estão em fogo a cada instante e logo suscitam a violência da catarse. Pelo menos para mim, mas como sempre, só falo de mim.

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