domingo, 26 de abril de 2009

"Não há nada de novo a dizer sobre “La Tour de Nesle”. Todos sabem que se trata de um filme encomendado com um orçamento absurdo, do qual a melhor parte ficou nas gavetas do distribuidor. “La Tour de Nesle” é, por assim dizer, o filme menos bom da obra de Abel Gance. Como Abel Gance é um génio, “La Tour de Nesle” é um filme genial. Abel Gance não tem qualquer génio, é sim dominado por ele, ou seja, se lhe derem uma câmara portátil e o puserem entre vinte operadores de câmara da actualidade, na saída do Palais-Bourboun ou na entrada do Parque dos Príncipes, sozinho, dar-vos-à uma obra-prima, formada por alguns metros de película, em que cada plano, cada imagem, cada 1/16 ou 1/24 de segundo terão a marca do génio, invisível e presente, visível e omnipresente. Como faz para conseguir isto? Só ele sabe. A bem dizer, creio que nem ele sabe […]
Chamámos a Gance um “falhado” e, recentemente, um “falhado genial”. […] A questão é saber se é possível ser-se, simultaneamente, genial e falhado. Eu creio que o falhanço implica talento. Conseguir é falhar. Quero, então, defender esta tese: Abel Gance, autor falhado de filmes falhados. Estou convencido de que não há grandes cineastas que não sacrifiquem algo: Renoir sacrificaria tudo (argumento, dialogo, técnica), em prol de uma melhor interpretação por parte do actor; Hitchcock sacrificaria a verosimilhança policial para beneficiar uma situação previamente escolhida; Rossellini sacrifica os raccords de movimento e de luz em troca de maior frescura – ou calor, é o mesmo – dos intérpretes; Murnau, Hawks, Lang sacrificam o realismo dos enquadramentos e do ambiente; Nicholas Ray e Griffith, a sobriedade (noção de sacrifício nas obras geniais.) Ora, para a equipa ancestral, num filme bem-sucedido, todos os elementos contribuem de igual forma para um todo, que merece o adjectivo de “perfeito”. Mas a perfeição, o sucesso, considero-os abjectos, indecentes, imorais e obscenos; a propósito, o filme mais detestável é, sem dúvida, “La kermesse héroïque” [de Jacques Feyder, 1935], por tudo o que contém de concluído, de audácias atenuadas, de sensatez, de comedido, de portas entreabertas, de caminhos delineados, e somente delineados, de tudo o que é agradável e perfeito. Todos os grandes filmes da História do Cinema são filmes “falhados”."

François Truffaut,
“Abel Gance, désordre et génie”
(excerto)
“Cahiers du cinema”, n.º 47,
Maio de 1955.

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