Continuo com Max Ophuls e com um filme que ele fez quinze anos mais tarde em Hollywood. Letter From an Unknown Woman é o título. Também se passa em Viena (embora filmado em Hollywood) também provém de um escritor austríaco (Stefan Zweig). Também acaba com um duelo. Só que nesse filme as regras e o jogo são diferentes.
Lisa (o mais magoado papel de Joan Fontaine) é uma rapariga da classe média que sonha ser artista. Na mesma casa onde ela mora, vive um pianista célebre, Stefan Brand (Louis Jourdan) um bom bocado mais velho do que ela. Quase desde criança, ela apaixona-se por ele: o grande artista, o génio. Nunca lhe fala, poucas vezes o vê, mas alimenta-se dele e da música dele. Tanto e tão loucamente que, quando cresce, recusa qualquer casamento. Só pode casar-se com o seu pianista, pianista que nem sabe da existência dela e quase todas as noites tem uma mulher diferente.
Mas um dia encontram-se e conhecem-se. Fazem uma grande viagem num comboio que não sai da estação num parque de ilusões em Viena. Quando virem o filme, perceberão que essa mágica viagem a levou até ao fim do mundo. Nessa noite, Lisa quebra todas as regras do seu jogo virginal e torna-se amante de Stefan. O céu dura pouco: Stefan tem uma tournée, daqui a uns dias estará de volta. Despedem-se na estação de comboios, que sempre foi o lugar das despedidas para nunca mais. Nunca mais Stefan voltou e nove meses depois quem chega é o “filho do pecado”.
O destino deu segunda hipótese a Lisa. Um senhor rico, muito rico mesmo, que gostava dela e até aceita ser o pai da criança. Mas, nestas histórias, há sempre, uma vez, outra vez. Na ópera, durante uma ópera de Mozart, Lisa reencontra Stefan, aliás assaz decaído. Tudo parece reatar-se e a tal ponto, que, apesar do marido ser magnânimo, Lisa sai de casa para outra noite de amor com Stefan até descobrir, no princípio dela, que Stefan nem se lembra que ela existiu e lhe repete o mesmo número que jogara anos atrás na noite mágica.
Não interessa muito contar que Lisa morre, mas interessa saber que, se sabemos toda esta história, e se a sabemos pela boca e pelo olhar de Lisa, é porque ela escreve do leito de morte a carta de uma desconhecida. Para além da carta, só ficamos a saber que o que Stefan esqueceu nunca foi esquecido pelo criado mudo dele, que acompanhou toda a história e percebeu todo o drama muito antes dele. Só ficamos a saber que Stefan, que se preparava para fugir ao duelo para que o desafiara o marido de Lisa (histórias de honra não eram para gente como ele) depois de ler a carta acaba por aceitar o duelo. O desfecho é imaginável.
Em Letter From an Unknown Woman, quem quebrou a regra foi Lisa, mas quem aceitou a estúpida honra para se lavar do que fizera ou do que fora, foi Stefan. Lisa transgrediu a regra porque viveu sempre num mundo onírico e, por isso, numa notável análise do filme, Stanley Cavell tenta uma singular leitura freudiana desta obra. “By the time you read this I may be dead” escreve a desconhecida na sua carta-filme. “Why is she death-dealing?” pergunta Cavell. E é a grande pergunta que se pode fazer às personagens dos grandes melodramas, onde o único horror é o horror de acordar e onde por isso o jogo com a morte é o único jogo possível.
João Bénard da Costa
filmaço
ResponderEliminarO último parágrafo tem uma ressonância peculiar agora...
ResponderEliminarPara ele o cinema era sempre pessoal, logo potencialmente universal. É esse valor humano e colectivo de que muitos "críticos" de cinema (e de arte!) se esquecem.
A voz de Bénard ainda se ouve. Permanecerá.
É mesmo isso Sérgio. Obrigado.
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