MANUEL MOZOS – UM CINEMA CONTRA O ESQUECIMENTO DAS COISAS E DAS PESSOAS
Luís Miguel Oliveira
O mais recente filme de Manuel Mozos, “Ruínas”, percorre Portugal à procura de lugares (edifícios, sobretudo) que dada altura da sua existência deixaram de servir. A lei de Lavoisier postula que na natureza “nada se perde e tudo se transforma”, e Manuel Mozos, neste seu filme, mostra bem como o “mundo natural” e o “mundo cultural” são coisas diferentes. Estes lugares, e estes edifícios, não se “transformaram”, limitaram-se a apodrecer e se se transformaram nalguma coisa foi na sua própria ruína, vaga lembrança de tempos idos e memórias “mineralizadas” das funções para que foram construídos.
A natureza encontrou uma maneira de se regenerar a partir dos seus próprios detritos e obsolescências, e a morte gera sempre alguma espécie de vida. O “mundo cultural”, o mundo dos homens, nunca encontrou essa maneira. Ou encontrou, selectivamente: quando reconhece algum tipo de significado (histórico, estético) às suas ruínas chama-lhes “monumentos” e torna-as lugares de peregrinação. Ou mete-as num museu. Quando não reconhece nada disso abandona-as, faz por esquecê-las até que a evidência material da sua presença se torne demasiado embaraçosa, ou um empecilho no caminho de novas construções. As primeiras imagens de “Ruínas” mostram a demolição controlada dos edifícios que, no empreendimento turístico de Troia, ficaram algumas décadas a testemunhar o interrompido “sonho” da Torralta. E de certa maneira são as imagens mais angustiantes de todo o filme: é como se a câmara de Manuel Mozos tivesse chegado demasiado tarde para ver (e ouvir) aqueles prédios, apenas a tempo de testemunhar a sua destruição, rápida, instantânea e irremediável, ad nihilum.
“Ruínas” é o filme de Manuel Mozos mais explicitamente marcado por esta aflição pelo inútil e pelo rejeitado, pelas coisas que vão desaparecer ou que já desapareceram. Uma aflição que não tem correlação com a “qualidade” (estética, ou em termos de relevância histórica) do que se perde. Aliás, essa aflição é tanto maior quanto menos essa “qualidade” for evidente. Um dos outros exemplos do trabalho documental de Mozos, e dalguma maneira não especialmente rebuscada um filme próximo de “Ruínas”, é uma pequena obra, feita por encomenda da Cinemateca Portuguesa, chamada “Censura: Alguns Cortes” (1999). A ideia era aproveitar “restos”: conceber uma montagem com os pedaços de filmes que a censura foi cortando durante as décadas em que esteve em vigor, e que depois ficaram, perfeitas “ruínas”, esquecidos dentro de latas guardadas no arquivo da Cinemateca. É um filme que gera no espectador uma emoção muito particular, que não é motivada nem pela “qualidade” nem pela “relevância” daquele material (na maior parte, fragmentos anódinos de filmes anódinos), e se sobrepõe mesmo à dimensão historicamente significativa do filme: uma bizarra e difusa sensação de perda, que se tem alguma origem nostálgica (duplo sinal de um “mundo passado”: os filmes e, através da acção da censura, o modo como eles eram vistos), vem com muito mais força do contacto com todas aquelas evidências de rejeição condenadas ao esquecimento. “Censura” é um filme sobre isto: sobre o que foi rejeitado, sobre o que ficou esquecido.
Esta angústia é um dos traços principais do cinema de Manuel Mozos, e se comecei por ir buscá-la a dois exemplos documentais é para melhor frisar a que ponto ela ensopa também o seu cinema de ficção. Para além das características e do tipo de trabalho implicado por cada género, são mais as continuidades do que as descontinuidades – mesmo em filmes mais convencionalmente concebidos com os documentários com José Cardoso Pires e Aldina Duarte isso se verifica, às vezes como um pequeno “relâmpago”, um “flash” que traz um luz nova (já em “Cinema Português?... – Diálogos com João Bénard da Costa”, filme sobre este objecto historicamente tão frágil, tão “esquecido” e de certa maneira tão “rejeitado” que é o cinema português, a ideia está lá toda, inerente ao assunto). Não é o extraordinário que seduz Manuel Mozos, é o comum, o próximo, o corriqueiro, o imperfeito. Aquilo que luta contra o esquecimento. Como as suas personagens de ficção. O António de “…Quando Troveja”, por exemplo, luta contra a sua aniquilação sentimental, contra o seu desaparecimento aos olhos da ex-namorada, a angústia da extinção é dada como um trauma. O protagonista de “Xavier” tenta existir, viver, não ser esmagado por uma cidade demasiado grande e demasiado desordenada. A miúda de “Quatro Copas” move mundos e fundos para que alguma coisa (o casamento do pai e da madrasta) não deixe de ser o que era.
Mas este, justamente, é também o desafio que as personagens de Manuel Mozos colocam ao espectador: “eu não quero que tu me esqueças”. São personagens que, por norma, nada têm de extraordinário, e quase nunca têm qualquer característica “saliente”. O desafio, arriscado, mas repetido a cada filme, é tornarem-se “extraordinárias” (e “inesquecíveis”) pela maneira como se impõem ao espectador. Dos miúdos de “Um Passo, Outro Passo e Depois…” à família em implosão de “Quatro Copas”, os filmes de ficção de Manuel Mozos fundem sempre a narrativa com o próprio processo de definição e conhecimento das suas personagens. Mesmo em “Ruínas”, com o seus relatos em “off” (os Macavengos…) a povoarem todas aquelas paisagens com a expressão concreta de uma humanidade que entretanto partiu, as coisas se passam assim. De certa maneira, cada personagem, definida nos seus pormenores e nos seus hábitos, transforma-se na sua própria narrativa. Em “Quatro Copas” isto é evidente, de tal maneira os caminhos das quatro personagens centrais se vai cruzando e afastando, cada uma delas lutando pela atenção das outras, pela atenção do filme e pela atenção do espectador. O desafio é arriscado, e para o próprio Mozos em primeiro lugar, porque pressupõe uma espécie de apagamento voluntário do realizador, por forma a dar a ilusão de que, de facto, as personagens comandam o filme. É “clássico” – e mais europeu, sobretudo italiano, do que americano – mas temperado pela sofisticação e pela subtileza (e pela liberdade) do cinema novo português (a montagem, por exemplo: sendo Mozos montador de formação, a montagem não é nos seus filmes uma simples “técnica” que mais ou menos virtuosamente se exibe, antes o princípio que estrutura o desenho e o desenvolvimento da narrativa, como “Xavier”, ou as elipses de “..Quando Troveja”, ou ainda a “divisão” das “Quatro Copas”, bem demonstram).
O cinema de Mozos não rompe, cava o seu lugar dentro de uma tradição (“Xavier” tem traços em comum evidentes, e deliberados, com os “Verdes Anos” de Paulo Rocha), que tem um olho no “classicismo” e outro na “modernidade”. E habita esse lugar, um lugar onde o estilo é indissociável de uma ética, os dois influenciando-se mutuamente, de maneira única no cinema português contemporâneo.
Caro O Touro Enraivecido,
ResponderEliminarOs Óscares de Marketing Cinematográfico, iniciativa que pretende nomear o melhor que se fez em publicidade de Cinema no ano de 2009, estão de regresso ao Keyzer Soze’s Place.
Assim, convido o autor deste blog a expressar a sua opinião em http://sozekeyser.blogspot.com/2010/01/oscares-de-marketing-cinematografico-2.html.
Desde já, apresento o meu profundo agradecimento na sua disponibilidade para participar nesta iniciativa.
Cumprimentos cinéfilos!