segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Uma montanha chamada Peckinpah

por Manuel Mozos


Foi no Verão de 1973, numa matinée entre dois gelados do Santini, que vi no antigo Cinema São José, Cascais, Júnior Bonner - O Último Brigão. Eu tinha 14 anos e era o primeiro filme que via de Sam Peckinpah. Gostei do filme, sobre o mundo dos rodeos e o regresso melancólico e nostálgico de um veterano a essas exibições.

Fixei o nome do realizador por achá-lo estranho e engraçado. Só mais tarde soube que Peckinpah era de ascendência índia e que havia uma montanha homónima nos Estados Unidos.Ao longo das décadas de 70 e 80 vi todos os outros filmes de Sam Peckinpah, nas suas estreias em Portugal, em reprises ou nalgumas sessões especiais, em ciclos, na Cinemateca ou cineclubes. Mas vi ou revi quase todos em grandes salas que hoje já não existem: Império, Royal, Éden, Condes, Tivoli, Quarteto, Monumental, etc. Não querendo ser inteiramente irónico, isso até faz sentido: o cinema de Peckinpah só poderia ser visto em ecrãs grandes e magníficos, mesmo se as cópias se partissem, tivessem riscos, faltassem fotogramas e planos ou até cenas inteiras e essas salas já as considerassem obsoletas, com muitos lugares vazios e em vertiginosa decadência, denunciando a passagem do tempo e prenunciando o seu fim com a chegada de outro tempo. Assim são também os filmes de Peckinpah, as histórias dos seus personagens, heróis/anti-heróis crepusculares, resistindo estoica e romanticamente ao seu próprio apagamento e à aniquilação dos seus mundos.

Posso entender que Sam Peckinpah não seja um realizador "agradável", consensual, daqueles que fazem parte das famosas listas dos melhores realizadores do mundo. Percebo que se lhe apontem inúmeros defeitos, algum gosto duvidoso, por vezes abusar de maneirismos, ser excessivo, controverso, truculento, conflituoso, intransigente, ser arrebatado por certos vícios.Mas isso é também como ele é. Não se é bom, nem se é mau, nem melhor, nem pior. Apenas se é. E o que importa é saber isso, essa procura constante de perceber os homens, conhecer os outros e conhecer-se a si mesmo. E é isso, sobretudo, que encontro nos filmes deste tão grande realizador: a integridade e constância na procura da verdade sobre o Homem, com os seus defeitos e as suas qualidades, as suas grandezas e as suas misérias, tão violento e cruel como apaixonado e nobre.

Gosto das 14 longas-metragens que realizou. Claro que há umas que gosto muito, como The Ballad of Cable Hogue, Straw Dogs, The Getaway, Bring me the Head of Alfredo Garcia, Cross of Iron. E há os que gosto ainda mais: The Wild Bunch, Pat Garrett and Billy the Kid e Ride the High Country/Guns in the Afternoon. Mas com todas elas fui sempre aprendendo qualquer coisa mais. E aquilo que mais destaco na obra de Peckinpah são os temas, a amizade, a traição, as amizades traídas, a cumplicidade, a integridade, a honra, a perseverança, a nobreza, o pendor sacrificial, o não haver limites, o romantismo e o hiper-realismo, no lado formal o grande trabalho de montagem, o saber do uso de diferentes objectivas, a utilização de zooms, diferentes velocidades de câmara, o slow motion, a dinâmica entre escalas de planos, os diálogos, os personagens na sua eloquente justeza e dignidade, na sua tristeza, melancolia e nostalgia, os brilhantes castings, os fabulosos actores principais e os maravilhosos e competentíssimos actores secundários, ver em fim de carreira tão enormes actores como William Holden, Robert Ryan, Joel McCrea, Maureen O'Hara, Ben Johnson, Randolph Scott, Ida Lupino, Jason Robards, Ed O'Brien, James Mason, Burt Lancaster, ou o trabalho de outros como Warren Oates, Steve McQueen, James Coburn, Kris Kristofferson, Charlton Heston, Richard Harris, David Warner, Emílio Fernandez, Ally McGraw, Ernest Borgnine, John Hurt, Rutger Hauer, Dennis Hopper, L.Q. Jones, Slim Pickens, Harry Dean Stanton, Dustin Hoffman, Bo Hopkins. Ou mesmo ver Bob Dylan, algo canastrão, em Pat Garrett... para o qual compôs a banda sonora, onde se inclui um dos seus mais belos temas: Knockin'on Heaven's door...

Fico contente que a Cinemateca Portuguesa finalmente dedique um ciclo a Sam Peckinpah, pois até aqui só alguns dos seus filmes haviam passado, mas integrados em ciclos temáticos - ou de homenagens a actores (Joel McCrea, Charlton Heston) ou pela escolha dos espectadores da casa, na rubrica regular O que quero ver (Straw Dogs, 2001); ou a escolha de Miguel Esteves Cardoso (para as 3.ªs-feiras clássicas, 1995, The Wild Bunch), o que me surpreendeu e muito me agradou. Tal como agora vejam o ciclo.

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