quinta-feira, 20 de maio de 2010



- O que impressiona logo desde o início, e surge como “justiça poética” inerente ao filme, é como tudo nele se adequa às reflexões e aos escritos de João Mário Grilo sobre cinema. “O Processo do Rei” é um fruto da não ilusão, da solidão, de uma verdade estética e ética, do enquadramento e da compreensão da História e dos meios fílmicos. Todas as variadíssimas poéticas que o atravessam – a fulcralidade do fora de campo e dos ruídos, a composição dos elementos no quadro, toda a conjugação do movimento e do peso interior à cena, etc. – são por uma vez da ordem da simplicidade e da subtileza, como do imenso respeito e investimento na violência e doçura que as formas representam. Processo em ebulição pacificada, nessa sempre abismal e feérica luta entre dinheiro e estética, desejo e materialidade, impossibilidade e amor (palavra obviamente desusada e ridícula quando utilizada no cinema como cultura), encontra então um idioma próprio que o desmarca para lá de todas as referências, mesmo as reconhecidas.

- E toda esta precisão de esteta, erigida num dispositivo cerrado que se poderia nomear de “Bressoniano”, é o correlato e chegada a uma pura libertação que eleva o olhar, vezes sem conta, ao sublime, emancipando-se assim dessa terrível legislação dos planos e da igualdade, para atingir alturas e um estado de sereníssima e imperturbável inocência que igualmente só pode ter a ver com essa ontologia original que nasceu com os Lumière (ou Méliès, é exactamente a mesma coisa). O espanto e a sublimação perante o mundo e os seus homens, tudo enformado numa beleza pictórica extrema que jamais se aproxima de qualquer tipo de esteticismo por esteticismo, muito menos decorativismo, antes um enaltecimento e reconhecimento do tal génio da natureza e da sua condição primordial à arte. Da cerração e do fragmento à simplicidade e ao primitivismo.

- “O futuro é uma forma de se conhecer o passado” – João Mário Grilo

- Relato e reflexão de uma crise da história Portuguesa, de uma crise de sucessão, do humano e da civilização, de maquinações de corte. Voltando a Bresson, muito dificilmente poderemos deixar de lembrar e enunciar sentidos com o primordial e a alguns níveis matricial, “O Processo de Joana d'Arc” (“O Processo” do título de J.M.G não está lá por acaso); se a secura, a austeridade e o anti-espectáculo são da mesma família, toda a temática da culpa e do medo, da verdade e da mentira, mesmo da casualidade, encontram uma gravidade que remetem tanto para o cineasta francês como para a questão central de todo o cinema de Fritz Lang; Serve isto para reforçar que se parte de um reconhecimento para chegar a algo de particular e fresco – como aquelas manhãs veladas pelo nevoeiro dos planos inicias… Os esgares de impotência, e consequentemente de frustração, que propiciam o embuste e a ilusão – essa solidão e desespero que adquirem o peso da tragédia – acontecem assim precisamente porque João Mário Grilo faz entrar em confronto o máximo de poder e de decisão com o máximo de falhanço intimista, individual e relacional. É nessa décalage e nesse abismo de incapacidade e fraqueza apesar do máximo, que os seres gravitam e flutuam, ora hieraticamente (ela), ora descontroladamente (ele), pelos corredores e labirintos da sua fatalidade inescapável. Não há salvação, não há escape, como por exemplo no ópus último de Bresson, “O Dinheiro”, em que os mecanismos do meio envolvente e as suas intrínsecas propriedades, continham a a semente última do mal. Sem recursos. Espécie de castelo de cartas em queda vertiginosa, de “tableau” (no sentido que Serge Daney costumava pensar) rasante à farsa e ao teatro do mundo – todas as “cenas de tribunal”, tábua rasa sobre ideias feitas de um suposto pudor historicista e logo desvio para uma verdade materialista – porque pasmosamente perto do oblívio e do cataclismo. Daí também o prodigioso recurso aos painéis e a certos espaços vazios como prenúncio e constatação da catástrofe.

- Uma compreensão da representação que elide os perigos da psicologia e as prerrogativas fúteis de um suposto “fazer artístico”, bem como os efeitos e as estruturas da ficção corrente, e que caminha por imagens (“pas une image juste, c'est juste une image”, à maneira de Godard), palavras, gestos, ditos e não ditos, por esses negros da luz que tudo fazem vacilar e pelas alvuras que evidenciam e iluminam, “O Processo do Rei” avança cadenciadamente e harmoniosamente (terrível e ambiguíssimo paradoxo) pela tragédia humana inseparável da sua condição.


(notas inspiradas pelo texto de apresentação do Professor Carlos Melo Ferreira sobre a obra de João Mário Grilo)

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