“Charley Varrick” abre com céus à Rembrandt ou à Delacroix e com cheiro a western pleno ou crepuscular. Raios de sol a queimarem a objectiva. Amarelos e vermelhos mansos. Crianças ou bailarinas a brincarem. Lances de água a esvoaçarem. Uma rapariga a ser assobiada por rapazes, uma calma inaudita – a “Americana” junto ao gado, se quisermos – que parece não deixar adivinhar o que se irá passar logo de seguida. Porque não nos enganemos, é um filme de Don Siegel, e essa espécie de paz e de lirismo já contém dentro de si a violência e a pérfida que o universo olhado por ele quase sempre ostenta. A natureza e o mundo poderiam ser inteiramente belos e os afectos ainda mais belos, como no início, mas os tipos e as tipas que vamos acompanhar não ligam pingo para isso, ali é cada um por si e o que importa é sobreviverem ao caos que eles para si inventaram. E se tudo começa tão “perfeito” e tão imaculado é logo na sequência seguinte, a do assalto ao banco, que Siegel mostra o artesanato e o amadorismo que assim trabalhados por ele abrem todas as brechas possíveis e impossíveis para a máxima vibração e intensidade e delicadeza de cada plano, de cada coisa que lá dentro mexa, toda uma imediatez e liberdade formal que dialoga com a complexidade humana. Siegel não ilustra nem dilata, apenas filma e monta, daí o milagre daquelas paisagens e daqueles ângulos nas profundezas da América, as estradas envoltas pelas montanhas intermináveis, o ritmo próximo do que experimentámos. Muito sangue, muita traição, muitas balas sobre a carne e muita dissimulação. Mas Siegel sempre soube que, e citando Manuel Mozos a propósito de Peckimpah: “Não se é bom, nem se é mau, nem melhor, nem pior. Apenas se é.” Os perversos de “Charley Varrick”, a começar pelo próprio ou pela sua mulher, passam o filme a fazer as coisas mais horrendas e inaceitáveis, mas também, num breve olhar ou numa pequena comoção que pelo rosto lhes perpassam, toda uma sensibilidade advém e é então que sentimos que não estamos a ser enganados e que o mundo não é a preto e branco, tudo bom ou tudo mau.
É Walter Matthau e a troca dos anéis, as suas velhas histórias com lágrimas ao canto do olho; É o solitário Andrew Robinson e o desespero constante do seu olhar de menino, não há nem haverá ninguém que o ame e isso paga-se caro; É o mafioso que não resiste a empurrar uma miúda num baloiço e a dizer-lhe o que os “bondosos” diriam; Existe sempre o verso e reverso, o positivo e o negativo, algo que ficou lá nos fundos e que poderia, se tivesse calhado, estar nos cimos. Daí, claro, também temos o que não gosta de putas e que literalmente varre tudo o que lhe aparece, é a peça gélida, a “excepção da regra”, o mal absoluto que existe forçosamente, o alguém que “é assim”, sem redenção possível. Mas Siegel nunca os desampara e filma cada um do jeito que merece. Emoção, emaranhado de sentimentos, contradições, fogo. Humanidade, campo de batalha, cinema – tal como Fuller explicou para Godard. Não trocaria este arcaísmo narrativo e estético por nada do que a suposta perfeição e tecnologia que a suposta Hollywood de hoje me tenta oferecer. Ponto.
o verdadeiro Nuno Markl revelado num e mail a um fã
ResponderEliminarVergonhoso... Qualquer amante do humor e escrita que se faz em portugal deve ver isto
http://overdadeironunomarkl.tumblr.com/
Nuno Markl Mentiu.
ResponderEliminarPor parvo passou o Afonso, mas nada parvo é ele.
Esclarecimentos no novo blog
http://nunomarklmentiu.tumblr.com/
quoi de toi, mon cher?
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