quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
“Les perles de la couronne”. Sacha Guitry. 1937. Olhei para a data, já depois da grande projecção na cinemateca e foi quase um baque. Mas dos fortes. De um só vez a confirmação da fraude dos grandes livros sobre história do cinema, dos grandes historiadores e das grandes listas. Das escolas ditas de cinema, cursos, cinefilia. Tudo e muito mais. Constatação que tal história é imensamente mal contada, perpetuada, acolhedora. Põe-se a obra de Guitry ao lado dos Mizoguchi da época, do “Citizen Kane” ou de “La règle du jeu” e não me venham falar de diferenças formais, profundidades de campo, magias por trucagens, ilusões quaisquer, ambiências fora-do-mundo, ritmos ou tonalidades.
Sem antes ou depois.
“Les perles de la couronne” é uma imensa peça sinfónica, polifónica, só aparentemente fragmentada e de mil remissões e correspondências internas e sussurradas – Tarantino ou Altman ou P. T. Anderson chegaram tarde muito tarde e os tais compêndios falam em revolução, coisa triste... - aventureira por mares, castelos de réis rainhas réis príncipes e princesas, naus, espadas, capas, mundos exóticos e esotéricos. Venenos. Idas ao fim do mundo e regressos pasmosos e heróicos. Mulheres belas, mulheres perigosas, mulheres audazes, também doces. Erotismo flor da pele. Crianças ambiciosas tramadas, de olho aberto, donas delas, imperiais.
Um corropio ou uma dança tão pasmosa que atinge o infernal e o imparável. Vórtice ou vertigem.
É também uma tragédia, porventura um grandíssima tragédia numa dissimulada leveza. Famílias dizimadas à nascença da criança que não sobrevive. Sucessões corrompidas. Cardeais orquestradores de interesses e do mal. Crimes fora de campo, crimes no centro do quadro. O tempo que corre corre corre, distende-se, destrói, torna cinzas, executa esquecimentos, irrompe abstracção e favorece lendas, apropriações.
Tudo porquê? Por umas supostas valiosas pedras pérolas de uma coroa que a muitos vão despertar interesse, obsessão, até indiferença ignorância, estabelecer hierarquias, preferências, estatutos, pôr tudo em cheque e em abalo. Pedras da perdição.
De mãos em mãos, de geração em geração, de continente a continente, do mais rico lugar da terra para as profundezas insondáveis e originais dos fundos das águas.
E Guitry a pôr tudo isto em cena é de uma mestria visual e efabulatória tal, de um rigor e ao mesmo tempo de uma vontade e concretização de mundos e ambiências a que se poderiam chamar “fantásticas” ou surreais, terríveis de um certo modo fundo. “Fantásticas”, surreais, atmosféricas, aereadas, tanto como os nevoeiros ou os deslizamentos da câmara que do teatro voa para o mais puro êxtase das possibilidades primitivas, escondidas, virgens do cinematógrafo. É alguém a olhar pela primeira vez fascinado, qual criança mesmo que perversa, excitada e consciente, com ideias e a tudo aberto. Lembro-me de um plano maravilhoso, uma sequência, seguido pelos próximos: uma nau a chegar ao cais, tanto nevoeiro entre os céus o meio envolvente aquelas águas que tantos segredos de certeza guardam. Assim, todas as forças, todas as linhas, todo o palpável, concreto visível, ali num todo, densissimo e suavíssimo, como só os grandes estetas ou os grandes poetas – sim, o Orson Welles de “The Magnificent Ambersons” vem imediatamente à memória, neve névoa opacidades – assim nos mostram e nos arrepiam. Grandíssimo universo dentro do desmesurado universo onde tudo se passa. Depois um certo desfile de crianças e adultos também, tudo composto e belo e terno e forte como aquele que John Ford filmou em “The Horse Soldiers". Fixamentos e deslizamentos onde os termos, travellings ou panorâmicas ou o que quer que seja, adquirem o sentido de inutilidade. Sempre a poesia, a ontologia, a limpeza, as convicções. Medida própria.
Ao mesmo tempo é milagrosamente absurdo ou como se costuma dizer inverossímil. Tal como o exemplo máximo de toda a parte final – nem é preciso falar das pedras que se acham, passam, se perdem... acham – os três homens que contavam re-contavam a verdade ou o mito ou tudo misturado e desfasado. Encontram-se num tempo e num espaço de maneira impossível, casual, mesmos objectivos, fazem-se cúmplices e cada um acha uma das partes da tal coroa dita jóia. Leilões, armadilhas, esperas silenciosas, trinta por uma linha. Acaba-se sobre um grande barco, dissimulação amorosa, sedução, destruição retorno da fonte trágica. Bocas abertas.
Epopeia, delirante fervilhante epopeia. Prazer de mostrar contar sugerir tapar destapar iluminar escurecer. Tudo atravessado por uma ambiguidade feita negrume. Espelhos sobre espelhos partidos por espelhos. Cortante. Tudo em causa.
Guitry, artista maior.
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