quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Guitry/Candeias

Tudo se tem passado entre planos brutos, anárquicos e pulsantes. Uns sequência, outros que nem o sei dizer. "Faisons un rêve..." é de Sacha Guitry e Guitry que na sua imperiosa classe e erudição, questão de pose e de natureza e tantas vezes de ironia, tem a fome de um selvagem e o desejo iconoclasta de um primitivo que ainda não viu as regras. O plano inicial que percorre as salas é particularmente impressionante, deixa de lado qualquer perfeição ou marca dos tão propalados e demonstrativos e vaidosos planos sequência que fizeram "história" e vai no sentido da redescoberta e da destruição, uma ontologia qualquer que varre a cena e o estúdio, que o violenta, que furiosamente apanha tudo o que deve ser apanhado.


Depois, Ozualdo Candeias e a sua "Herança". E se Guitry é um primitivo e um selvagem à sua maneira, Candeias parece vir de um tempo em que a palavra "cinema", a bela palavra, ainda não tinha qualquer sentido e os irmãos Lumière ainda estavam longe de ter nascido. Um primata antes deles, um vândalo, um puro, puro contrário de inocente, alguém que encontra algo e que o explora obsessivamente – a palavra arte não nos salva, não... – e que por isso mesmo tudo o que olha comporta uma infinitude de possibilidades e só uma maneira, a sua. O que arrebenta na tela com uma força desmedida, intolerável para a neutralidade e limpeza dos dias de hoje. Matéria descarnada, rude, captada com a audácia e a humildade dos ignorantes e dos não viciados. Mas convicto, de convicção absoluta.

E se Guitry utiliza uma torrente de diálogos, ao contrário de Candeias que de palavras só por legendas e o resto do som é efeitos que surgem como golpes de navalha, uma e a mesma coisa: ver e filmar com a ânsia da primeira vez, famintos, com calma e com todo o ímpeto do mundo. Eles sabem que estão com um novo mundo.

Sem planos sequência portanto, grandes planos, planos americanos ou o que quer que seja. Sem nada disso. Apenas a dita fome. Que fome.

Homens do mundo, rua.

E, importantíssimo: mandar foder. E ambos o fazem de forma total e sem pedir desculpa. Tanto o homem do teatro como o camionista que fotografava discos voadores. Mandar foder, tudo o que falta no cinema destes tempos.

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