segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Uma Pedra no Bolso, Joaquim Pinto, 1988

Ai que saudades de certos verões longínquos. Que saudades e sem qualquer tipo de saudades daquelas camionetas cor-de-laranja da rodoviária nacional. Que saudades de deixar a cidade, ir por ali fora sentir o cheiro do mar ao longe tão longe, descalçar-me a areia nos pés sentir . Tomar os pequenos almoços com o apetite aberto pela maresia. Aquele pão...O banho matinal umas corridas, pescarias e a fome de novo. Que saudades do entardecer também laranja ou para os amarelos. As saídas nocturnas para carroceis de feiras ou para o café da esquina. As meninas que nos faziam sentir algo que jamais tínhamos sentido. Primeiros cigarros tais frutos proibidos? Perder-me pela inocência. Posso estar a falar de mim, vou parar de falar de mim.

Joaquim Pinto é para todos ou quase todos o grande técnico de som dos filmes de João César Monteiro e não só, ou um montador. Mas um técnico em todo o caso, mesmo que com a veia artesanal que também a Vasco Pimentel lhe é reconhecida. Escandalosa omissão. Tenho que o dizer de forma categórica: bastava a candura, a lancinante poética da humildade e da pobreza e da beleza e da plenitude e da carência, da infância em suma, para "Uma Pedra no Bolso" ser um dos mais belos e mais esquecidos filmes de todo o cinema Português. Tão belo como os mais belos filmes iniciais de Pedro Costa ou Teresa Villaverde. Tão esquecido como os tão esquecidos e e bonitos e singularíssimos filmes de Manuel Mozos. As primeiras vezes de cineastas a rimarem com as primeiras vezes dos protagonistas que atravessam os filmes.

"Uma Pedra no Bolso" é igual a "Moonfleet", é um filme visto e conduzido e descoberto redescoberto pelos olhos e pelo coração de uma criança. "Uma Pedra no Bolso" é o filme das pequenas coisas – Mozos, outra vez – onde uma criança vai então chegar à beira mar, tomar os pequenos almoços, os almoços, jantares ceias referidas. Vai-nos falar só a nós e num tempo em que a nostalgia é ainda coisa dúbia, suponho, momento que inevitavelmente dessa doçura a uma fúria só pode fazer raccord com o pequeno festival punk-rock do velho rádio com as velhas cassetes.
Vai perder-se de amores por uma mais velha mas não muito. Vai então sentir aquele aperto que quem nunca sentiu não é deste mundo ou aqui não anda a fazer nada. Como dor de barriga mas mais terna... Vai sentir que às vezes não há nada nadinha a ponta de um corno para fazer e que tal parece chato...Vai-se meter numa máquina e imaginar-se piloto ou sedutor. Se calhar um dia mais tarde terá um brinquedo assim, se calhar nunca o terá. Sabe-se lá.

Vai mentir e vão-lhe mentir e vai percorrer trajectos linhas rectas e curvas. Vai saber que nos adultos, que na maior parte a parte quase absolutamente toda, cada um tem as suas razões e quer é ficar bem na vida os outros que se lixem, há custa do que quer que seja. Vai conhecer a excepção milagrosa como que em expectro – Luis Miguel Cintra desta vida – ou ainda aquele tipo mais velho que não sabemos se havemos de confiar ou de rapidamente o mandar às favas. Dizer sim num momento à autoridade da família que dele está responsável pela frente, e para um bem maior e pelo respeito ao sangue fazer a coisa contrária no entretanto seguinte. Vai mergulhar e caçar peixes, apanhar sol e concertar uma ventoinha. Vai andar de boleia. Coisas simples, coisas pequenas. Vai, ousadia das ousadias a minha ousadia favorita, entrar no quarto da menina um pouco mais velha e bela como as mais belas coisas daquelas paisagens, ver e sentir o que pode e de lá fugir a sete pés. Não vai fazer os trabalhos de casa e vai imaginar que os faz. Vai dançar ou tentar dançar e agarrar ou tentar agarrar a menina. Vai conseguir, hummmm. Vai por ela uma arma usar e tudo deixar que o confunda.

Tanta descrição e tanta palavra e no entanto o filme só faz a plenitude do seu sentido quando visto. Quando experienciado nestas peles que naquelas sensações já se arrepiaram já se deslumbraram já cheiraram. É possível sentir o cheiro e a temperatura do filme de Joaquim Pinto. Obra solar e obra olfactiva sensorial. Falta a mais bela cena que é uma das mais belas cenas do cinema deste país ou de todo o cinema, sem receios: a cena da romaria ou da feira popular ou dos carroceis. Tão simples, tão deslumbrante e luminosa e escura como as cenas de floresta de "O Sangue". Uma montanha russa, os três que se aventuraram lá no meio, uma câmara na sua fixidez abalável a enquadrar os rostos extasiados e as luzes e aquele medo tão bom e o resto que por acaso entre no enquadramento, a verdade e o despertar que o directo do som proporciona. 
As agruras da vida já nas voltas e nas contra voltas desse outro tão apelativo brinquedo, as que se estão a passar ou as que se passarão mais tarde muito tarde quando o tempo passar mais rápido muito mais rápido. 
Mas também puríssimo momento de libertação. Filme de tempo. É preciso ver esta cena para se saber do que falo.

"Uma Pedra no Bolso" está tocado e atravessado pelo génio do amadorismo e do artesanato e da delicadeza. A cena da tentativa de fazer a barba e aquele grão na imagem que jamais o profissionalismo industrial de hoje ousaria ter. Aquelas alvoradas azulados que só pela memória assim pintadas se fazem. Essa extrema e bem dita fragilidade de toda uma construção de planos e dos seus sons que se volve força e coisa sem par, o que está em plena harmonia com os trajectos e as duvidas e toda aquela abstracção temporal que certo dia e a uma certa distância, lá para a frente na vida, nos fará sorrir nos fará sentir o tal aperto do que não volta e que saudades ou então não...Ele - o Miguel – que dali daquele tempo se quer transportar ou saltar e nós ou eu que se calhar até não me importava de lá dar um pulo. Sublime, e repito sublime, dialéctica suave de um tempo vivido e de um tempo perdido.

Antes dos "Can Movies Think?" os filmes podiam ser só isto, tipo um puto e uma praia, um amigo que nem sabe se o é, a protectora que diz que só quer para ele o bem, a rapariga que toda a beleza lhe mostra e que até a beleza do que está lá fora faz esquecer. Tão brancos, tão amarelos azuis laranjas. Antes podia ser assim. Agora a música é outra.

Joaquim Pinto, obrigada.

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