sexta-feira, 11 de março de 2011



O que o cinema foi…

“Tren de Sombras” aparece-nos ou assombra-nos precisamente de um mundo de sombras, matéria fantasmática da película com que se fazia o cinema e fantasmas de um presente que certo dia certa película certo olhar a câmara pioneira dessa arte cinema foi e assim já não parece voltar a ser. O que foi e o que é, Guerín dialéctico. Prólogo. Certo dia um descobridor que não conhecia a palavra cinema, alguém que olhava por uma câmara com o mesmo desejo, fascínio, o mesmo êxtase, a mesma exaltação e ciente de um mundo de hipóteses igual a um Griffith a olhar o Mississípi cinematógrafo por exemplo. Algo em estado ardente, original, primeiro grau, primeira vez, virgem que não foi usurpada e banalizada, fonte de incomensuráveis mistérios e proezas utopias… Gèrard Fleury era o seu nome e podia ter passado completamente despercebido outro dos maiores.
Algo aconteceu a esse amador artista que gostava de filmar a família, paisagem, a beleza. Tudo se perdeu, décadas em que o seu parto ficou a apodrecer. Triste, triste e revoltante como tudo o que o tempo levou e que não tivemos oportunidade de ver e que poderia tornar a vida de alguém mais vital, aguentável bela. Guerin descobriu as filmagens, descobriu a candura pré-linguagem, descobriu que um advogado com uma rudimentar máquina Lumiéres e sem luz que não a deste mundo, só assim, sem nada mais que a ontologia "Entrée d'un train en gare de la Ciotat" pudesse alcançar as alturas, o maravilhamento, o impronunciável, o milagre, o que não se acredita tal como no Griffith referido, Murnau, sei lá… Epstein. Imensos horizontes com imensos céus que rasgam o plano, terra perdida de meninos e amantes que brincam se amam. Águas e barcos e relação de amor entre eles. Baloiços e cabelos levados pela ventania. Lillian Gish parecidas. Meninos de gravatas também pelo vento tocadas. Um homem a correr pelo campo até a um comboio como corria a rapariga do “City Girl” ou a Mãe Ana do António Réis mais à frente. Película estralhaçada Guerin nas tintas tudo aquilo vale ouro há que reanimá-la trazê-la à vida. Operação de resgate gesto de arqueólogo coisa funérea. Mas vida só vida tanta vida. Pois Guerín, como logo no plano primeiro por ele filmado, como a “Aurora” lua mesma e aquela barca e a aparição do referido homem que amava filmar a família, vai àqueles lugares como tinha ido aos de John Ford do “The Quiet Man” para não só sentir e inserir fantasmas com os mais velhos truques do cinema – tão lindas homenagens só por amor se filma assim como Fleury filmou os seus – mas também criar a sua ficção homenagem e ver como tudo aquilo está como o mundo o cinema mudou. Do velho ao novo, na mesma com película, o que foi certa vez possível já é impossível, mas a paixão moral indestrutível, as formas e a história, os sonhos e as fábulas, reino da infância para sempre eterna perigosa, agigantam-se sempre e de coração se insuflam quando se espreita disponível e a tudo aberto. Entre o branco e o preto e as cores relação secreta sim, relação dialéctica da mesma família como irmãos.

O que permite ao espanhol meter-se na casa e num estonteante e hipnotizante jogo de espelhos, reflexos, luz sombra timing dizer ao cinema que Hitchcock e Buñuel grandes assim existiram e a força foi igualmente tremenda. Casas encantadas, vertigos, tristanas ambientes. As sobre impressões continuam e a relação passado presente insiste em acto tão acto como os faróis dos carros que fazem vibrar planos e assustar as casas e as árvores ternas e as monstruosas.

Depois é sobre o cinema como todo o filme foi mas é como uma aula. Do lado do científico e com tanta força como o filme sobre os Straub do Costa. Mostra-nos o que são rolos, o que são cortes, o que é montagem, como se pode pôr planos diferentes em relação erótica, criar jogos de olhares, sorrisos cúmplices, um cosmos de sentidos tanto como um dia kuleshov…mostra-nos os barulhos das mesas de montagem, a fragilidade tacteabilidade dos materiais, exposições, rugosidades, luz que fura e invade e altera e espalha, permeabilidades, grãos e pequenas grandes explosões dos químicos pratas sais sua composição.

E as luas continuam, continuam agora envoltas nas névoas. Névoas que também já penetraram o meio aqueles caminhos, pastos, aquelas ovelhas, esconderijos, antiguidades, misticismos. Corpos rijos corpos evanescentes no espaço algo tudo que se desfaz desaparece nada dura para sempre o cinema a vida. Penetração desaparição. “Trén de sombras” filme desejo. 

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