segunda-feira, 12 de março de 2012



1957: um grupo de camponeses de Peroguarda, no Alentejo, vai cantar ao Porto. O poeta António Reis, futuro realizador de "Trás-os-Montes", ouve esses cantos. Conquistado, toma o caminho de Peroguarda, com um gravador. 1959: Michel Giacometti, musicólogo de origem corsa, começa uma pesquisa de 30 anos. Não tarda a descobrir Peroguarda. 1965: no Porto, o jovem poeta Manuel António Pina, e outros jovens aspirantes a poetas escolhem António Reis como referência. 1966: O cineasta Paulo Rocha roda a sua segunda longa-metragem ("Mudar de Vida") no Furadouro, situando a história no meio dos pescadores que na infância o haviam fascinado. Estas e outras pessoas fazem parte de uma tribo informal cujos membros se reconhecem quando se encontram.


Um longo travelling para a frente abre o filme de Pierre-Marie Goulet, um travelling ainda mais longo para trás fecha o mesmo filme. Como numa visita onde se diz "até já". Apetece-me tentar descrever esses movimentos para deles me lembrar por muito tempo, da sua suavidade, da sua doçura, do seu ar tão respirável, da terra e do céu que abarcam, esse caminho de linhas rectas e curvas, subidas e descidas. Movimentos tão imponentes e tão frágeis. Quero-me lembrar dos magníficos esverdeados, das ervas nas bordas do traçado, das árvores como que encantadas, esses horizontes que se abrem e se rasgam sem limites...a luz lancinante e viva colhida...o movimento sinfónico e harmonioso de tudo isso que é então ainda mais elevado pelo subtil e tão vital som do que lá está e claro pelo off que impregna os planos em sublimes poemas. Os primeiros sublimes poemas de tantos e tão raros que cobrirão a ouro e a arrepio na espinha o que vai estar entre os tais dois travellings e dentro deles.

Paisagens fumegantes, nevoeiro que esconde revela. As forças da natureza que nunca ninguém as venceu e tão consolador tão apaziguador é esse pensamento...próximo plano.

"Encontros" é erigido sobre esta medida e sobre esta moral: as coisas grandes e justas só podem ser construídas de forma e de desejo tão grande e justo como, ao máximo da beleza e ao máximo de sentimentos só se pode responder com a retribuição de todos os saberes e com a exploração e conservação a um mesmo tempo de todos os segredos. Numa só palavra: generosidade.

A Dona Virgínia que sabe os poemas de cor, a Dona Virgínia que se emociona nas lembranças de António Réis, de Michel Giacommeti, de muitos outros, que também se emociona com os cantares e com os escritos de quem a rodeia e que também canta. Altiva e delicada, imensamente terna e de uma elegância que não se define. Uma mãe Ana como a olhada por António Réis. Imensa. Todo o coração.

Paulo Rocha filmado contra o mar que certo dia o obcecou, Paulo Rocha já do outro lado a olhar para o ecran num vórtice fantasmático de voltas e reviravoltas incontáveis atordoantes. Paulo Rocha passado presente a mesma coisa, arco impossível. Paulo Rocha com remorsos de não ter sido sempre um arquivista do homem e do mundo à maneira do "Mudar de Vida" essa tamanha entrega e coragem.

Manuel António Pina jogo de espelhos, memórias das memórias. Só o presente esse passado.

Ervas arrepiadas ao sol.

Filme – resistente. Inconscientemente resistente pois jamais poderia ser de outro modo. Daí a serena paz das construções sem margem para dúvidas. Nem a distância longínqua e intocável dos objectos prontos a entrar para o museu, nem afectação da instalação ou da performance. Nada de artistas com sublinhado, egos expostos. Nada da distanciação pela distanciação caucionada pelo "moderno" ou por Brecht mal comido e mal digerido. Da mesma maneira que está interdito liminarmente o atrofio e o "em cima" da reportagem e do audiovisual, maldita televisão, do vídeo ou do zoom. E o gesto nunca é o da antropologia nem o do curioso, muito menos o do malandro, aquele que procura o exótico ou o suposto "diferente", o espécimen raro. O gesto é então o do reconhecimento, algo uterino, famílias ou companheiros – "Estas e outras pessoas fazem parte de uma tribo informal cujos membros se reconhecem quando se encontram."

Que olhar? O olhar que perscruta a poesia e o homem, a poesia do homem e logo do cosmos seu envolvente.

A construção de Pierre-Marie Goulet é tão límpida como enigmática. Tão aparente e ao lado do que filma como liberta, arriscando cruzar todos os caminhos e tempos. De Peroguarda resplandecente para as ruinhas e becos da cidade do Porto, das águas insondáveis e muito belas de Goulet para as furiosas águas duas vezes celulóide de Rocha, da Córsega à desmesurada explosão colorida de um campo alentejano potenciada ao poema de um desconhecido e simples herói...todas as correspondências todos os encontros. Do presente para os anos 50 das gravações de António Réis.  Intersecções, sobreposições, permeabilidades, raccords sonhados, encontros para além do impossível que pelo cinema e pela arte da montagem se tornam possíveis e que só reflectem a força tempestuosa do interior e da verdade – é a Dona Virgínia em diálogo e em campo/contracampo com Giacometti que já não está entre nós, a ser surpreendida pelo regresso de Réis em voz registada. Todos os tempos num só tempo, esse tempo do cinema que elide o inexorável. Esse tempo uno esse tempo de vida e da morte e vice-versa, milagre. A paixão a trabalhar nos interstícios. A paixão no centro absoluto.  

Poesia da poesia da poesia e assim sucessivamente...fatal liricismo mundo."Encontros" é um objecto de amor e só por ele tudo é passível de ser ligado e refeito talvez novamente vivido. Amor que no referido travelling de crepúsculo junta tudo e todos os que para trás ficaram, junta tudo o que resta e o que restará e coloca tudo isso exposto a nu e igualmente opaco e místico. Amor pleno em que todos esses poemas, sons, diálogos, vida e morte, carne e película, corpos e pronúncias, musicalidade e entropia das emoções, declarações e íntimos inacessíveis mergulham no abismo de uma comunhão pelo cinema e pela dádiva concebidos e fazem amor uns com os outros. Viver é encontrar, sozinhos nada valemos. Sabia disso.

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