sexta-feira, 16 de março de 2012



De André De Toth gosto muito de tudo o que vi, coisas tão diferentes como os thrillers europeus de nervo Don Siegal, até a um dos cumes do Western e que já é outra coisa, "Day of the Outlaw". Por agora apetece-me ficar com um filme de 1953, completamente aparte dos referidos, chama-se "House of Wax" e é um objecto de maravilhas várias. Tudo acontece entre os fabulosos nocturnos atmosféricos e os traços e perfis humanos. Entre as linhas e superfícies à Edward Hopper derretidas e consumidas pelos demenciais fogos de Edgar Allan Poe. Dentro disso, aspectos, mutações e restos humanos que me lembram Tim Burton e os seus afins dos monstros e arquitecturas da hammer. É facto que este filme foi rodado com pretensões inovadoras e decerto economicamente dispendioso, que se procurou acrescentos de realidades e fantasias que pudessem salvar o cinema, lamentável ideia já antiga. Esqueça-se então tudo isso, De Toth não caiu nas armadilhas que tantos "mestres" de hoje estão a cair. Ou seja, agarrou o animal pelos cornos e assim mesmo sacou uma pedrada estética, uma aula de “mise en scène”. Vetorizou o espaço, suprimindo assim qualquer efeito de pastilha elástica, materializou-o sobre a luz respeitando-lhe e alcançando perspectivas concisas, fortes e alucinadas de acordo com o que estava em causa a cada instante. Viu esse espaço em todas as dimensões e possíveis ângulos com a ontológica máquina. Isto sem se precisar de usar os insuportáveis óculos e assim mesmo evitando o atrofio e o abandalhamento da não “posta em cena” desta tecnologia que agora toma conta das salas. Eu não os usei, isso garanto. Logo na abertura, ainda do lado da possível sanidade, o bailado cadavérico e a dança sensualista da câmara pela sala, entre manequins, humanos e estranhos objectos. Aí e depois do fogo que matou esses inanimados e que matou a bondade do seu criador, já nos feéricos exteriores, umas ambiências pastosas e vivas que valem por si e ficam em primeiro plano. Bric-a-brac completamente anacrónico e delicioso e comovente. Já desapareceu. Fogo e transfigurações e o conto desenha o seu movimento, da beleza pretendida pelo animador das figuras de cera que só podia ser Vicent Price passámos ao terror de quem experimentou o outro lado e se tornou já espectro. Mortos-vivos. Do necrotério para as figuras só aparentemente inorgânicas porque recheadas a carne e a sangue – daí algo nasce e se manifesta, sem volta a dar. Da frieza terminal de capas brancas que amparam mortos, para os vivos que falam, num jogo de duplos e de reversos em volúpia, desejos e lividez enigmática que tudo confunde. Peles e faces macilentas de dúbios sinais vivificantes e mortificadores. Olhos e olhares que se entrecruzam, metamorfoseiam, se trocam. Olhos que se olham nos olhos. Que se penetram. Transfusões sanguinárias puras, amaldiçoadas e venenosas. Corações ocos e os que pulsam, mas quais? Mortos que se confundem com vivos. Que vivem lado a lado. Entre eles. Como o surdo-mudo Igor (Charles Bronson, como foi possível?) que em certo plano ou noutros tantos se faz de cera e por cera passa. Animal empalhado. Bustos arrancados aos negros fundos. Sombras plasmadas em feixes mínimos de claridade. Mortos-vivos. Mesclas e convívios sobre fogachos de lascívia. Vivos que se transformam em mortos pelo medo. Mortos que vivem pela graça. Da morte à vida e da vida à morte. Difícil ousadia arriscar de que lado estão os mais belos. Alguns bonecos são tão belos como um luar tecido a rubi. E há carne suja mas também há a bela Sue. Mas qual a sentença? Museu-Mundo. Museu-Farsa. Tudo a mesma coisa? Assim como temos homens bonecos temos também bonecos mais humanos que os de carne.

Mas atenção, nada de grafismos macabros ou funestos a fazerem-se centro, sim um aflorado erotismo que – e no dito por não dito pode advir de lubricidades várias – se espalha e brota por todo o lado, como lá para o final no suado peito, nos braços e pernas presas mostradas em fragmentos da Sue que se quer Marie Antoinette.

"House of Wax" dispensa os manhosos artifícios e é feroz multidimensionalidade devedora do inultrapassável Murnau satânico. Fabuloso universo.


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