domingo, 15 de julho de 2012


A sociedade só vive de ilusões. Toda a sociedade é uma espécie de sonho colectivo. Essas ilusões tornam-se ilusões perigosas quando começam a parar de iludir. O despertar desse tipo de sonho é um pesadelo.

Paul Valéry em Pensamentos Maus e Outros


A câmara de John Huston que em Dublin entra por uma casa adentro, se faz harmonia, corpo presente, assente. Giza espaços, modela tempos, baila, sonda. Fende, elide, aglutina, se abre ao invisível, memória. Lá fora, a neve. Essa que cai sobre todos os vivos e sobre todos os mortos.
Antes disso, uma carroça pára à porta, o primeiro plano, em vai e vem, para dentro se aquece o primeiro grupo de convidados de um acontecimento qualquer. Neblinas e nevoeiros vários, frescas rarefacções, fumos densos e transparentes, esbranquiçados, frio, neve. Já estamos dentro, dentro vamos ficar quase sempre. Vos garanto, o fora parece que mata. Parece o fim do mundo, não estou a exagerar.
Que filme é este que se enceta em alvuras negras e que se encerra em negrumes claros sobre movimentos fora de tempo e fora de lugar, em paroxístico diálogo e apelo ao fim dos fins, terra da verdade, morte? Atordoante. Lúcido. Tanta danação como a que derrama do demoníaco “The Treasure of the Sierra Madre”, juro pela segunda vez, não estou a exagerar.
É verdade que “The Dead”, e como se cola bem o título, depois dessa festa tão cinzenta, nefasta, depois de uma travessia urbana de temperaturas mortíferas, se vai finalizar com um homem e uma mulher em fúnebre e elegíaco tom confessional, com o tempo a regressar violenta e espessamente, lamento impossível de um amor impossível, essas constatações doridas das agudas impossibilidades. Mas se essa mulher aturdida e esmagada por um amor impossível que ressoou quando já não se esperaria, essa Gretta Conroy de olhos impenetráveis e letais, se escancara toda ao seu marido certa vez salvador, um Gabriel Conroy que talvez nunca o tenha desconfiado e assim mesmo ficou a saber e reflectir mais um bocadinho sobre o lugar dele e deles neste nosso mundo.
No fundo, estourou-lhes a provisoriedade e fascínio de tudo isto neste nosso, numa reflexão e visão mais clara e ardente, porque olhada pelo filtro do eminente apagão, descobrindo aquilo a que Sophia, tão a Sophia, de Mello Breyner Andresen, definiu como terror, “Terror de te amar num sítio tao frágil como o mundo”. Talvez no mundo nunca se tenha tratado de outra coisa.
Rememoração última e inteira desse marido que tão triste papel pensa ter desempenhado na vida da esposa, que desconfia que nunca foi amado. Escutámos “The Lass of Augrhim”, balada tradicional Irlandesa que de forma mansa e fulminante desperta a consciência irmã ao verso de Sophia, essa que nos diz que um a um, cada coisa cada pessoa, se converterá lentamente em sombra. E se apagará. Essa balada que acordou do eterno túmulo uma paixão de antes dos vinte, um tal rapaz delicado, olhos grandes e escuros, tão expressivos. Esse rapaz presumivelmente inocente e belo, daqueles que só o tempo magoa, Michael Fury, que tão claramente só pode ter morrido de amor, assim como essa sua amada, Gretta Conroy, também aí terá morrido uma metade pelo menos. A visão desse rapaz que cantarolava “The Lass..” há muito muito tempo é o cúmulo lancinante de encontro e sentido entre a beleza e a morte. A inseparabilidade de tais.
“The Dead” é um tratado de beleza inerente, tangente, intrínseco à morte. Sem volta a dar e de certezas perfeitamente pacificadas. Por isso calmo, ninguém grita. Dessa fatal confissão a dois talvez seja então necessário desvelar o novelo, para trás, assim como às portas do fim se diz que tudo se nos passa pela alma de rompante. Acabado esse monólogo maníaco e aceite de Gabriel, essas paisagens aquietadas que se lhe colam à voz e à dicção já celestial, esses pardacentos cemitérios escandidos em linhas e atmosferas conciliadoras, prespectivas liricamente geométricas e contracurvas ao arrepio, ruinas, ramos, pingantes, cadáveres próximos, depois de tudo isso e do indizível, enfim a beleza que abre ferida incicatrizável. A paz, mais do que apagamento, que advém ao vulcão: Gabriel calmo, conformado, fechado. Gabriel, nós.
Vamos aos bailes, aos ditos e aos não ditos, ao bêbado e aos supostos sóbrios, às cantatas e pianadas e à idade que pesa como a juventude inibe. Às danças leves e às danças rasteiras, aos jogos de poder e de emancipação. E do tempo que fere inevitavelmente até ao percurso que o urdiu, talvez possamos entender de que tipo de luz se tratou, nos envolveu, nos machucou de vida e nos machucou de morte. Luz que desde o primeiro manifesto no degrau zero até aos etéreos desmultiplicados, foi tudo o que importou, à matéria e ao pressentimento, à vida sem cinema e ao cinema da vida. À bruteza e ao rumor. Luz concreta, luz violadora à retina, às pupilas, córnea, nervo óptico, ponto cego. Luz desabitual na prática filmante. Como explicá-la, acolhê-la, com ela conviver, simplesmente enfrentá-la, no rosto de uma jovem cândida ou de uma velha acossada, sobre as velas ou sobre os vidros das protectoras janelas, num vão de escada ou no luzente ouro da bebida que embriaga? Luz onde se vê e entrevê morte, trevas, claridade, evanescência, transcendência, enfim, beleza, sublime beleza, ousarei mesmo imprimir o viciado “sublime”?
Só por essa correlação e lógica entre o presumível gregário anfiteatro da mansão, essa correnteza como num rio e o seu contraponto posterior do quarto a dois, num movimento dialéctico entre o festivo e o seco, cortante relação com o privado e o singular, a pequena semente que queima nesse quarto escuro, a consciência na terra, o devir para todos igual e o irregressível, é que será possível entrar no rol destruidor e transformador deste implacável e, sem dúvida, tão esclarecido filme.
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Todo o acaso trabalha nos cliques do abismo. Predestinação, destino, roda da sorte.
Século XVIII: algures num qualquer castelo shakespeareano de uma Dinamarca de contos de fadas, um jovem também pelos vinte anos, Y, perfecionista das geopolíticas, devorador de calhamaços a esses bastos assuntos dedicados, estudioso à beira da loucura que só para isso respirava, alienado das academias. Além disso, praticamente mais nada. Nunca tinha sonhado alguma jovem bela, jamais sequer entrevisto qualquer rua de um vício como o tabaco ou a boa pinga, nada. Nada além dos tempos livres do violoncelo e dos envolvimentos prematuros em altas tertúlias onde ele era o jovem prodígio, orgulho parental. Sempre tirou as notas máximas em qualquer exame. Elipse: certo dia, certa hora, sem se imaginar o porquê nem como, uma branca dá-se numa das provas máximas, a mais almejada delas, a de uma vida. Realizou-a sofregamente, recebeu-a calado, taciturno, trágico. Quando a sua mãe e o seu pai e demais membros familiares ansiosos por novo record do mundo chegaram ao castelo, para as devidas honras, o rapaz prodígio não saía do quarto. Esperou-se, esperou-se… Porta deitada a baixo. Y jazia morto. Vieram cátedros, sociólogos, psicólogos, cada um tinha o seu relatório. Uma evidência só: Y matou-se ao primeiro falhanço.
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Afectação de um sobre o outro andamento; das partes a um amplo todo; do todo às partes. Entre os dois actos: mudanças de temperatura, aquecimentos, arrefecimentos. Paletas quentes, paletas geladas. Nunca em sucessão, antes assombramento mutuo, simbiose. Uma luz inexplicável, sem fórmulas. Inexplicável não pelo seu apagamento, mas quase sempre pela sua acentuação. Essas sombras da claridade que tudo calcinam, vacilam, penetram. Não esqueçamos a luz. Luz, revelação, um belo quase terrível, terrível mesmo.
Do lado de ninguém em especial e por cada um de nós, acabou assim o truculento John Huston. Num filme sem personagens principais pois todos estão metidos no mesmo barco ou sobre o mesmo halo, acto último nesta peça imensa onde actuamos incessantemente, eclipse do mundo. Eterno retorno, retorno impossível. Talvez que oblívio cósmico.

1 comentário:

  1. "O inocente e o belo , não têm inimigo, à não ser o tempo"

    Willian Butler Yeats, poeta igualmente Irlandês. Poema presente no liricamente e magoadamente indizível "Frágil Como O Mundo", da Rita Azevedo Gomes. Assim como Sophia.

    Por agora, e sei lá porquê, filmes irmãos.

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