Porque Criss Cross pode ter vários significados
e convocar diversas leituras, desde as óbvias linhas cruzadas aos imparáveis
atordoantes movimentos para a frente e para trás, até aos simbólicos e ambíguos
conflitos, contradições ou profundas traições de que qualquer homem é capaz a
um dado momento, nada mais fatal e explicito do que o plano e imagem final do
filme que Robert Siodmak fez em 1949 para arrancar à tradução o mais grave dos
sentidos.
Os corpos mortos de um homem e de uma mulher enroscados em cruz, este cruzamento onde queria chegar. Mas para isso é preciso começar na vida e tentar apanhar a linearidade possível a uma tramada teia. Steve Thompson é um daqueles comoventes autoconvencidos que depois de um ano fora da terra onde amou e se separou regressa certo de que tudo está esquecido e lhe resta deslizar livre e leve pelos locais de sempre. Ultra romântico, sincero, ainda muito novo. Ela, a que ele ainda ama, claro, é dúbia como os ares nublados que correm o filme, hermética, impossível e temerário antro de queda. Ele não quer enganar por nada deste mundo, ela vai conforme o vento. É por aí que nunca se darão a não ser talvez na morte e nessa terrível representação final que já tentei evocar.
“Estava nas cartas ou era o destino... ou uma maldição, ou como queiram chamá-lo.” (…)
“Estava nas cartas”. Assim se nos vai dirigindo Steve, confessando e suplicando,
que não a quer encontrar mas lhe segue o cheiro e a encontra na pior das
companhias. Encontram-se, perdem-se, o acaso age, atraem-se, devoram-se,
morrem-se, humilham-se, enganam-se, desenganam-se, atiram-se. E precisamente
assim tudo se faz e desfaz noir, num filme extremamente frágil como essas
pobres casualidades que encontra.
Quem nunca por nunca enganaria, ele, por ela vai
enganar logo a quem não deveria por nada falhar. Trai-se é a ele próprio e ao
seu interior, mata-se. E quem parece que pouco vale, ela, vai cumprir e
esperá-lo na barraca à beira lago dos velhos sepultos amantes. Entre os
assaltos e as farsas combinadas que correm mal, as hesitações de última hora e
o dito por não dito. Nesse ápices, a volta à natureza primitiva do que manda o
estomago esquecendo o coração e a inocência de miúdo vidrado, não é preciso
especificar identidades, e o terceiro vértice que é vórtice de uma trindade
irreconciliável vai encontra-los no ninho e mandá-los para o eterno que ele não
pode chegar.
Muito se anda por este mundo e de muito
dependemos do instante agudíssimo que o tempo opera, dessa dança fátua dos
corpos pela grande casca de banana, onde na encruzilhada do milésimo de segundo
com a anónima esquina tudo pode ou não pode mudar. A crueza do “Criss Cross” de
Siodmak foi levar-nos desse imprevisível abstrato até à frontalidade da chegada
final. Entre as voltas uterinas e a calcificação ad eternum está-se por um fio
e ainda por cima somos sobretudo o irracional que reage e tanto sobretudo ao que
importa. Uma viagem alucinante, intensidades de um tiro até nos estamparmos no termo,
cumprido encontro marcado, é este inexorável fundo que enforma a forma. Linhas
rectas engelhadas, quadro final, lamento.
Chriss Cross é também Edward G. Robinson no brutalíssimo Scarlet Street... :)
ResponderEliminar