sexta-feira, 15 de março de 2013

 
 
Robert Siodmak sempre esteve vidrado na questão da aparência e do fundo, imagem e verdade, máscaras, cópias macabras, espelhos disformes, negros, ilusionistas. Também vidrado, e a palavra parece colar-se bem, a magnetismos e a grandes-planos obsessivos, onde a boneca ou o manequim pode enfeitiçar mais que a sua matriz. Se “The Dark Mirror” é a apoteose deste universo estonteante e perversamente doentio, o mais horroroso, de puro horror mesmo, será a “Phantom Lady” de 1944, dois anos antes do filme das irmãs.
 
Porque se esta história de contornos policiais tipicamente William Irish parece atar no seu término todas as pontas, a sua narrativa, que só se pode considerar frágil ou inverosímil do mesmo modo que o nosso quotidiano terráqueo é logicamente (ou ilogicamente) diabólico, o que mais ressalta à vista e à contorção cerebral é a luz, essa luz perturbantemente desenhada ou sonhada que o tal criminoso afirma que lhe fere os olhos.
 
Jack Marlow é um pobre coitado que depois de uma discussão com a mulher se decide entregar aos whiskeys num balcão qualquer, onde vai encontrar um elemento do sexo oposto mais triste do que ele. Olhares para aqui, para ali, oferendas, descompromissos, e estão dentro de um táxi para um musical qualquer. Não trocam nomes nem moradas. Parece a perdição costumeira, mais vai sê-la noutro sentido. Vão à sua vida e Jack é acusado de estrangular a esposa que deixou só.
 
Desaparece o primeiro véu fantasmático sem identidade e entra em campo o segundo, a pasmosa Carol que trabalha para ele, essa carnal irrealidade perigosa que vai levar ao suicídio e ao céu antes do inferno quem ela decide perseguir ou apontar olhos. Apaixona-se pelo patrão que está prestes a quinar e para o resgatar entra em correspondência directa com a abusadora da demência.
 
Dois fantasmas que se intrometem à normalidade, que a entrecruzam, a vilipendiam, se tocam a dado momento e se materializam, para aparecer o inspector do crime e o próprio criminoso, que descobrimos antes do filme dobrar a metade. Nada de carpinteirados guiões ou golpes baixos dos criativos…reflexos e mais reflexos e os protagonistas ou artistas principais vão-se sucedendo, desmultiplicando, fundindo, desaparecendo, para uma nossa emancipadora interactividade.
 
Cena crucial, se de uma espiral ou de uma escada em caracol se pode sacar uma singularidade ou relevo, é aquela em que inspector e culpado se encontram fechados no camarim da artista do chapéu salvador. Chapéu gêmeo, mais uma vez. A paranoia do suposto louco começa a borbulhar, as mãos a tremer, a autoridade a disparar pontadas tais como “Não é o aspecto do homem que conta, é como funciona a sua mente”, ou “Qualquer dia conseguimos educar a mente como o corpo”, e claro que o outro, o negativo, começa a entrar em parafuso, a flipar, entre o Santo e o Demónio também ali posto em causa, de um espectro ao outro.
 
Foi um momento tão pungente como o da dança e lascívia que Carol teve com o baterista antes do colapso deste, e que desfaz desde logo as dúvidas a quem pensava estar na presença do milionésimo suspense last minute rescue afinado por um qualquer Griffith evoluído. Intriga, género, possivelmente laivos de estilo, tudo isso só se mostra não ainda para um estudo sobre a luz ou o branco e preto e as cinzas, antes para o seu melindre, transfiguração, modelagem, a consciência de que cientificamente e mentalmente é dela que dependemos, que nos salvámos, caímos ou nos entregámos… Milhentas combinações, possibilidades, impossibilidades, efemeridades, casualidades, intempéries.
 
E lá está, a mestria de Siodmak e a sua rodagem nesta vida retiram toda e qualquer ganga e gordura que uma empresa destas pediria, os produtores exigiriam, etc., esses erros habituais de se confundir uma prática formal de luzes, sombras e matéria, e factor humano, assim como na construção de uma casa importa em primeiro a força dos alicerces, com lições e teses sociológicas, tipológicas, psicológicas, medicinais, ciências estanques ou, na mesma medida, esoterismos, espiritualidades de pacotilha, masturbações.
 
Alucinatórias imagens que emanam do real ou da mente? Sem respostas, apesar do happy end. Concreto e abstracto respiram no mesmo ar, como os vivos calcam as terras de mortos. Assim como o Vasco Santana nota alma num candeeiro da via pública e lhe pede lume, e o factor álcool conta ou não conta, assim como o meu primo Paulo se apaixonou pela minha prima pois numa certa discoteca uma merdosa bola berrante o iluminou e o desvelou defronte dela no momento certíssimo, tal como a imagem cruel e persistente pode manter no manicómio o pobre desgraçado que inocentemente a vislumbrou, todos os protagonistas de “Phantom Lady” e todos os do lado de cá da tela demoníaca, vão depender de intensidades, ângulos, sorte dessa coisa fugidia, impalpável, fatal. Nada mais que luz.

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