quinta-feira, 11 de abril de 2013


Ilhas de Rocha

Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal; para morrer, todo o mundo.
Padre António Vieira




Quando se espera muito tempo por uma coisa, pode acontecer algo de extraordinário. Lembro-me de João Bénard da Costa ter citado assim, mais coisa menos coisa, como sendo de Robert Musil. Falava a propósito de medo, solidão, tempo a correr de mansinho, o desconhecido no chão que calcamos. Muito tempo esperei para sair dos Verdes Anos do Paulo Rocha, esse arejamento fresco e opressivo, essa Lisboa lírica mas desencantada, aqueles jovens tenros e tristes. Pensando bem, já dava para desconfiar dos caminhos por onde Paulo Rocha se iria meter para se achar, perder para se afirmar, os mais íngremes e profundos abismos olhados com a clarividência e a imperturbabilidade de quem já só por si está.

Os negros negros das cabanas, florestas e gentes e o branco branco dos céus e mares de “Mudar de vida”, o pudor em cortar abruptamente o plano cinematográfico e em estabelecer contra campos naturais à convenção da linguagem, o peso do movimento e da gravidade do que abana, a pressão e condensação compositiva, enfim, a luta entre o vivo e o morto, a fina pele entre ambos, a abolição da perene lógica, a reversibilidade em termos do absoluto, já dava para entrar, assim de sobreaviso, pelos ínvios traçados de “A Ilha dos Amores” e de “A Ilha de Moraes”.

E não querendo passar por cima de um momento de viragem consensual, que é “A Pousada das Chagas”, onde começam a colaborar com o cineasta nomes posteriores fundamentais como Luís Miguel Cintra ou Jorge Silva Melo, dou a palavra ao próprio Paulo que o pode dizer melhor do que ninguém: “Pousada das Chagas” foi uma encomenda caída do céu. A Fundação Gulbenkian tinha criado um museu de arte sacra em Óbidos e queria fazer um documentário sobre ele. Estávamos em 1970, e depois de “ Mudar de Vida”, em 1966, eu tinha deixado de acreditar no cinema clássico. A tarefa era urgente e não havia tempo para pensar. Enchi os bolsos com bocados de papel - citações de Rimbaud, Légende Dorée, Camões, Lao-Tse - e fui para Óbidos filmar conjuntamente com Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, pessoas de talento quase insolente. O que emergiu foi um “drama sacro” modernista, uma colagem de vozes, textos, objectos, espaços, pulsações. Corpos que ardem, que sofrem, que irradiam energia.”

Fica claro, e assim transparente e terrífico, que Paulo Rocha, o cineasta mas também personagem nos dois romanescos filmes-ilhas, persegue a sombra, o eco e as pegadas do viandante escritor Wenceslau de Moraes, 1854-1929, igualmente português de nascença, nunca como tentativa de restituição biográfica ou enaltecedora, antes como flanco de passagem para dimensões outras, distantes do racional e da cronologia, visível e invisível, este mundo e eventuais mundos adjacentes que raramente ou nunca se entrevêem no espaço reservado às vidas terrestres acomodadas.

“A pátria de um homem é o seu pensamento”, diz Paulo Rocha para a irónica monja no final de “A Ilha de Moraes”, nesse término apaziguado e cingido a raro sol nipónico, que Jorge Silva Melo diz ser tão límpido como Montaigne e o topo de uma gigantesca obra. Talvez seja essa luz coada a fragâncias ali únicas, essa densidade cristalina atractiva e desarmante que tenha chamado por estes dois portugueses que acabaram homens do mundo, viciados na insularidade expansiva. Que é o ponto de partida para o conto de viagens e de maravilhoso, desprendimento e obsessão, entrega e constante descoberta que “A Ilha dos Amores” é, tão feérica e revolucionária como a de Vasco da Gama ou a de Luís de Camões.


Se começamos em lusas terras, com triangulares ou quadrangulares relações concentracionárias, num dentro de latentes e consumadas castrações, em frontalidades e récitos que nada têm de teatral mas antes de pedido de socorro e almejada respiração, onde nem a retórica de Manoel de Oliveira pode valer aos sedentos de catalogação, a figura hirta, aflita mas de olhar infinito de Wenceslau vai reverenciar fatalmente a sua Vénus e restantes Deuses e impotentes, abandoná-los sem o fado do para sempre, acreditando na circularidade e tangibilidade de todas as coisas, para assim fazer disto o centro do filme e de todas as crenças e certezas que se largam. E então embarca, atrás de demónios, sangues, suores e noites que ainda não viu mas pressente algures.

Como num elíptico e paroxístico road-movie sem fronteiras nem barreiras, que calca todos os elementos conhecidos e redescobre outros, estamos em Macau, nessas águas prometidas e largadas, onde à iniciática música das palavras de Wenceslau se vem juntar essa correspondente música da escrita de Camilo Pessanha, a dos naufrágios, perdições, destroços. Que será a das mulheres amantes, a do nomadismo mesmo que pregado a um solo, a convulsa tinta da pena e o altar dos mortos ainda que vivos. Por detrás da estátua Camoniana, e com as respectivas famílias na penumbra, atira Pessanha a Wenceslau, que o repete como ladainha perene, “Procuradores dos defuntos e ausentes”. E nesse momento de resumo e altercação, descobre-se de partida.

E o díptico de Rocha torna-se corpo único e indivisível por só nos falar de um sentido e de uma procura, o mesmo ribombar à cabeça e ao estômago, num jogo de espelhos onde a ambição e o risco do realizador só tem comparação com o que está em causa, confundindo-se e irmanando-se loucuras, persistências, lúcidos arrojos. Rocha e Wenceslau, Camões e Gama, todos os rasgadores de todos os horizontes. “A mim, o que mais me fascina é a correspondência entre este filme e Os Lusíadas, porventura – não me matem – a única obra portuguesa com o mesmo escopo e a mesma ambição”, disse-o Bénard e só não o nota quem ainda não está disponível.

Porque ao Japão há-de chegar o escritor e o realizador, na Ilha concluída em 1982 ou na de 1984, dezenas de décadas antes ou no presente fílmico, para, entre cargos políticos e culturais ligados à pátria matricial, presenças femininas além eróticas, carnalidades e fantasmagorias, se estabelecer como o território ou o porto mais seguro, pacificamente, os cemitérios onde os amores irão parar e vaguear. Investigação detectivesca e afectos do coração, gesta mítica em comunhão com a persistência da memória e do documento, famílias e selvageria, num mapa concreto e íntimo levado para lá das chamadas últimas consequências físicas e mentais. E aí colagens, sequência, retornos, cosmos.

O-Yoné, Ko-Haru, esses corpos femininos frágeis e esvoaçantes, doentes, possuídos, fugazes, o Japão como ilha definitiva e ligação para todos os cantos da terra, a fusão total, voltas perpétuas. Há uma missão última ou uma larga ousadia do par Wenceslau-Rocha, que ressoa como vontade no começo de tudo, aquém pecado, a de acordar os mortos, mantê-los despertos, contactar com eles, continuar o diálogo, vida e morte como mesmíssimo estado e a proibição de um ao outro se impor. Não se conhece o termo ou o credo da ressurreição, não há elo que se corte na comunicabilidade ou nas partilhas.

Para a derradeira radicalidade existencial, humana, era preciso encontrar a derradeira mise-en-scène, numa prática e numa visão, ou língua, que extravasasse ou estourasse todos os pressupostos e exemplos. Para isto, ou para além disto, só o que apreendemos à partida por plano sequência poderia servir, num modo de tudo conectar, da terra profunda, aos solos, às águas, ar, etéreos. Ossos, calcinações, corações puros, lábios molhados, costas nuas veladas a azul seda e delicadas mãos entre pássaros e gatos, temperaturas díspares. Não permitir fuga ao invisível, nesse quebramento e nessa dispersão pela montagem que a usura perpetuou findado o classismo.

Se o contra campo pode ser montagem fora do plano, retalhamento do palco e tantas vezes pueril efeito de cinema, o utópico plano uno, como o céu ou o canto, interminável imenso azul ou voz a pungir constante de uma garganta, é o convívio de tudo o que podemos tocar ou abraçar de olhos com tudo o que pressentimos, o concreto e a evanescência. Almas a respirarem em cemitérios, a todas as latitudes, por isso tantas destas cenas em que a incomensurável força paisagística rasga qualquer tipo de cenário anterior, o vento e os verdes e pretos em ebulição, indomáveis magnetismos, organismos convulsos, onde nem um Mizoguchi ou um William Turner de resgate nos podem confortar, esse Jean-Baptiste Camille Corot das árvores e névoas e nuvens e almas de ocultos e rescendentes mistérios a que Paulo Rocha aproxima e responde com as suas matérias e técnicas só dele, poços encharcados nos mesmos sepulcros, telepatias directas e insondáveis, assim como todos os versos de todos os poetas, Chu Yuan ao lado de Virgílio e de Ezra Pound, símbolos, épocas, culturas, nações, espaços, teletransportes para trás e para a frente, que mais do que colagem modernista ou sequer artística, se torna o chamamento ao aqui e ao agora de todas as clivagens. Difícil falar-se de cinefilia ou do tal culturismo quando se corre em mares nunca antes navegados.

Excedido o varrimento espacial que o plano sequência no seu mais elevado grau potencia, chegamos a invenções pasmosas no que à profundidade de campo e à distribuição, aqui do lado da composição pictórica, podem permitir a lentes e a objectivas de cinema, num limiar técnico necessário ao fundo, reinventando abarcamentos até às profundezas e fundos do observável e do nítido, eliminando mesmo os inevitáveis achatamentos que sempre dobraram os enquadramentos no mais além, onde na fixidez ou na panorâmica podemos ver todas as escalas de plano possíveis, do mais que grande que se cola à tela até ao geral cósmico que se perde lá longe, milagres ou pestes do F.W. Murnau de “Aurora”, de Josef von Sternberg ou de Jacques Tati.

Paulo Rocha nunca procurou a perfeição pela perfeição, parece-me mesmo que nem “Os Verdes Anos” pretenderam isso, demasiado pulsional e derivado da caneta de Nuno Bragança, dos seus rasgos e do seu nervo, do seu amor e da sua cólera. O que se torna vivificante nas Ilhas, sobretudo nas dos Amores, é o constante equilíbrio assente em camadas desequilibradas, franzinas, flutuantes, fortes demais, fugidias, abruptas, numa perfeição global ou num arrebatamento formal eminentemente imperfeito porque jamais todas as forças opostas juntas poderiam entrar em harmonia.

Profunda fé das mais irracionais pulsões, numa complexificação de todos os paradigmas religiosos anunciados e cultivados desde a nossa remota existência, onde o misticismo não surge nem trabalha em pantanosos ou ilusórios terrenos, mas sim numa verdadeira prática e revelação no quadro de cinema feito tela disponível – disposição dos elementos no espaço conforme a dramaturgia, palavras, melopeias ou acabrunhamentos, ruídos, sons inclassificáveis, sinfonias ou atropelamentos, evidências, segredos. Onde a grandiloquência nunca é fim em si, pode sim ser abafada a qualquer momento por um inaudível suspiro.

“Porque só falas aos mortos? Porque não falas comigo que estou viva?”, é o que pergunta a inocente Ko-Haru ao muito velho e moderno Wenceslau que o maior Luís Miguel Cintra de alguma vez enformou,  isto próximo daquele brutal mas também generoso “nasce-se de manhã, morre-se à noite”, e que são pontos limites e resistência e guerra à cobarde linha recta e ao rio que corre ordenadamente da nascente até ao largo, sem nada por de volta, sem nada em cima ou em baixo ou nos espaços entre as coisas, medonhos subterrâneos onde tão amiúde rostos de morte nos assaltam.

Que significará então a cena da leitura de jornais anunciadores da morte do escritor lidas por uma jovem ao próprio? Talvez que a cultura e a construção do espectáculo efémero nada pode contra a arte ancorada à morte, a consciência do todo, o grande anel, perspectiva derradeira. Tudo muito longe de qualquer culto funesto, poética vinda como de jorrantes caudais impossivelmente ordenáveis, que tudo regam e atingem, mancham, talhados a acidentes e escarpas, inaudita corrente e inaudito movimento.

Aos estilhaços e ao inominável e aos novelos sempre se costumou virar o rosto, essa dita circularidade que poucos Wenceslaus e Rochas e Mizos expuseram e comprometeram, consciência aguda de que a vivência e a convivência uns com os outros num mesmo piso ou plano temporal, mortos ou vivos colados, pequena gota no balde global, é ínfima, mínima, insignificante em comparação com as eternidades em que estivemos e estaremos ausentes, isto há-de acabar e nem mortos como se convencionou dizer existirão, sem rasto de nós no que quer que seja um universo. Consciência aguda de que cadáveres regeneram e vivos destroem, das sementes às anátemas, num mosaico, painel, lógica e pincelada que comporta o mesmo tom.

Mosaico, como labirinto ou polifonia ou fogo, são termos que se colam perfeitamente ao projecto e à dimensão das obras em questão, tanto aos da vida como aos do cinema, onde nada surge tocado pelo pós-modernismo narrativo que culminou no vazio formal século XXI, mas sim duramente soldado, mais do que pela pura divisão em nove cantos, pelo artesanato e pelas suas vertentes encantatórias, como quem canta quimeras e as faz acontecer alegres, razão de ser para o canto VIII, essa febril barca de histórias para dormir, maldições alheias, Deuses na escala comum, barca falsa como os fundos quentes e as atmosferas denunciadas, auge da sugestão em favor dos excessos de impossível realismo de mundo e de impossível bravura.

Que se entenda a colagem não como mero bric-a-brac de disparidades mais ou menos próximas ou excêntricas, antes uma mesma idade e uma mesma presença em lugares contíguos e ilimitados, eternidade que permanece como auguro da genuína arte e do genuíno cinema, como homens feitos estátuas e mares de infernos, onde o romantismo e tradição não se digladiam, onde a anárquica conjunção é grito de responsabilidade tanto como de libertação, para uma moral avançada que se vai encontrar em grau mais elevado nos pioneiros, renúncia à sorte e ao escrito, valorização à luta e à imposição de cada um, que é o que Rocha nos diz que o teimoso e inconsciente Wenceslau foi. Nada superior a nada, espécie de alta profecia e de artesanato série-b, e recorde-se o canto do altar entre putas e fetos que, como uma fisga, é uma maravilhosa invenção económica. Se quisermos, tudo entra por aqui.

Ou, de Jorge de Sena, de quem se diz que teve para conversar em Moçambique com o escriva navegante, face a face, outro resumo ou o outro lado, para fechar ou para abrir mais, sem certezas: “Nada mais existe, nada mais tem importância, / para quem viu a treva nos intervalos das coisas.”

Daqui ao Proust Japonês e à infelicidade decorrente da insustentável felicidade, montanhas na lua, lições do supremo arquitecto e mergulhos no douro e no ouro temível de Agustina Bessa-Luís ou Camilo Castelo Branco, quedas livres do castelo ao tejo, senhores da guerra e hecatombes nucleares, hemorragias no ventre, cruzes de pixéis e profanações sagradas, digital sangrado, beleza feia, ritualismos viciosos, filmes incompletos e ideias impossíveis, épicas construções e destruidores fracassos, Adamastores entre portas, visionarismos invejados e tentações ao esquecimento, o mesmo voo sedento, sedento talvez de todas as coisas.

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