domingo, 21 de abril de 2013


A cada visão de “Out of The Past”, o meu Tourneur, há sempre algo de particular que se sobrepõe, que eu acredito que seja o que realmente interessa, o peso bruto. Já foram as minhas associações com os filmes molhados, pegajosos, lúgubres e cheios de panteras e demais bichos feitos para a RKO. O suado e coberto erotismo triangular Mitchum-Greer-Carson. Evidentemente a relação com a mulher fatal que o faz estar noite após noite a emborcar copos e a corroer-se para que ela dê de si. A inocência do compromisso com aquela menina muito nova e muito brilhante da pequena vila que se lhe entregará sempre e tudo lhe perdoará. Os ambientes retumbantes. Os fumos, luzes de faróis e perfume de tabaco. As sombras que literalmente esquartejam cada enquadramento, cada cena, cada sequência, tudo e todos. A forma como a malandra e impiedosa da vida dá baile aos destinos e ainda mais ao cinema, onde quem vier com rótulos de noir é porque ainda lhe falta experimentar muito. E Robert Mitchum, que é do que estou a falar sem nomear, sempre ele, o homem mais magoado e triste que o cinema americano me deu a ver e sentir. 

Aqui é Jeff, gabardina adejante que suponho acinzentada, milhares de cigarros para confortar e velar emoções, rosto desconsolado como noites de intenso breu sem luar. Um perdido irrealizado entre fortes convicções e fortes dúvidas, nada a ver com masoquismos mas antes com escritas no vento, que cai quando está perto do cerne, e que o vê fugir sempre para longe apesar da bondade e da persistência. Abre o filme e começamos por vê-lo lá numa terrinha minúscula junto a um rio em que se pesca, onde ganha a vidinha num posto de gasolina ainda mais minúsculo. Muito triste mesmo entre suaves colos e promessas reconfortantes. A coisa vai lentamente dando para o torto e sabemos e vemos que já foi um detective, desprendido e rigoroso, que longe deixou que éticas e profissionalismos soçobrassem ao olhar e ao chamamento de uma visão que lhe pareceu incandescente e parecida com nada.

Essa outra vida passada mas jamais apagada, esse deslumbramento escorregadio, chega-nos num suavíssimo flashback, quando nada ainda se tinha intrincado e ele estava supostamente com todas as cartas na mão. Mas Jeff é alguém da linha recta e do irremediável, onde perspectivas tortas e evasões só servem para atirar areia aos olhos do cerne. Tão solitário, mais sozinho mesmo quando acompanhado, e não se vai alegrar muito com noites mágicas nas areias tórridas da praia ou escapadas que poderiam ser o céu ou o orgasmo. Jeff igual a Robert Mitchum, uma impassibilidade convicta e desarmante. E a mistura de tempos narrativos não é virtuosismo ou despiste, é puro lamento estupefacto. Cada vez mais à nora, fechado, enigmático. E não chorando por isso, dos que bebe sempre mais um. 

A coisa enrola-se ou distende-se muito mais, mata-se e morre-se. A inocente loira suspira por ele, a aura e os contornos da fatalista tornam-se intensos que cegam, negra e de capuz maléfico pronta para o beijo mortal. Jeff engana-se nas caricias, amarra-se e deixa-se afundar em atmosferas, desejos e jogos que despreza. Não vai conseguir regressar de lá do fundo, nem ao menos voltar uns momentos a casa como no “The Lusty Men”, e os que ficam para contar a sua história jamais acederão a tamanha complexidade e perplexidade.

Porque Jeff, Mitchum, é dos que saíram do berço trágicos. Que o brilho do olhar e a sua profundidade não deixam enganar. Que não assentam nunca e sempre o diabo se ri dos planos para o futuro. Não se salvam nem se deixam salvar de um precipício aberto e prometido mesmo que o anjo mais terno lhe coloque um degrau estanque. Uma precisa sombra no meio de tantas que só um que outro privilegiado poderá demarcar nos instantes urgentíssimos. Sempre em queda livre sobretudo quando parece sossegado ou o riso se lhe escapa da obscuridade obscura. O inocente abatido pela mentira. Isto, em termos daqueles absolutos que nos engolem. 

E “Out of The Past” é assim, não me parece haver dúvidas agora, a longa e fugaz caminhada de um corpo e de uma alma prometidas cedo à campa ou a alguém lá muito de cima que o reclamou na origem. Dissolvência de uma amansada tortura onde a ficção não produz grandes efeitos. Por onde passa apega tonturas, alastra suspensões e provisórios. Felicidade ilusória e dura infelicidade. Talvez uma daquelas paixões, ou um pouco de cada uma, tenham valido a terra e a respiração. Talvez a fogosidade calada fosse superlativa. Talvez não.

E as sombras de Tourneur e do igualmente magnifico fotógrafo Nicholas Musuraca, as silhuetas e a indefinição, aparências ténues e esboços, a aspereza e a melancolia, as ausências de festa, são, não qualquer ilustração de coisa alguma, sim concordância e aceitação, algo como fidelidade, entre o mistério e o fundo daquele homem com o mundo que se projecta para fora, aceitam-se os espelhos da alma. Por via desta arte tão maleável e sensível que se desenha a luz, o cinema, quando certo e justo nada faz de preconcebido mas antes segue o pulsar e o movimento específicos, as nuances e tesouros de cada um mesmo que condenados. Como devoções a santos e a mártires. Escutares autónomos. Aqui é Robert Mitchum, que faz corpo e correspondência com Jeff, e Tourneur, com total dedicação e compreensão, soube vê-lo e apreendê-lo. Nada de mais alto se pode almejar. 

Gosto mesmo muito, também não o saberia dizer quanto, de Joaquim Phoenix, no seu melhor e com os melhores, o maior actor de várias gerações e um dos últimos herdeiros desse certo low profile, igualmente desconsolado e perigosamente contido. Mas, como me dizia um amigo meu, para afirmar uma personalidade e uma gravidade sem dúvida anacrónicas, onde reina o implícito e aquela indiferença desarmante, Phoenix teve a necessidade de desaparecer de circulação e de se fazer excêntrica estrela de música com direito a uma espécie de documentário, que mais pareceu alimento para o ego do que cicatrizante. Talvez poderes das tecnologias leves, das redes sociais ou dos agentes, talvez atracção superior a ele próprio, talvez nada disto. Em Mitchum, mais do que todas as mágoas e desilusões, o que está sempre inscrito em cada poro, cada expressão mínima ou falta dela, é a sua natureza irrefutável. O mesmo nos ecrãs como na vida, aposto sozinho, sem barulho.

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