sábado, 22 de junho de 2013
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Primeira experiência de Pedro Costa no vídeo de alta-definição, “Sweet Exorcism”, calmo e inquieto título em consonância às diversas forças contrárias que ali vão altercar, é cinzelado e fechado a ferro gelado, granito e espectros de vária ordem, que se tocados pelo orgânico existem também na catadura e possessão da morte. Desceu definitivamente, e sem volta a dar, a noite e a treva ao seu cinema e ao seu espaço, ainda mais do que em “O Sangue”, em que o dia e o par permitiam boas fantasias.
Fontainhas, Damaia, Gato preto, são bairros que se vão mencionar, e os planos iniciais serão por lá, onde todos os tempos, terrenos e míticos, já se misturam e soldam ao presente puro. Esse eterno presente que se desenrola com todos os fossos e declives, flashbacks e vigílias. Reconhecemos a galeria que clama por Ventura, como quem berra pelo progenitor, e a esses habituais rufias, órfãos e renegados, Deus e Rainhas, vai-se juntar, perfurando a noite como uma lâmina ou bola de fogo da cor da sua espada, um anjo motard não menos negro do que o resto. Como se vão aglutinar, antecipando já o que se vai passar a seguir, bestialidades que mais do que em comunhão parecem extensão de alguma coisa.
Ainda fora, entre os fundos vindos da Las Vegas de John Ford e os quadros incandescentes derivados de um Rubens, pelas expressões assustadas e pelo enevoamento dessa soturna Zulmira ferida de solidão, estamos instalados no território do medo. Até ao fim mesmo que com espantares doces e momentaneamente apaziguadores. Mesmo que com aquele sorriso de paixão e de elam amoroso igual ao de Straub por Huillet que na pior das fogueiras ainda consegue ousar para uma eternidade, sublime suspensão do terror, máscara à morte, porto seguro. Todos os brancos leites paternais ou todas as inapagáveis humilhações justificadas.
Porque destas referências de cepa dura e ainda com chão, neste que é o filme mais severamente clássico e livre de Costa, vamos entrar nas desmaiantes urgências de Otto Preminger, por entre macas, hipnoses e torcimentos que finalmente o aproximam a Tourneur, essas febres e abandonos sem ciência. Ventura encarcerado num elevador com um moço soldado que lhe pede ajuda e o acusa. Ventura fechado com as suas memórias e fantasmas. Com os seus filhos e os seus cadáveres. “Fechados com os mortos, em silêncio”. Toda a cronologia e todos os mapas se encontram num ponto biforcante e embatem quando a catarse e o irracional irrompem imparáveis. Finados os gritos de liberdade, queixas e preces, a carne e sangue vai-se tornando hirta e cada vez mais calada mesmo que em ebulição, ao contrário daquela estátua que vai ganhando vida. E ambos se confundem, misturam, correspondem-se e afastam-se, em ecos mútuos que iludem o som e a imagem e finalmente o cinema.
Jardim da Estrela, Rua Andrade Corvo, o Hospital Militar, enfim, vão-se fazer tão materiais e feéricos como os outros bairros já citados, tanto no contracampo aos olhares dos vários que estão naquele elevador, como nas frontais tomadas de campo a eles. Num resultado muito mais poderoso do que em “Juventude em Marcha”, pois possuído de uma espécie de efeito boomerang, regressa e fere. O que foi, o que poderia ter sido, orgulhos e desgraças, promessas e traições, velhos e inocentes. Num encerramento atordoante, onde a palavra concentracionário peca por defeito, Costa edifica uma découpage, uma sinfonia alucinatória composta por um coro de vozes do inferno ao céu e dos mártires aos assassinos, que é a cabeça de um homem e o túmulo de milhões deles, na qual a estátua que se metamorfoseia ao monstro, ao mimo ou ao mercenário, se torna ali reverso mas também total verso da liberdade e do espezinhamento. Como nós. São lançadas anátemas, mas também rituais cicatrizantes. Chora-se e canta-se.
“Ventura, lembra-te, tu também és um soldado”.
O elevador, aquela máquina do tempo ou câmara ardente, aquele caixão ultra metálico que se vai carbonizando, até às cinzas, só pode ter descido, descido, descido. O que aconteceu ali foi verdadeiro, não bastou o pressentimento ou a imaginação – e as gigantescas elipses são os lapsos do cérebro e da História- tivemos que ver e escutar os assoladores e os redentores, os mortos a dialogar como os vivos o fazem, tudo isso menos como metáfora ou evocação, mais como um híper realismo figurativo mas sensível das percepções, tremores, desconhecido. Assumindo-se rupturas e pactos e segredos aterradores, a violência insustentável surge na imagem limite do soldado de metralhadora em punho e de coração e ossos lacrimantes, é o grande lamento e paradoxo da inutilidade de tanto barulho e progresso e revolução.
“Sweet Exorcism” é também por isso o mais abstracto dos filmes de Pedro Costa, onde o devaneio terminal surge das três ou quatro coisas de ofício que o realizador faz por inteiro e sem rasteiras. Luz, som, corpos e a sua circularidade interior, modelagem. Que moralmente são ideia, olhar, mundo. Mão obreira e consciência feroz – como quem tem a delicadeza de não melindrar o desvelamento de um cosmo que um século depois ainda permanece velado ou, para fazer jus à poética que tudo assola, enterrado. No final, três planos, estamos a uma luz diurna, mas, e é antigo e se calhar seguro dizer-se: quando se passam certas barreiras, é impossível regressar. Não consigo ainda deixar de pensar que na meia hora que ali passou, Ventura, mais do que em interstícios funestos, tenha já só estado para onde se vai quando nos apagámos. This land is mine + We Can't Go Home Again. Outra galáxia ou extenso vale etéreo de uma bíblia? Salvos ou condenados e respectivos paraísos? Apenas uma visita ao hospital que cura? Só uma câmara assim precisa ampara, salva, escava. Corte abrupto para negro sobre a reacção de pantera. Sem Fim.
domingo, 9 de junho de 2013
O “Doctor Bull” filmado em 1933 por John Ford tem muito a ver com o Mayor Frank Skeffington do “The Last Hurrah”. Se Spencer Tracy era ali, no fim de uma era, apenas o homem dos enterros e das mortes, este Will Rogers, igualmente tão apaziguado e sabido, diz-se mais doutor de vacas e objecto de baixas maledicências alheias do que um verdadeiro homem da medicina. Mas, também como em Hurrah, o enquadramento de Ford ao individuo e ao geral, do grande-plano ao de conjunto, paciente e atento, despojado e preciso, vai mostrar a verdade e a essência que as turbulentas vozes pretendem apagar. Tão solitários mesmo que com tanto barulho por de volta. Solitários como hoje o trabalho sobre as escalas e o timing. Solitários como um James Gray, um Pedro Costa, um Oliveira. O cinema também serve para pôr ordem nisto, eterna balburdia clamante.
Se aquele bom homem diz que quem passou mal a noite foi o paciente que ele tratou e não ele por não ter pregado olho, que só parece ter um único remédio para todos os males e não sabe dizer que não, se esse bom homem passa as horas livres na casa de uma viúva a beber o que nem gosta – antidoto para a solidão - a conversar como na paz dos anjos e a citar poesia e bíblia, bíblica poesia, é porque precisa de um porto seguro na eterna balburdia. É ele quem o diz, e a sua rectidão, mais do que inesperada timidez ou pudor de velha guarda, vão sempre retardar uma união acordada algures.
Já se percebeu, como tanto em Ford, que estamos num mundo dentro do mundo, e ali onde o comboio só se detém para largar carga, onde os avanços não chegam e o insignificante ganha proporções devastadoras, vai ser o local propício para esse inigualável documentarista, na linha de Alan Dwan ou de Fred Wiseman, chegar ao cerne e às oposições eternas que desenham e sobrevivem o arco da humanidade. Para cada coração dourado como o da viúva ou o daquela loirinha dos telefones que é gozada por gostar de se efabular, um milhão de trastes que inventam e deduzem todos os males do bem que jamais poderão entender. Bull não vai pedir desculpas porque o seu coração não reconhece causas tais.
Por isso é essencial o fechamento ali de onde não se sai por nada, para ouvirmos todas as vozes e vermos todos os rostos do mundo que falta. O Ford minúsculo ou cerrado costuma ser o mais transbordante e o que tem mais fora dos campos. Da desconhecida New Winton americana até à minha aldeia Bracarense, o olhar e a cadência de Ford, retardamentos e acelerações, a sua altura e a sua respiração, que me parecem naturais e míticas no mesmo sentido do céu e do solo, têm os mesmos ecoares universais e sui-generis. Longa panorâmica que dá a volta à esfera. Fixa para vibrar mais. A noite onde nasceu uma criança e se perdeu um adulto. O dia em que se herdou uns chinelos e se partiu casado. A fama e o respeito de quem se permaneceu a si. Antes quebrar que torcer. John Ford. “Só há uma maneira de chegar ao mundo, mas mil de sair dele.”
Quero repetir-me, para me lembrar de que uma construção erguida no mais geral, essa Hollywood de certos códigos, dinheiros, normas e tradições rígidas, ainda para mais na Fox de Zanuck e companhia, é onde posso melhor ver e perceber, sentir na pele e lá dentro, toda uma nação, a sua complexidade e riqueza, violência e ternura, como todos os limites e respectivas fundações. Neste caso a américa por Ford, como em tantas outras vezes, como depois ou já aqui a África ou uma certa Irlanda, projectando-se assim para infinitos traçados, toda a terra. Claro que existiram os Lumière, que não são grande exemplo pois já ficcionaram como poucos, mas existiu um Jean Rouch, um De Seta, um Kramer. Esses que tentaram apanhar o fogo e a violência do real em primeiro grau, mas que, se chegaram lá perto ou chegaram mesmo, foi porque se aglutinaram firmemente ao que Ford, ou Griffith, ou Hawks, ou Vidor tinham feito com as suas revolucionárias experiências de vivência e descoberta - …complicado ou impossivelmente genuíno tentar discorrer sobre o que se desconhece ou nem se cheirou; igual aos que escrevem ou pensam ou executam no elevado empirismo de pijama ou de Deleuze. Só lá se vai em consonância à paisagem qualquer e à disponibilidade dos Rogers ou Coopers desta vida; esventrar carnes e almas com a máquina, esventrar milagres, terrores, risos e carinhos que tudo encorpam e enformam.
O exacto oposto da pornografia que se quer passar por acto puro, esse meter a câmara (ou a caneta), que serve e sempre serviu para proteger e para meter em ordem ou sentido, a dificultar e a meter mais pressão nas vidas de quem de tudo precisa menos disso. Assim como a vergar e vilipendiar esta crosta onde pisámos e encostamos e sobre a qual não temos a mínima chance contra, esta terra que nos deu tudo, nos amou e engolirá. Por isso, nada de mais certo do que os clarões de Ford em contraluz a um fundo falso na mais ousada das representações da morte. O gesto e a distância. Tudo o que importa.
Por que raio chamaram ou ainda chamam fascista a quem mais nos suportou? Bendita tradição.
segunda-feira, 3 de junho de 2013
(...) Walsh filma uma aventura bélica que é mais do que uma aventura bélica (como todas, não é? "A mais alta forma do drama é a do homem em perigo", Hawks...). E é assim que este filme pergunta e responde àquele engulho que tantas noites nos atormenta, a "meio caminho das nossas vidas": que é que um gajo anda aqui a fazer, "bicho da terra tão pequeno"?
E, se é verdade que os capitães de Abril viram Objective, Burma! antes de partir para as colónias, terão com ele aprendido a combater, a sobreviver no mato (sei lá, não fui à tropa)... Mas terão, sobretudo, aprendido a ser solidários. E se calhar foi por isso que um dia foram para um monte perto de Évora e redescobriram a resposta que este filme dá à mais nocturna das perguntas: "Um gajo tem que fazer qualquer coisa".
Ó CAMINHO DE VIDA NUNCA CERTO, por Jorge Silva Melo
E, se é verdade que os capitães de Abril viram Objective, Burma! antes de partir para as colónias, terão com ele aprendido a combater, a sobreviver no mato (sei lá, não fui à tropa)... Mas terão, sobretudo, aprendido a ser solidários. E se calhar foi por isso que um dia foram para um monte perto de Évora e redescobriram a resposta que este filme dá à mais nocturna das perguntas: "Um gajo tem que fazer qualquer coisa".
Ó CAMINHO DE VIDA NUNCA CERTO, por Jorge Silva Melo