sexta-feira, 21 de junho de 2013


Primeira experiência de Pedro Costa no vídeo de alta-definição, “Sweet Exorcism”, calmo e inquieto título em consonância às diversas forças contrárias que ali vão altercar, é cinzelado e fechado a ferro gelado, granito e espectros de vária ordem, que se tocados pelo orgânico existem também na catadura e possessão da morte. Desceu definitivamente, e sem volta a dar, a noite e a treva ao seu cinema e ao seu espaço, ainda mais do que em “O Sangue”, em que o dia e o par permitiam boas fantasias.

Fontainhas, Damaia, Gato preto, são bairros que se vão mencionar, e os planos iniciais serão por lá, onde todos os tempos, terrenos e míticos, já se misturam e soldam ao presente puro. Esse eterno presente que se desenrola com todos os fossos e declives, flashbacks e vigílias. Reconhecemos a galeria que clama por Ventura, como quem berra pelo progenitor, e a esses habituais rufias, órfãos e renegados, Deus e Rainhas, vai-se juntar, perfurando a noite como uma lâmina ou bola de fogo da cor da sua espada, um anjo motard não menos negro do que o resto. Como se vão aglutinar, antecipando já o que se vai passar a seguir, bestialidades que mais do que em comunhão parecem extensão de alguma coisa.

Ainda fora, entre os fundos vindos da Las Vegas de John Ford e os quadros incandescentes derivados de um Rubens, pelas expressões assustadas e pelo enevoamento dessa soturna Zulmira ferida de solidão, estamos instalados no território do medo. Até ao fim mesmo que com espantares doces e momentaneamente apaziguadores. Mesmo que com aquele sorriso de paixão e de elam amoroso igual ao de Straub por Huillet que na pior das fogueiras ainda consegue ousar para uma eternidade, sublime suspensão do terror, máscara à morte, porto seguro. Todos os brancos leites paternais ou todas as inapagáveis humilhações justificadas.

Porque destas referências de cepa dura e ainda com chão, neste que é o filme mais severamente clássico e livre de Costa, vamos entrar nas desmaiantes urgências de Otto Preminger, por entre macas, hipnoses e torcimentos que finalmente o aproximam a Tourneur, essas febres e abandonos sem ciência. Ventura encarcerado num elevador com um moço soldado que lhe pede ajuda e o acusa. Ventura fechado com as suas memórias e fantasmas. Com os seus filhos e os seus cadáveres. “Fechados com os mortos, em silêncio”. Toda a cronologia e todos os mapas se encontram num ponto biforcante e embatem quando a catarse e o irracional irrompem imparáveis. Finados os gritos de liberdade, queixas e preces, a carne e sangue vai-se tornando hirta e cada vez mais calada mesmo que em ebulição, ao contrário daquela estátua que vai ganhando vida. E ambos se confundem, misturam, correspondem-se e afastam-se, em ecos mútuos que iludem o som e a imagem e finalmente o cinema.

Jardim da Estrela, Rua Andrade Corvo, o Hospital Militar, enfim, vão-se fazer tão materiais e feéricos como os outros bairros já citados, tanto no contracampo aos olhares dos vários que estão naquele elevador, como nas frontais tomadas de campo a eles. Num resultado muito mais poderoso do que em “Juventude em Marcha”, pois possuído de uma espécie de efeito boomerang, regressa e fere. O que foi, o que poderia ter sido, orgulhos e desgraças, promessas e traições, velhos e inocentes. Num encerramento atordoante, onde a palavra concentracionário peca por defeito, Costa edifica uma découpage, uma sinfonia alucinatória composta por um coro de vozes do inferno ao céu e dos mártires aos assassinos, que é a cabeça de um homem e o túmulo de milhões deles, na qual a estátua que se metamorfoseia ao monstro, ao mimo ou ao mercenário, se torna ali reverso mas também total verso da liberdade e do espezinhamento. Como nós. São lançadas anátemas, mas também rituais cicatrizantes. Chora-se e canta-se.

“Ventura, lembra-te, tu também és um soldado”.

O elevador, aquela máquina do tempo ou câmara ardente, aquele caixão ultra metálico que se vai carbonizando, até às cinzas, só pode ter descido, descido, descido. O que aconteceu ali foi verdadeiro, não bastou o pressentimento ou a imaginação – e as gigantescas elipses são os lapsos do cérebro e da História- tivemos que ver e escutar os assoladores e os redentores, os mortos a dialogar como os vivos o fazem, tudo isso menos como metáfora ou evocação, mais como um híper realismo figurativo mas sensível das percepções, tremores, desconhecido. Assumindo-se rupturas e pactos e segredos aterradores, a violência insustentável surge na imagem limite do soldado de metralhadora em punho e de coração e ossos lacrimantes, é o grande lamento e paradoxo da inutilidade de tanto barulho e progresso e revolução.

“Sweet Exorcism” é também por isso o mais abstracto dos filmes de Pedro Costa, onde o devaneio terminal surge das três ou quatro coisas de ofício que o realizador faz por inteiro e sem rasteiras. Luz, som, corpos e a sua circularidade interior, modelagem. Que moralmente são ideia, olhar, mundo. Mão obreira e consciência feroz – como quem tem a delicadeza de não melindrar o desvelamento de um cosmo que um século depois ainda permanece velado ou, para fazer jus à poética que tudo assola, enterrado. No final, três planos, estamos a uma luz diurna, mas, e é antigo e se calhar seguro dizer-se: quando se passam certas barreiras, é impossível regressar. Não consigo ainda deixar de pensar que na meia hora que ali passou, Ventura, mais do que em interstícios funestos, tenha já só estado para onde se vai quando nos apagámos. This land is mine + We Can't Go Home Again. Outra galáxia ou extenso vale etéreo de uma bíblia? Salvos ou condenados e respectivos paraísos? Apenas uma visita ao hospital que cura? Só uma câmara assim precisa ampara, salva, escava. Corte abrupto para negro sobre a reacção de pantera. Sem Fim.


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