sexta-feira, 23 de agosto de 2013
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Na zona mais negra de uma floresta negra, mesmo
por aí, sobre luzes e correntes aceradas e plutônicas, é possível virar o
vento. Robert Mitchum foi dos que mais pisou, cheirou e se queimou nesses espetros
de naturezas que reagem ao íntimo e à temperatura do homem. Em “Bandido” começa
por ser o típico fanfarrão imperialista e orgulhoso de uma barbárie ganha,
entrando no México de 1916, a ferro e a fogo letal, para entre os habituais
negócios de armas emporcalhados e lançamentos de granadas que jamais fazem
tremer o seu essencial copo de rum, regressar a uma infância que transformará o
seu olhar e apagados horizontes.
De fama feita, esse tal Wilson que é perigoso e
nada confiável ainda mais por misturar os negócios com o prazer, vai olhar por
um acaso uma Lisa que naquele antro passa por uma aparição e o é, de chapéu à
rapariga de baloiço vermelho e fitazinha de orvalho cor-de-rosa pela delgada cintura,
e não será o mesmo. Ela também já não suporta o marido tão sujo como o
pretendente mas que a trata como esposa e não como mulher, e demais a mais, o
hábito já os mumificou. Wilson ou o próprio Mitchum encara-a no momento
seguinte e mostra-lhe a casa dos divórcios. Quanto às diversas facções em jogo,
essa cambulhada de amigos, inimigos e cínicos de toda a raça, vão confluir para
uma mudança impossível como que atraídos por uma beleza estranha de inesperada
no espaço e tempo menos propício. Tipicamente Fleischer por estes anos.
Não é um Western como não é imagem histórica ou
denunciante de qualquer género. É uma progressão fabulesca que deixa a pérfida
e o horror para nesse caminho subterrado apanhar o milagre inusitado, e mudar
da fumaça e preta labareda inicial para outro tipo de brilho, alvo e luminoso
como os rostos do par que se encontrou no Dantesco caldeirão, entre cordas nas
gargantas e covas já nomeadas. Uma cura, uma missa ou um exorcismo, sei lá onde
estamos às vezes…, que alastra ao filme desde o primeiro plano agreste e
chamuscado a fazer lembrar os planos agrestes e chamuscados do Mexicano Hugo
Fregonese, para se transformar numa ode aventureira mesmo que debaixo de pólvora
à maneira de Raoul Walsh ou De Mille ou então para cavalgar mais…lembrei-me do
inimitável “One-Eyed Jacks” do cineasta Marlon Brando, e não só pelas ondas
transbordantes e os brancos maculados por brancos. De tabernas manhosas e
hotéis corrompidos como generais ou mercadores dali, para pântanos luzentes,
lagoas magicadas, praias-fronteira Rimbaunianas e pertenças de amor caligrafadas.
Por entre balázios e canhões de todas as espécies, temos sempre a certeza que
aqueles seres que divindades ou insondados de outra ordem decidiu acolher, não
sofrerão danos de maior que não corações partidos, sufocares a contrarrelógio,
corares de primeiro encontro.
Que bailado inaugural aquele da câmara em
sequência para trás e para a frente que nunca é virtuosismo mas antes confina
toda a ambiência e motivação. Num scope que jamais pensou no inimigo televisão
que lhe reduziria e humilharia as escalas. Ou em operações cosméticas que
limpassem o que aqui é carnagem orgânica e convulsa, anti pixels, escorreres labiais
e camufladas libidos jactantes à tela. Onde o meio corpo de Mitchum é do
tamanho de uma selva ou de um arranha-céus de hoje, onde uma majestosa igreja como
qualquer barroquíssima ogiva sensual tão imensa e sensual como o desejante
clamor de vida e prazer da enrubescida e renascida bela. Tudo o resto que pretenda
manchar aquelas primaveras, ressurreições e expressão puramente liberta da
forma, vai directamente para os trilhos do desprezo, de proeminência e idade contrária
ao sangue vital que explode em cores e sons.
terça-feira, 20 de agosto de 2013
Uns óculos caídos sem explicação na cena do crime. São eles que vão fazer vacilar o crime perfeito. São eles que tudo ensombrarão no último fôlego de uma longa caminhada sobre um abismo de nada. E Deus. E Orson Welles, possuindo um advogado sem escrúpulos e sem piedade e se calhar sem sangue, que é o mais violento ser deste pós-apocalíptico circo, vai fechar o vórtice desenhado por Richard Fleischer em “Compulsion”, de uma forma e com uma lábia que é inútil traduzir em palavras que diminuam a sua expressão e jogo de cintura. Pode-se dizer que a pressão que mete em quem o escuta, ao dizer que o mal não vai matar o mal, que o poder não se pode comportar como as bestas que praticaram o acto inominável em causa, bestas defendidas por ele, ou, talvez o cúmulo, que levá-los à forca seria regredir brutalmente na concepção e busca de uma humanidade melhor. Discurso, ética e estética que está ao nível do que Chaplin fez em “The Great Dictator” e que será o apogeu do Welles actor e do Welles encenador, medonha caveira carcomida a insónias.
Super-Homem, Nietzsche, indiferença emocional, gelo, desprezo, superioridade, relativismo filosófico, liderança suprema, Moisés, arrogância legítima, virtudes incompreensíveis ao rasteiro…e cada vez mais supremos até de tudo estarem desprendidos. Judd e Straus, o paranoico e o esquizofrénico, querem estar para além ou para aquém do bem e do mal, do certo e do errado, sem cauções de sanidade judicial ou medicinal. Querem-se fundir num e praticar o mal de cada vez pior, horrifico, limpo, inconsequente. Aglutinação de carnes tenras que compreende o sensível, o moral e, de maneira mais aparentemente soterrada, o sexual. Fortíssimo filme erótico de uma carga e tensão a rebentar as bordas do scope em constante desequilíbrio. Ora abarcando, ora isolando lá pelos cantos mortos.
Sem paixão, sem amor, sem desculpas. Judd cultiva arrepiosos animais empalhados, Strauss brinca com manhosos ursinhos sorridentes. Judd tenta ser mais perfeito do que o mestre sodomizante, mas acaba vergado às confusões e sensações que os olhos e o roçar numa moça loira produzem. Uma espécie ou um concurso mesmo de Supra-Deuses que só finda quando o primeiro for ao tapete ou à ultra referida guilhotina. História passional entre dois homens em que o reflexo é história de horror sem causa. O que falhou e os levou ao encarceramento eterno que se revela mais cruel do que a corda que os esganaria de vez?
Uns óculos que vão baralhar e atrofiar tudo, alibis, argumentos, nexos, personalidades? A formosa Ruth fala na infelicidade do paranoico. O Wilk de Welles vai por caminhos patológicos, advogando por amor. Mas neste cruzamento ou atamento entre o “Rope” de Hitchcock com os vampiros libertinos e sugadores que Abel Ferrara pôs à luz do dia em “The Addiction”, a escorregadela ou a falha que se detecta mesmo mesmo no ressoar derradeiro, aqui a coisa é estendida e distendida e reinventada para lá mesmo do último apito do árbitro, é a sentença privada e nocturna de Welles. Muito mais sentenciosa e fatalista do que a do oficial, e que reza, no idioma original, assim – “In those years to come you might find yourself asking...if it wasn't the hand of God dropped those glasses. And if he didn't, who did?” Pumba, The End.
Não querendo puxar a brasa a nenhuma sardinha, muito menos ter certezas num palco onde elas estão fora de serviço, faltou aos dois putos espertos e mais ainda ao cabecilha o que faltou ao artista de “Armored Car Robery”, sendo esta uma rima perfeita ou um chafurdamento mais fundo - o respeito ou a simples consciência de uma possível transcendência, ilógica ou lógica à sua maneira, isto para não usar ou deixar em elipse metáforas ou habitantes divinos. O que transporta este filme para outro degrau ou patamar é precisamente a elevação desta questão ou desta incógnita, infinitesimal ou colossal, a estrados metafísicos, em consonância com todas as verborreias que escorrem no ora metálico ora viscoso preto e branco. Fora ou além da esfera e do peso dos corpos, do dinheiro, da posição social. Em amplitudes que justamente ao evocarem o contrário do mal só para ele caminham e o largam, besta na selva. Mal difuso que se entranha e não se isola do bem. Terror da beleza e beleza do terror, como também lá se diz.
Irracional, inaudito, insuperável. Mente que não calámos, alma que não acedemos, rol de eventos que corre imperialmente, fazendo-nos ajoelhar quando e onde quiser. Fora do que podemos tocar plana o que não podemos tocar. Ou ver. Sentir. O que nos foge ou seca como a água sobre a pele quente. Como pergunta terminal do que andamos aqui a fazer, para quê, porquê. O que Fleischer largou às feras é a impossibilidade da cura. Reconciliação. Abraço. De um modo tão amplo e circular que só podemos responder como responde aquele Straus das certezas todas – de boca cosida.
Confrontar se faz favor, para fins de outro tipo de inteligência, os dois tipos de tratamento da realização, isto é, antes de Welles e depois de Welles, que invade e tudo modifica num rompante sereno. Serenidade filha-da-puta. Duas partes distintas, duas respirações, duas pulsões. Como se na primeira não houvesse nada da ordem da crença e estivéssemos a flutuar e a pairar num crispado vácuo. Cenas e planos que se chocam e entrechocam, durações e ritmos convulsos, perigoso atrito, olhares desencontrados. E na segunda fossem precisos os caminhos e os saberes, por exemplo, de uma découpage que permita dar luta ou emplacamento àquele Altíssimo ou àquele Diabo que suga tudo do campo. Olhar encontrado, escansão, movimento e significâncias tão claras como negras. E no embate do claro e do negro estará o tom geral. De onde o choque dual produz o que lá está. Sem resoluções.
domingo, 18 de agosto de 2013
Johnny Hawks, o “The Indian Fighter” que André
De Toth soltaria por um Oeste Americano mais contraditório do que nunca, é,
esquecendo o pleonasmo, tão solitário como o filme. Findada a guerra civil, vai-se
convocar nele uma outra mais lata e intemporal, que acarretando todo o sangue e
miséria da anterior, mete o genuíno amor e o coração desarmado ao barulho, e
isso não se aceita. Sobe a cortina e Hawks está, como ele diz ironicamente, do
lado dos civilizados, não se privando de espiar uma índia a banhos, aproximar-se,
beijá-la à força que ele sabe que só o é por causa dos preconceitos que os
prendem. Presos os dois e por conseguinte todo o território e mais além, numa
farsa calada perfeitamente suja e amoral. Até hoje, é o desengano para o plano
capitular que renova a boda.
Hawks representa incredulidade e pasmo nas suas
deambulações opostas, nos seus interesses, na pertença. Abre fogo para os dois
lados, beija raparigas brancas e mulatas, fia-se em ambos os chefes e em ambos
os credos, parece querer tudo. Não para de correr e ofegar por este caso que
parece sempre perdido. Mais achas para a fogueira: quando contraria aquele fotógrafo
que pretende a documentação e a abertura da ebulescente região aos forasteiros,
dizendo-lhe que adora esse deserto como o corpo de uma mulher sua e por isso
não o quer partilhar, para ainda assim o encorajar a fazer o seu trabalho. Ou,
no cume bélico, o soldado que perde a compostura e cuspe o que todos sentem mas
ninguém conclui: que ao invés do Fighter ele é mais um The Indian Lover. E sim,
Johnny Hawks, no seu estilhaçamento, parece sempre ter como origem, referência,
destino e túmulo os não civilizados. Com a pinta de um descomungado e o
temperamento maldito.
Pode-se e deve-se aproximar esta obra aos avisos
e à paixão sem freios de “Broken Arrow “ de Delmer Daves, ao balanceamento do
Rod Steiger de “Run of the Arrow” ou a plenitudes efabulatórias do Monte
Hellman que sonhou “Amore, piombo e furore” - a cena da união das vontades,
corpos e lábios de Martinelli e Douglas, essa apoteose luminosa e ruminante,
renovado ou primeiro baptismo, é toda a génese de uma poética raríssima; Porque
da extrema sentença de Hawks ao chefe Sioux, advertindo-o para longas guerras, massacres
intermináveis e memórias danadas, até à elevação e grandeza estética em
comunhão com os bons sentimentos do plano de conjunto que sela a união para o
exterior, onde a bênção de John Ford é recebida nos píncaros, não esquecendo o regresso
ao rio com a caravana que passa ao largo, belos bichos escondidos do resto, estamos
diante do rolo episódico e longe da Odisseia com requiem ou clímax avesso, definitivo.
Destrinçar de um só nó do novelo ou fio de teia
que jamais se limpou, onde certos ousados sem medo e de sorriso ao canto
conseguem escapar. As guerras civis nunca acabaram, que aqui se proclame uma
retirada e um sereno inspirar na turbulenta respiração geral, tem tudo a ver
com a não rendição do homem através de um cineasta que nunca se rendeu. Nem quando
esculpiu corpos de cera ou estátuas geladas, essa passividade, eternidade,
alquimia, romantismo. Para dar a volta por cima. “I decline to accept the end
of man”, disse outro valente daquelas zonas. Continuamos aqui, meus senhores.
sábado, 17 de agosto de 2013
“(…) Vítor Mature, tão injustamente apelidado de
canastrão, protagonizou, no Arizona, um sábado violento de assaltos sangrentos,
que nunca mais me saiu da imaginação. Fleischer outra vez em Violent Saturday.
E, nos dois filmes, era também a glória do scope a afirmar as virtudes
cardeais, essas que nos faziam dizer como o cinema era grande.”
João Bénard da Costa
Cinema grande é o que realmente não falta em “Violent
Saturday”, largura que raramente assim se instalou em território tão íntimo e
nada convencionalmente épico, profundeza na absorção de uma galeria de
personagens, que mais uma vez no cinema de Fleischer, de tão variada, lacunar e
complementar, parece meter, em caldeirão, uma possível enciclopédia da existência
e a sua lengalenga. Virtudes cardeais que vão relacionar e fazer corresponder
em desmesura, dando razão à personagem viciada em fotografia que só fala em
dimensões e perspectivas, homens queimados pelas mulheres e mulheres que se
queimam por homens. Uns que não se declaram, outros que se declaram demais.
Quem olha nos olhos e quem vira a cara. Os que apagam o fogo e os que nele se pelam.
Pela perspectiva fora apanha-se a fiada toda, e
daí a importância, tal como no Western de 59, da relação entre o subtilíssimo
Mature e o seu pequeno filho. O pai que se queria desenvencilhar das misérias
do seu pai e o filho que queria ver no pai o herói que alguns têm. Heranças de
pais que passam para filhos, em perda potencialmente infinita. Questão de
remissão dos pecados do mundo por violência como a final que secamente explode
na tela? Onde até quem se entregou a um Omnipotente, falo de Ernest Borgnine e
da sua família Amish, tem de fechar olhos e espetar gadanhas num instante
incomportável ou num instante de salvação suprema? Fleischer decidiu terminar este
conto ou o seu mosaico com várias crianças e o seu Deus, depois de tantas
entregas clamantes e volúpias retardadas. Alguma coisa quererá dizer essa
triangular composição, para o bem que está facilmente implícito ou para um novo
e necessário perpetuar do mal. Ambiguíssima imagem final.
Mosaico, grandeza, quadros fixos que se aguentam
num único ponto de vista pela abanante perscrutação, coordenadas unidas de
sentido ou não-sentido e deslizar de um olhar num espaço ao jeito de um grande
tabuleiro universal. Zappings e suspensões. Confluências lógicas e
impossibilidades de reconciliação. Falei no final violento, falo no entrecruzar
de opostos e no passo minúsculo da diferenciação. Não estamos tão longe uns dos
outros, parece-me sussurrar uma espécie de Deus ex machina surpreso, que é essa
câmara ousada e tão esclarecida que na sua digressão estabelece a montagem
dentro do plano uno, que só quebra por razões que não detém ou pelo excesso que
nos finda. Bocados de falas que ficam no ar e regressam, presenças que saem de
campo para depois invadirem campos alheios, geometrias que não se aguentam nas
canetas pela bondade ou pérfida circundante.
Vertiginoso scope que percebe, de modo natural e
sem desculpas, que há que ir até ao fim. Mesmo que as linhas limites se vejam
côncavas, retorcidas, deslustradas, deselegantes. Que as dimensões e ângulos
entrem em guerras de escalas, proporções e hierarquia. Que se perca ou esfume o
fundo que nos conforta. Que um rosto ou uma verdade extrema tenha que conquistar
o direito de ir ao grande plano sem que seja a retórica determinista a fazê-lo. Toda a
compressão de um dia a dilatar e a detonar a narrativa da causa e do efeito,
para se tornar pintura abstracta, tal como a questão da herança resolvida. O
cinema de RF cada vez mais condensadamente fragmentado, até a umas certas
panorâmicas com split screen lá para a frente.
Epígrafe de JBC que nada tem de saudosismo ou de
retrocesso, antes todo o progresso e modernismo que a evidência, a filigrana e
garra da posta em cena deste verdadeiro realizador afirma. Alguém que está em
sintonia com um passado de um Renoir ou de um Pabst, meter o infinito no quadro
cinematográfico e permanecer silencioso, mesmo que a combustão seja instantânea,
para assim ousar voos nunca tentados. E lembro-me agora de uma espantosa
introdução de António Mega Ferreira (pelo menos ali, grande crítico de cinema)
à visualização e construção do outro mundo em que assenta “O Fio do Horizonte”,
o nosso Vertigo e o nosso Borges, quando dizia que Lopes e Tabucchi não
precisavam dessas linhas da moda e dessa cacofonia barata que, não disse ele
mas pensei eu, muitos prodígios, jovens inconscientes ou “mestres”, têm
necessidade de forçar em nome de uma suposta evolução que só me cheira a atrofio
mercantil, carnal e formal. Enchimento mais perto de um espectáculo multimédia
ou do design pós-moderno do que instrumentos de um trabalho e a sua urgência a
exercerem potência.
“Violent Saturday” é um grandioso fresco, sempre
ao terreno nível. Valsa intemporal, sinfonia total urdida a um só instrumento leve
e ordinário, talvez de sopro, para ir em busca de todo o peso. Pintura, música,
dança funesta e ávida, poesia, quotidiano, por aí fora, volumosa dramaturgia intraduzível
que todo o grande cinema deseja e lá toca.
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
O Det. Sgt. Walter Brown que o estoico Charles McGraw agarra em “The Narrow Margin”, o Fleischer de 1952, é uma continuação do Lt. Jim Cordell que o mesmo também fez em “Armored Car Robbery”. Só que nesta produção RKO com orçamento de varredor de estúdio, o seu braço direito de ofício morre mal abre o filme, o que é mais grave quando depois ficámos a saber que na larga vida que a fita tenta alcançar, o Det. Sgt. Gus Forbes, assim se chamava ele, estava perto da reforma, já não costumava dar o corpo às balas pois a rectaguarda servia a sua experiência, bem como entre os dois a questão era mesmo de pura amizade, corpo uno que tinha visto coisas incontáveis, relações familiares como laços de sangue que não se quebram. E tal vai assombrar o Walter Brown que desde o início nos surgiu como o aço, desprovido de emoções extravasantes ao crachá, chegando o seu sistema nervoso a entrar em atrofio quando a corrupção que é a sua anátema lhe bate à porta e ele vacila, em nome da redenção dos amados defuntos e pela comodidade dos que ficaram.
De Chicago a Los Angeles é um esticão jeitoso, e para quem vai fechado numa carruagem de um comboio ainda não moderno, com a morte do amigo ainda nas órbitas impressa, protegendo testemunhas que meio mundo quer abater e estonteando-se e fragmentando-se no que se revela como a desmultiplicação imparável da maldade humana, não vai ter tempo de fechar os olhos, respirar como deve ser, meditar caminhos seguros. Por aqueles vidros que se volvem espelhos do mal e reflectem mortalmente o seu vírus, na exiguidade de um espaço que a todos promete engolir depois de consumir, pelas metamorfoses desprovidas de qualquer resquício de escrúpulos de cada um que defende a sua, todos envoltos em vapores e poções vorazes e conspurcadas, Walter Brown vai descer ao fundo da sua solidão e do seu desamparo como, improvavelmente e num daqueles diabólicos boomerangs que a vida por vezes inflige, encontrar ou desencontrar o seu firmamento. Entre outras coisas - e dando razão ao amigo que dizia que não se deve generalizar nem com aquele tipo de mulheres com que eles se iriam meter, nem com os trapaceiros que as conquistam - os carrascos viram heróis ou heroínas e os inocentes tornam-se indecifráveis e nebulosos – constatação de que a posta em cena, carregada de ilusões ópticas e replicantes, refracções e imagens cindidas, é tanto o fulgor do cinema como arte dos múltiplos sentidos e leituras, como o “baralha e torna a dar” que é o eterno reinício desta porra orgânica.
Naquela negra serpente a vapor que reduz o mundo a pó ou à sua nitidez mínima, Fleisher mete a bandidagem toda, a sua origem e germinação, o seu potencial, o seu contrário, as cartas todas. Assim que a tragédia primeira se dá, e que vai ser o móbil moral e a engrenagem motivacional até final, toda a encenação é drenada, secada e cinzelada a carvão, desprovida de artifícios musicais ou pontuação evasiva, para se tornar numa reportagem sobre o discernimento do homem ferrado e encarcerado num cosmo ou no ralo de todas as possibilidades e géneros. Estado directo onde tudo desenrola no presente, onde o “tema” é exactamente o que acontece. Horizontes fugidios e confluentes. Reportagem que se estanca ou se abana, com câmara à mão e rodopiando e tudo quando tem de ser, ou que, como um Hitchcock de um “North by Northwest”, contempla e se molha com uma nascença do amor no reduto mais esquisito e nada recomendável. Espaço que no geral se pode comprimir, como no grande-plano arejar. Nada esperem e na esquina mais suja no ponteiro mais banal e com o tempo errado, tudo recomeçará, tudo começará.
A caminho da negra cratera final e já vendo a areia da cova acenar delicadamente, WB aplica uma guinada que deve ter virado ao contrário as molas, parafusos e restantes alicerces deste abarcante e paciente complexo que nos atura. O resto, neste fabuloso filme negro e estelar, são os segredos perdidos da desaceleração e aceleração perene a que a existência e o seu entendimento se votam, onde o cinema pode ser feliz; a sugestão e abstracção que na estrutura e no percurso mais definido se ousa atingir, nada a ver com os supostos experimentalismos de hoje, nesses absurdos dilatamentos e durações vagas que se envaidecem em si mesmas, antes sabendo que a luz tapa e aclara, mata, morre e revive, franqueia e bloqueia, estoura e se desvanece. Antes da retórica, da psicologia, do que for, a luz. E que como ela que possibilita o cinema e o milagre, tão efémera, cada corpo e cada alma é um outro, sistema ou organização de leis próprias não estanques que não para de espantar e subverter. Monstros ou anjos ou casualidades. Animais de um Tourneur em embrulhos correntes. Fim, silvo de promessas.
segunda-feira, 12 de agosto de 2013
Assim como em “These Thousand Hills” a balada
brotava ao invés dos típicos acordes ou americanas do western acabado, em “Armored
Car Robbery”, que abre os fifties, Fleischer esquece toda a panóplia plástica e
simbólica do filme negro ou do policial, com mulheres mais evoluídas e redondas
do que as fatais e cigarros queimados sem aura, para ir em direcção a uma
fisicalidade e a um magnetismo que irá sempre em ebulição ao longo do muito
diferente que fará. Seja na “The Girl in the Red Velvet Swing” e na sua tórrida
lírica, ou num dos que mais fala com este, “The New Centurions” ou o desossado cagufe
da solidão.
Nesta explanação e análise de um roubo planeado
até à exaustão por um cabecilha tão obcecado como o Sam Jaffe do “The Asphalt
Jungle” ou o Robert De Niro do “Heat”, esse Dave Purvis tornado maníaco por um William
Talman consumado, tanto retira as etiquetas da roupa como mata quem tiver de
ser por uma finalidade superior - o não deixar rasto nem memória. Ou seja, não
dar margem ao incontrolável, à surpresa, ao que dele não dependa. Missão que é
uma teia aritmética de queda, com mulher em disputa.
Fleischer começa por se instalar em vários
lados, a ver como funciona o campo e arredores que escolheu. Ao lado dos ladrões,
dos polícias que os caçam, dos bastidores da ordem e nos bastidores de uma
bailarina que trocará as voltas e os princípios a quem julgava não mais vacilar.
Nunca impondo uma autoridade esmagadora. Costurando o suposto lado documental e
descritivo com a força de uma encenação sem qualquer tipo de desvio ou digressão
que não a essencialidade do que está em centro e progride, varrendo tudo numa
intensidade que se julgaria impossível nos seus sessenta e sete minutos, chegando
à abstracção e à impunição pelo lado mais dúbio e emaranhado – que é esse
destino ou acaso que jamais se conseguirá domar, o chão a diluir-se, os olhos
raiados de sangue a embaciarem-se, sendo o abate final de Purvis abençoado com
o ouro que a todos e tudo corrompeu.
Traições ou desapegamentos intoleráveis, trituramento
dos meios em relação aos fins, desistência da honra, vingança grave como a
morte. E já falo do polícia para qual Fleischer se volta a partir da morte do
comparsa. Aqui, como depois nos Centurions, só se deixa de beber café quando se
devolve a bala prometida. Num realismo onde o aro do enquadramento se apega à
matéria nervosa que se dispõe em frente, para lhe sondar, captar e espalhar
todas as energias vitais e mortais. Numa pressão e com uma tensão que o liga
por exemplo a um Aldrich explosivo, mas talvez ainda mais desafeiçoado e não
consciente do poder da linguagem, antes ligando seres e coisas como uma relação
imprevista e sempre nova para o mundo e para o cinema. Nos instantes decisivos,
do tudo ou nada, o olhar da máquina fixa-se, frontaliza-se, vectoriza as
geometrias e os suores, o sólido e o fugaz, e oscila inauditamente com o que se
derrama. Espanta-se, mas finca o pé.
Eis assim um realizador tão implacável como os
inconscientes ou por demais conscientes que desafiam a circunferência de Deus
ou de nada; e que mantendo sempre a verticalidade, tomates no lugar certo, não
se trai a si mesmo nem à raça que abraça, devolvendo a um tempo a razão a toda
a gente, e disparando o fogo que conserva. Para o certo imponderável, a certeza
certa. De todos os lados. E uma campa de notas, aquele que levou a riqueza para
a morada final - fico com esta imagem.
sábado, 10 de agosto de 2013
Richard Fleischer é um homem de muitos géneros, o que também significa que é de muitas vidas. “These Thousand Hills”, um dos que recentemente me impressionou pela singularidade e tradição com que se instala no Western, é resumidamente a história de um rapaz que perenemente molestado pela fraqueza de um pai que segundo ele se acobardou atrás da Bíblia, se torna um arrivista mesmo antes de arribar, que por conveniência esquece a mulher que mais amou e que mais o amou. Mata, rouba, corrompe-se. E que certo dia a certa hora, num lancinante lampejo de honestidade própria e de rasgar de coração, como que se redime ou justifica para lá do vacilante happy end e do que já não vamos ver.
Filme onde a profundidade de campo e a largueza de espaço se corresponde com a profundidade psicológica e a complexidade moral de Lat, o cowboy que enterra os escrúpulos tão fundo que para os alterar vai passar pelo seu cabo das tormentas. Ou a complexidade do espaço a debater-se com a desmesura emocional. Com Lat defronte da casa da verdadeira amada chamada Callie ou nas extensões intermináveis e poeirentas do Oeste, não se vão esbater os fundos ou permitir desfoques, ampliando-se sim tantas vezes a perfeição do estúdio e acentuando-se a limpidez, para dentro da horizontalidade que impera, também Lat sentir que o não acobardamento leva os níveis de verticalidade da consciência a um grau que a maior parte não pode aguentar, para bem da sanidade e para mal da puta da loucura.
Dentro das quatro partes que enquadram e pela disposição de infinitas variáveis lá por dentro, vão surgir troncos que o martirizam e não o deixam dormir, ramos que espetam e o sangram, complots com as atmosferas cálidas e glaciares no mesmo perímetro. Mas também autênticas diagonais, vagabundagens e ímpetos daquele cavalo negro de sangue puro, que mesmo assim magoa muitos menos do que as feridas abertas e sempre mais um bocado arreliadas que se cravam nos carrascos, na sua forma bruta e respirar solto que enche de incompreensão cada um que o tenta domar. A liberdade, em certos sítios e por certas alturas, costuma ser um privilégio só à custa de suprema vontade autónoma, que pode ser uma forma de bela violência. Tal colosso escolheu Lat para o cavalgar, e isso diz mais qualquer coisa, pois esse animal de helénico esculpimento parece ser o mais fiel, um dos pêndulos de uma bondosa balança que se equilibra com o sorriso ou lágrimas de Callie. Nada a ver com os outros ziguezagues das balas que já substituíram as flechas índias, das provocações dos imbecis consumados e da alastrante lei e justiça ambígua.
Callie…Lee Remick…fora de tudo…que é, tem de se escrever aqui, a alma mais alva e libertina, escandalosamente alva e escandalosamente libertina, que dá todo o dinheiro a quem lhe deu o que ela nunca tinha sentido, proporcionando-lhe a via alternativa ao Pai mas também a rampa da tragédia, que lhe abre sempre a porta apesar das humilhações, que espera, fica, e finalmente arruma a equação da maneira mais viril. É antigo dizer-se que a sombra da desgraça costuma pairar subtil e dissimulada no rosto e no olhar das coisas mais virgens e insuspeitas. Mesmo que Callie, para mim, jamais se tenha manchado.
Como tenho de me perder na cena mais exemplar, triste e saudosa, pois é aquela que resume toda a desistência da verdade em favor do status, mesmo que o referido acerto dos ponteiros na hora e no momento agudo seja como um canto de anjo no purgatório, um mimo de Deus, um perdão. Momento só comparável aos conselhos francos de um velho sábio que transporta esses dons na dorida cara. Que é a cena da caixa melódica infantil, da troca de vestido da menina linda e excitada para o encontro perfeito dos seus sonhos cor-de-rosa, do pentear-se ao espelho, do crescendo de excitação… e do menino cowboy que foge corado e que depois voltará devagarinho, pedindo desculpas sussurradas. Espaço agora interior ou ninho que é um oásis dentro de outra coisa vasta e fatalmente escorregadia, a sociedade. Onde finalmente a harmonia compositória de todos os elementos e as linhas não quebradas dão a paz e a impossível perfeição duradoura. Porque esses momentos duram pouco, efémera duração inigualável, mesmo nas discussões e misérias, brotando luzes serenas, apaziguadoras, resplandecentes. Podendo aqueles dois seres manietados e à deriva saberem o que é a contemplação livre, promessas, eternidade segundos. Esse oásis, nesses entretantos, transfigura-se no centro do mundo.
Tanto balanço e crispação, sem que o eixo mecânico e o foco sensível desabem alguma vez para o descontrolo ou excesso, melodramático, virtuoso ou outro. Uma mão e uma inteligência arquitectónica, um olhar imperturbável, instintos apurados, para um todo cruelmente erigido. Eternas batalhas com a pressão que rodeia e com o afunilamento da agulheta…Arte do espaço, arte da relação nele. Do tempo que dele se abarca. E do estremecimento das conjugações. Nada mais humano.
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
Foi há pouco tempo que uma valente e risonha
professora de uma academia de música de Lisboa tão sui generis como ela, ao
introduzir a duas crianças igualmente valentes e risonhas uma canção que tinha
tudo para ser antecipada como a famosa “atirei o pau ao gato”, os precaveu para
uma decisiva variante. Acompanhada ao violino, a letra trocava o pau por
beijinhos, bem como o morreu pelo sorriu, pois, segundo a compositora, naquela
casa ninguém atira paus a gatos.
Jacques Tourneur, o tão enorme como discreto
realizador que na Hollywood mais preciosa se meteu solitariamente nas penumbras
e nos balcões dos tascos, longe das famas e das estatuetas douradas, também se
meteu toda a vida com gatos, panteras e demais bicharada, e acabou praticamente
a sua carreira a render-lhes homenagens, como cartas de amor em forma de
enaltecimento cinematográfico. Para Tourneur houve o claro e o escuro e os
constantes deslizes do homem e do seu interior para tais zonas inesperadamente,
como houve Greer ou Mitchum impossivelmente belos e tragicamente lânguidos, mas
também, deixando-o igualmente tão fascinado, toda uma larga gama de gataria e
sucedâneos, esses felinos que se dizem esquivos e manhosos e que por isso se
costumam contrapor aos cães.
“The Comedy of Terrors”, de três anos antes da
sua reforma, em Portugal curiosamente chamado de “O Gato Miou Três Vezes”, para
assinalar os momentos em que esses vociferares estiveram em consonância com a
morte que é o ganha pão do estaminé que o acolhe, termina com um desfilar tão
sensualista, apurado e misterioso desse bailante gato que por lá andou em cima
de cadáveres ou a aturar a bela que não teve possibilidades de frequentar a
escola da música, que atinge a mesma moral da referida professora e da sua
criação – quando se julgava que após serpenteantes deambulações e matreiras
expressões a tampa de um sarcófago se fecharia sobre ele e sobre o filme…zás,
este salta cá para fora e vai viver mais uma das muitas vidas que dizem que eles
têm. Que Tourneur lhe dedique todo o seu saber e toda a sua incomum luz, todas
as complexidades e maravilhas de tanto ano de ofício, e que o gato lhe pareça
retribuir com o seu contemplar sedutoramente ameaçador a desvanecer-se, tudo é
comoção.
Aparentemente sob o signo da comédia e da
leveza, é algo onde, à semelhança de “Stars in my Crown”, se ressuscita
inacreditavelmente e se tomba sem controle. Pintado sobre auroras, crepúsculos
e entre noite e dia à hora inidentificável; fumarado como envolto em tons
vibrantemente pálidos, azul pálido, prateados e róseas pálidos; de infinitas
gradações pálidas e faiscantes como as trovoadas cortantes, tudo nos avisa,
entre operatismos de cinco tostões e
vertigens assexuadas, que há entre nós alguns que tudo fazem pelo vil dinheiro
ou pela vil bebida que mata sedes e desilusões, sem pestanejarem, entre orgulhosos
júbilos e legitimados por uma moral autónoma, consumada como as leis da praça.
Entre o expressionismo germânico que
provavelmente sai das entranhas de um Peter Lorre que me surge tão maquiavélico
como o seu comparsa, embora vidrado em abundantes carnes e suores femininos que
o dominam, e as surreais atmosferas abstratas e baratas de Roger Corman e
quejandos que se disseminam a partir Vicente Price, ou seja, cruzamentos de
feéricos fogos magnéticos e repelentes, chega-se a uma súmula de género mas
também a bem mais do que isso, pois o já referido vale tudo em prol do whiskey
ou da preguiça, assenta sobre o principio filosófico e pragmático de que o mau
se julga o bom e de que metaforicamente ou realmente há coisas que se pagam
caras, mesmo que da tumba alguém se levante para ajustar contas.
Olhares. Mãos. Caixões reutilizáveis. Enterros e
desenterros. Animação. A vida depende de como se olha e para onde se olha, e o
cinema que dela depende, muito mais. Essa grande sinfonia entre a lente que são
os olhos da câmara e os outros que se encontram nas pessoas que filmam, e
Tourneur como um dos mestres incontestáveis entre encontros de mecânicas e de
almas, ângulos e perspectivas. Por isso mesmo o olhar vago, supostamente
desprendido e desinteressado de Price a jogar com a estudada compaixão de
Lorre, nesse cemitério de cartão que abre a obra a toda a física e metafisica.
Dali olha-se para a morte da bezerra ou faz-se contas à vidinha rasteira. Eles
os dois mais o Karloff louco, que anda por ali dissimuladamente a vigiar até
conseguir aplicar pela calada o golpe de misericórdia do seu regozijo, adeus
rival parece dizer sem dizer e sem olhar, ainda com James Whale na mente e nas
tripas. Mas, tentando ver bem, no término uns fecham-nos para eternidades ou
para qualquer amanhã e outros resistem. Num olhar, como num efeito Kuleshov,
mil significações.
Ainda nesse plano, as mãos de Lorre que seguram
o chapéu do lamento, para se contraporem às que vão violar portas, túmulos e
sexos alheios. Como Lang nos fez ver, também estas raramente se escancaram de
primeiras intenções. Para de tão inocentes pegarem em pás como se pegam em
armas, martelos assassinos, provocarem sufocações, arquitectarem cofres
derradeiros que vão regressar à oficina ou morgue, darem os golpes do baú,
vulgos gamanços ou trocas de sítio sem arrependimento. Lorre que dos calabouços
regressou e de outros piores tenta ao longo do filme sair. Price que as torna
gadanhas do belzebu e vira o feitiço contra o feiticeiro que é ele. Por pouco
se mata, por muito se deixa a derradeira morada, todas as lógicas do avesso na
arte mais ilusória e mais baixa das oficiais sete.
Primeiro
já referido cenário do filme que lança toda a ética, estética e poética
(ó inescapáveis considerações!?!?), tudo o que um Edward D. Wood Jr sonhou e
tudo o que um Tim Burton ousou com o filme que para ele fez em 1993. Entre outros
milagres, avanço a galope do tempo, do “realístico” e da realidade, via verde
aos delírios e ao irracional do lado de cá e do lado da arte – para se fazer
das duas uma coisa só, chegar pelo excesso à transparência, trilhar e
concretizar sem amarras e sem normas os arco-íris possíveis em sonhos.
Sonorização/audição estratosférica, no abafamento do comum, do esperado e do resolutamente
em campo, para assomarem em primeiro ou grande plano vozes, coros e reinos
normalmente esconsos e soterrados aos preguiçosos ouvidos. Por isso aos agudos
da desajeitada artista, os vidros partem mesmo, as velas derretem e o gatinho
tapa os ouvidos, para já não lembrar que até os mortos se queixam. Sem
desculpas e sem multas, os movimentos verdadeiros. Que é um fecho ou um quase
fecho de uma carreira – ainda faria coisas indispensáveis ao todo – à altura da
liberdade, do saber e da bondade dos grandes velhos que fizerem no final das
suas vidas o que nunca foi feito nem será repetido. Ford ou Oliveira, Bergman
ou Hawks, José Álvaro de Morais mas também Richard Fleischer.
Animação ou bonecada, como quiserem - para não
meter à guerra as gravuras seculares, o mais prosaico rabisco ou a mais fina
pintura - a fazer as pazes ou o pleno com a chamada imagem real. Os temíveis animais
que outrora se metamorfosearam para deformações e bestialidades inaceitáveis a
merecerem a encenação mais inaudita e consagrada só às divas e galãs de outras
núpcias com o divórcio há muito carimbado. O genérico a acolhê-los com a mesma
ordem de importância, nessa estilização com o máximo de reconhecimento das
vinhetas que apanham aquela coisa sem importância que faz o sal de cada um. Uma
Cleopatra que representa todos. E as saudades de tamanhas ousadias. Um João
para cada Joana, só para baralhar mais os ditados, um Tourneur para mil
fantasiosos ou criativos do agora tecnológico.