segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Das desoladoras primeiras imagens de um mundo que já está para lá de um horroroso estertor, até aos defuntos sinos que não param de picar e de repicar lamentosamente a cada qual, o universo de “Mouchette” é insuportável pela falta de esperança. Falta de esperança nos homens, falta de esperança até, e é o máximo de pessimismo, lucidez e crença de um cineasta realmente único, no poder incontrolável e soberano da natureza. Ou de Deus, sendo ele a natureza ou sendo o ininteligível solista que paira acima.
Realizado em 1967 logo após “Au hasard Balthazar”, tudo parece ser prolongamento da via-sacra e do silencioso apagamento geral que aí se desenrolava, sendo a pequena menina possuída e acossada um ramo da mesma árvore do burro, partilhando um mesmo escrito. Corpos e almas penadas em solo indubitavelmente infértil, onde o terreno vai letalmente apagando possibilidades de transcendência, do celestial ou da eterna graça religiosa que o Francês sempre perseguiu inseparavelmente.
Primeiras imagens de caçadores e de presas, de inocências e de culpas, libertação e danação. Terra seca, ar queimado, nem resquício orgânico. Elementos e carnes estéreis, infecundas, consumidas, de onde os desejos e os sexos em campo ou nas cinzentas elipses parecem ter a frigidez de uma mulher consumada. Sonoridade frouxa, retraída, resignada. Onde paira a graça, essa visão, esse arrebatamento, esse mistério, é a questão, como disse Alberto Seixas Santos na sua apresentação do filme na Cinemateca Portuguesa, posta em centro e em definitiva vez, com uma gravidade e sem horizontes possíveis como talvez nunca tenha sido colocada. Cosmos sem a possibilidade da ressurreição ou da nascença, continuo a citar Alberto Seixas Santos. Sem a certeza e logo a tranquilidade da natura pôr ordem no caos através da reciclagem, do fecho e do recomeço do grande anel, próspero ciclo ou qualquer ciclo, enfim, onde a obstinação e força do homem está na lama, com contra-campos perfeitamente corroídos.
Uma coisa sem graça é então desgraçada, Mouchette é desgraçada, os caçadores e o pai são desgraçados, a vestimenta das árvores, da tempestade e do resto é mais do que desgraçada. Mais sombras, trevas e desamparos do que em “Pickpocket” ou do que no “Un condamné à mort s'est échappé”. Uma terminal vertigem face às fechadas portas de saída ou de recomeço. Só a mãe de Mouchette, com toques de fertilidade e salvação, parece estar do lado da reencarnação e dos bons sentimentos, e morre. O resto, já findou, e os sinos não param de guiar à campa. “Mouchette” são oitenta e dois minutos de luto. Luta perdida que não permite assunções divinas ou ordinárias, resgates, milagres à Capra ou Rossellini, dialécticas à Kiarostami ou qualquer tipo de tese teórica sobreposta ao cerne.
Como aguentar esta bifurcação, a urgência paroxística ,este cúmulo, o sufocamento, como transpô-lo para o cinema de formas e com formas inauditas? Afastamento da representação naturalista dos actores e da forma como se apreende e devolve o espaço, montagem agregadora e construtora de amplas e fugidias significações além ficção e narrativa causa com efeito, estabelecimento de palcos e de relações nele que, se afastados do metafórico e excessivo teatro, são redefinidos pela ideia e logo pela prática do singular cinematógrafo como ciência e arte da revelação e do mistério. Onde se desenham e descobrem coisas como que pela primeira e única vez.
Perdem-se rotinas e quotidianos, reconhecimentos e protecções, expressões caseiras ou ritmos seguros. Como se perdem grandes-planos ou a fina decúpagem unificadora. Para se ganhar ou para se chegar, pois sempre na vacilação inequívoca, a uma descrença que só pela máxima crença e, não tenho dúvidas, pela máxima fé, se pode confiar a um aparelho que mostrando, escancarando e ampliando com luz e com som de feitiço, consegue meter no mesmo plano todo o seu oposto e ambiguidade. Superfícies e fundo, descrição e clímax, aquecimento e coda. Tudo na cara e tudo no negro. Esse negro que alguém fez tombar perpetuamente como o fogo de um inferno, negro que Bresson não permite que a linguagem consumada vulgarize, diminua. Ao extremo de absurdo, o extremo de posicionamento, de resposta. Não como simples desregra ou simples radicalidade, mas um acreditar profundo, austero, alvo, anacronicamente ridículo hoje. Sem corrupção no meio da corrupção. De olhos e ouvidos bem vigilantes, letais.
Descolamento das matérias, luzes desconhecidas, terror do real. E o terror da impossibilidade de escape do nós ao meio. Deve ser preciso ir ao fundo da máquina como ao fundo de uma alma se diz que um homem chega em instantes últimos ou efémeros, para que tão evanescentes coisas falem, queimem, gelem, matem ou vivifiquem. Griffith, Dreyer, Bresson, Reis – uma terrível implicação, uma ainda mais terrível cumplicidade. Eis o que as personas e fraudes Bressonianas ou os metafísicos empenhados não perceberam nem têm coragem. O plano final vai, em insistência, da aterradora impossibilidade à consumação calada, do abstrato à morte que o engole. Morte, que foi, passo a passo, o destino da pouca luz que ainda possibilitou, tremeluzente, a derradeira impressão.
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