“Wee Willie Winkie” poderia estar gravado na
lápide Fordiana como uma das suas máximas provas de integridade e obstinação.
Deram-lhe a infanta Shirley Temple para explorar e ele arrancou-lhe uma
complexa performance de descoberta e estupefacção em território incendiado,
desde a sua aparição maravilhada à janela do comboio até ao acto supremo da
conciliação do inconciliável de que ela foi ali móbil – homens e as diferenças
entre eles. Deram-lhe torrentes de exotismo e de luz apetitosa e como sempre ele
limpou todos os apêndices e escavou dramaturgias eternas, belicosas, perigosas
como as iniciações. O nível de progressismo vai ser da mesma cepa daquela
mulher que no “Forte Apache” prefere que o seu marido seja feliz no seu palco
de origem, o da guerra, do que na casa familiar que desde há muito anseiam e
que lhes é entregue de bandeja e recusado mais rapidamente. Ou, ainda nessa
mágica mas já nublada chegada por trilhos, quando se fala nos verdadeiros Índios
que naquele solo nascem e deslizam, eles que vão ser sempre colhidos e
impressos como tudo o resto, vassalos da rainha, sentimentos ou pedras. Isto,
esta mesma nobreza, compreensão ou lição para cada um, décadas antes da
sinfonia total de “Cheyenne Autumn”.
Uma áspera jornada e a constatação do que dela
se desprendeu, pelos olhos limpos dessa Priscilla que abandonando as bonecas se
torna a WWW da poesia e das armas. E que as vai abandonar não por qualquer
assomo de panfletarismo por parte dos argumentistas ou dos produtores, antes
porque chegou ao soterrado coração de um homem antes de ter chegado à sua fama
terrestre. E assim pôde falar-lhe e expor-se imaculada e emocional, sem as
manchas que os tolhidos adultos da sua facção lhe teriam incutido se o acaso ou
os anjos das harpas não a tivessem acarinhado primeiro.
Fins do século dezanove, Índia. Priscilla chega
lá com a mãe e vão-se instalar no lado Britânico que é o seu. E com a protecção
do seu avó, esse comandante supremo que vai ser igualmente moldado pelo
inesperado. E encontra, mal tal paraíso nos começa a ser desvendado, o Khoda
Khan que os dela dizem ser o chefe rebelde. Que está disponível para puros
modos. E pronto, como em qualquer Ford, dizer a sinopse é não dizer nada. Porque,
para explanar poucos exemplos, Victor McLaglen é fundamental no papel do
sargento que a vai orientar e tanto endurecer como enternecer – e a sua morte
abafada é um dos momentos mais estarrecedores desta arte da sugestão e do
sagrado, onde o máximo de beleza se conjuga com o desprezo pela
irreparabilidade a que nós, adultos sabidos, já não podemos chegar e por isso
chorar como quem sorri. Ou o enamoramento da sua mãe por quem não deve, pois no
provisório político e humano já desembarcaram as regras constantes. Enamoramento
que proporciona essa fuga para o baile celeste que antecede o sangue malvado e
que nos seus brilhos ameaçados atinge o sublime grave que raramente entrevemos
numa arte que demasiadas vezes escancara rudemente.
Para poder referir já, porque o filme tem de ser
fruído e sugado no seu movimento contínuo e boquiaberto, o frente a frente
entre WWW e KK, que desde o primeiro olhar se encontram e nunca mais se traem,
nunca mais se largam, relação de amor que estará já para lá do paternal que
dela nunca soubemos, instantes de pureza onde o crescido guerreiro volta a
perder composturas e regras e a minúscula criatura se assume com a dignidade e
os ideais muito antigos que podem ser gregos ou romanos ou anteriores. Passagem
para a imagem do possível impossível ou, só para crentes, vice-versa, conseguida
com a combinação mais inaudita de factores e temperaturas, por isso já para
além do sublime, esse plano suavíssimo e na paz dos Deuses em que o revolucionário
estende a manta do berço e se retira para confraternizar com o outro revolucionário.
A terra, nesse encontro, juro que tremeu. E a câmara, para se manter paralela e em sentido, que esforço!
Ali, todos revolucionam, depois dessa
estranhíssima elipse que abandona o espectáculo e o fogo-de-artifício para permitir
a queda de outro artifício julgado irremovível. Que é um sonho de união a que
depois os televisivos ajuntamentos globais, as igrejas supostamente modernas e
universais ou o cinema temático ou documental jamais chegou perto. Elipse
eventualmente chocante que me disseram nascida do célebre rasgar de páginas
desse realizador que sempre quis andar para a frente e marchar como tais
soldados. Se assim foi, glória ao mau feitio e à insurreição. Se foi propositado,
glória à construção, dialéctica ou abstracta ou as duas.
Ali, essa Shirley Temple que os fuinhas pensaram
ter lançado às feras por dinheiro e continuação do circo, teve a mão desse
imperturbável Americano Irlandês, e resolveu a mais intrincada equação e
aritmética com o mais jovial raciocínio e instinto. Mundanos joguetes, malditas
estratégias, pueris batotas anuladas por um jogo ou um sopro límpido e exposto.
O resto deste fabuloso filme, e que resto…, são os habituais temperamentos e
efusões indescritíveis pelo humor ou pelo amor, duas leves crianças num mundo
de bruteza ou uma vela de Dreyer que vilipendia a massa negra da noite, pelos
nadas que são tudo, uma paisagem e o homem nela, o rasgar das lógicas
comerciais e cinematográficas a favor do curso insubstituível da vida. Essa
respiração que em Ford é sempre solta e ousada pela força interior, do mais aplanado
para o cume ingreme, de onde a lógica exterior e a vontade vão pelos caminhos
da reposição. Um regresso.
Lindo...
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