“A atracção pelo abismo faz esquecer o perigo da
morte que é, dentre as coisas prometidas pela vida, a única que está
garantida.”
Manoel de Oliveira, em conversa com Antoine de
Bacque e Jacques Parsi
“The Green Berets”, segunda experiência de John
Wayne creditado como realizador, aqui ajudado pelo homem dos visual effects
duros e subtis que foi Ray Kellogg, dificilmente será alguma vez visto sem o
boca-a-boca do filme pró-guerra, fascista ou intolerante. Mais coisa menos
coisa, para quem se estiver a borrifa para endeusamentos cegos ou solenidades
com pés de barro ou pelo contrário considerar Wayne um deles, tudo o que os tão
inteligentes a partir dos laptops e do rabo estatelado na poltrona disseram
sobre Cimino, Coppola, e mesmo Ford, Hawks ou Walsh, ou, para ir aos tempos das
penas e da tinta, Griffith e companhia. Tornando-se tais discursos com
pretensões superiores de uma maldade e simplismo tão perigoso do que aquilo que
acusam. Ora aqui está uma daquelas não-obras-primas que importam, formalmente
montanhosa e bruta como os prepósitos, precipícios e ar que habita,
emocionalmente escancarada e viva demais como as verdades complexas, ardente e
esconsa e sem os filtros das uniformizações de qualidade de embrulho. Por vezes
um pouco tosca, por vezes sincera em demasia pois feita pelo homem convulso e
não pela fria máquina em série, a falha com as suas misérias ao invés da
perfeição rumo ao declínio; às vezes tão elegíaca como os mais elegíacos
clássicos ou orações.
O Senhor David é racista, o Senhor Raoul só mostra
o lado Americano e dizima o resto, o senhor Michael pisa orgulhosamente
cadáveres alheios. Duke, o conservador e republicano furibundo, o tal que vota
Goldwater, é, neste libelo que vai espraiando as sedes e destinos de quem pela
terra desfilou, antigos testamentos e testemunhos ou 2001 Odisseia no espaço,
corpos nus em terras virgens até zeros e uns revolucionários, o homem que
comanda os boinas verdes treinados para matar, esses que como se diz na partida
apenas respondem por si em nome de algo superior que os abarca e os reduz. Assim
posto, vamos segui-los ao Vietname que funciona como palco pulsional e natural
da sobrevivência, confluência de paixões sem volta a dar e de ódios sem
remetente, onde vão ser eles mesmos. E de repente a data 1968 deixa cair os
contextos e o caldo politicamente comprometido para se transformar na mais
duradoura das nossas questões. Destruímo-nos para quê, porquê, como e quando,
estas e mais as dúvidas soturnas que nem sabemos pôr.
“The Green Berets” é um filme no qual o chefe
bebe whiskey com o subalterno à hora negra da morte deste, um homem perdoa a
uma mulher a sua perdição velha como o resto, uma criança é adoptada vezes sem
conta até à meta da eternidade. Que fecha a cair-do-sol quente e jovem,
alaranjado, efabulatório, não desistente. Mas, sobretudo sobretudo, que é tão
articulado pela criança sem lados ou manhas que pulula solta como o vento ou as
balas, como pelo jornalista a que David Janssen dá corpo e permite
maleabilidades que adensam toda a dramaturgia da irresolução que é o centro nuclear.
O seu confronto com Wayne e consigo decidem tudo e é a imagem que se solta
flamejante deste movimento infernal. No seu primeiro mano a mano o jornalista
interpela de lado o guerreiro, diz-lhe que não acredita na necessidade de
invasão. O guerreiro pergunta-lhe se já lá esteve na arena onde tudo se decide.
Perante resposta negativa quem a deu nem merece mais diálogo, antes um virar de
costas e ignorância com causa. Um é muito fácil falar no conforto, exactamente
como os críticos de cinema ou especialistas em assuntos gerais acima referidos.
A coisa vai evoluindo, o jornalista vai à guerra. E vê corpos a capitularem
derradeiramente. No segundo confronto em grande-plano entre os dois, a coisa já
pia fininho, já se respeitam frontalmente. O que vais escrever nesse teu
jornal? Se escrevesse o que queria perdia o emprego. Reconhecem-se na
circunstância e nos ecos longínquos percebem-se, dão a mão, o guerreiro até lhe
oferece trabalho. No terceiro momento significativo de Jansen, já está liberto
da sombra da experiência e do calejamento que até ali o rebaixou ao seu lugar
merecido, e assim mesmo é ele que decide entrar no pelotão. Que se percebe
nesse momento sinceridade própria. Lição produtiva onde se pensa que elas não
entram.
Em tão grandes conflitos e tensões e antes do
The End crepuscular, que resolução, resultado, prognóstico? É o plano-geral já
isolado do rosto magoado de Wayne, que não sabe para onde mas sabe que tem de
caminhar, que pode fornecer uma luz redentora entre os escuros esverdeados e os
dias queimados que a paleta do imenso Winton C. Hoch acorda com a natura e com
o Deus inerente que vai quebrando o devastador silêncio. Rosto sem qualquer
resquício Heroico ou sobre-humano mas antes opacidade e ferida inevitável.
Campo de todas as contendas, dialécticas, certezas e contradições. Impenetrável
e revelador, de onde uma imagem-afecção de Gilles Deleuze não teria qualquer
sentido. E, segurando-o, um corpo envelhecido, pesado, sem a elasticidade
ziguezagueante de um Ethan Edwards, o que agrava tudo ainda mais, para lá de
limites e idades para se ter juízo.
Num lado dessa cena, a uma panorâmica ou a um
travelling, depois de um piscar de olhos e uma respiração funda, toda a força
da raça e todo o amor em potência. Uma nova mão mais tenra aguarda o aperto. E
há que aclarar que este palavreado é só o sentimento de uma prespectiva de quem
nada disso cheirou, neste caso este pobre escriba, contra uma prespectiva que
mais do que cinema ou arte é feita abissal, porque sem ilusões como aconteceria
com Michael Bay ou Ridley Scott, os directos sem edição de muita televisão e
documentário. Os realizadores americanos vão com os americanos e jamais temos
partidarismo ou panfletos, antes o medo comum, terror prolongado, debate de Criadores
e ordens com o nada. “The Green Berets”, titulo parcial como tudo o que mexe, está
fendido a círculos ou a raides estilhaçados e não concordantes, e aglutinado na
possibilidade eterna da superação. Num caso ou noutro, e no que escapa, fazendo
do instinto um credo maior. Na guerra e na paz.
simplesmente maravilhado com o conteúdo do blog. parabéns, tudo muito inspirador. :)
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