domingo, 8 de dezembro de 2013

 
 
Nova Iorque, 2022. É o que nos informa a legenda de “Soylent Green”, mas o que ela quer situar e mostrar verdadeiramente é o fim dos fins de uns inquilinos que passaram algures numa via láctea e não souberam que fazer, o novo do novo que para aí remete, o inaceitável. Por isso, mais perto de um Robert Bresson ou de um John Carpenter, a luz que se fecha e mais evapora a cada segundo passado a pacto com a unificação a toda a força e violência do estilhaço e do fragmento que corrói, do que visionarismos ou criatividade da ficção dita cientifica ou da antecipação da humanidade e do high tech, essa que normalmente limpa os prémios de efeitos especiais e cataloga de freaks os autores envolvidos. Como chegámos a isto, o mundo era melhor lá para muito atrás, eu estive lá, posso prová-lo, tudo isto são interrogações e tristes afirmativas do mais velho ser que ainda paira e vai resistindo num mundo que mais do que perto do colapso está insuportavelmente possuído pela mais incrustada fealdade. Talvez por isso se chame Sol, e vá dando uns toques latinos para mais disso se recordar, e tenha sido interpretado por Edward G. Robinson, também no último papel da sua espantosa e combativa carreira. Porque ali ele é o único jovem ainda, com sangue na veia e sede de saber e comer bem comido. E é o que vai passando ao Thorn de Charlton Heston, amor, conhecimento, beleza, o sabor antes de todo o pré-fabricado, plástico, de todas as correntes de degustação asséptica, de limpeza corporal e moral e sexual. Vendo agora, estamos de facto muito perto. Valha Deus aos macrobióticos e aos saudáveis sem carne…
 
Uma simples maçã que parece reluzir fora do seu esconderijo e exterminação, o espanto por um bife clandestino e com osso suculento há muito apagado do mapa, saladinha verde na proporção contrária aos raios queimados da panela de pressão que derreta as ruas, um refugado que envergonha as barrinhas que se tornaram único fruto, meia garrafa de Whiskey do divino gamada ao demo, uma colher rapada de morango desconhecido…um jantar a dois entre o velho e o seu pupilo já maduro que olha para o que já foi habitual e banal e ali é exotismo histórico…solenidade e ritual só a ver com o arroz malandrinho e os jaquinzinhos que João César Monteiro sacralizava e convertia na mais alta forma de sagrado nos seus sagrados banquetes. Música erudita também já esquartejada pela eletrônica e muitos sorrisos matriciais e sibilinos para um acto perfeitamente proibido, o de comer bem do que a terra oferece, a animalidade ou bestialidade orgulhosa da sua origem. O embalo e o instante perfeito ameaçados pelo fora e pelo bem geral que tudo calcou. Bem fundo naquela casa de madeira partilhada e forrada a material alienígena, livros, papel, material de escrita manual. Obviamente um último reduto a abater. Numa hipotética actualização realizada por um vencido da vida que continua a socar como a beber trocava-se a película pelo vídeo e pelos DCPs vigentes e era o mesmo efeito? Como é que no tempo da Maria Cachucha se aguentavam riscos na tela gigante demais, saltos daquelas coisas chamadas bobinas, quebras abruptas e mesmo a possibilidade de incêndio? Eram felizes aqueles seres?
 
Até à morte de Robinson, talvez a mais fabulosa e transcendentalmente terreste dos filmes de Richard Fleischer, grande cineasta da morte, da arte de morrer e do percurso derradeiro, onde todos os pixels esborratados da aparelhagem virtual que comeu peitos e coxas surgem devorados pelo que no auge da grande arte e do autorismo seria só bilhete-postal. Naquela redoma horrível e íntima o asseadinho vai ser vergado pelo onirismo, campos em flores e beleza etérea de pacotilha são o aquecimento e a salvação possível, ao ritmo da suavidade melodioso que hoje toca nos hipermercados. Momento em que o sensível e o crescendo boquiaberto rima com a abertura fotográfica de imagens congeladas da Magnum, que vão desde os sépias familiares da nossa descendência e contentamento, de Ford (John ou Henry) até Faulkner ou similitudes confluindo em fumos e lixo, fogo e máscaras do gás e do medo. Da sombra e do cinzel ao Photoshop. Arco temporal e desembocar lógico para os cadáveres que nos darão de comer, para os fornicamentos sem centelha, escravidão sem nome nem consciência. Se nos momentos de “The Boston Strangler” a “10 Rillington Place” a cabeça doente propagava ao meio, aqui, valha-nos Maria Santíssima, nem os mortos podem aspirar ao eterno descanso ou a outra ascensão qualquer. Tudo a mata-cavalos e no speed do áudio e do visual conforme? Precisamente não e tudo sequencialmente e agrupado, puzzle em visão conjunta, para apreciarmos limpidamente e em cristalina filigrana o êxito da expertise. E queima, queima, arde, como os mil graus que na rua se adivinham. E só faz bem, se esta genial obra ainda puder ser vista, será o melhor dos nossos remédios e das nossas rezas.
 
 
 
 
“Alguns me acusam de demasiado parcial e, em tempos, na Cinemateca, houve quase uma tentativa de revolta de massas por eu ter incluído Mandingo entre as obras-primas do cinema e defender que é obra, na gesta sulista, a colocar acima de Gone with the Wind.” Não seria preciso João Bénard da Costa para ajudar ao que agora tem de ser uma evidência, principalmente depois do gato por lebre da chicoespertice bem comportadinha com que Tarantino chegou às estatuetas e aos tops pops, inconsciência que muitos comeram como o prato frio mais requintado da severa justiça, e o que é certo é que gostava que J.B.C me ajudasse a disparar. “Mandingo” é já de 1975, ano de liberdades, e como um amigo meu também me disse, uma das únicas obras sobre a escravatura ligada à sede de superioridade desta raça nossa admissíveis na arte cinematográfica.
 
A sequência introdutória de aproximação. A medo, devagarinho como quem entra num castelo de fantasmas e de horrores daquelas feiras geladas como incêndios. A câmara vai baixando, se abaixando, entrando em propriedade perigosa ou manhosa, e a muito custo cai sobre aquela terra onde vamos estar durante longo tempo demais, depois de ultrapassar grades de meter respeito…e fica, fica lá por terras de contendas e de rasgos de humanidade às escuras. Quando sai, o sangue ainda mais verte e amor só a caminho da morte. Tremenda movimentação e tremente plano e conjugação clássica de planos, mas no caminho dessa legibilidade inventada por ali perto, a parceira e tão conflituosa parelha da imagem começa a espicaçar rumo a dialécticas desconhecidas, e vozes que sabemos de quem garantem-nos que delas só guardam o sentimento. O sentimento como património a priori inalienável.
 
A constatação da barbárie é imediata, com garotas perfumadas para brancos usurparem e rasgarem de primeira vez, quase bebés que curam reumatismos a lordes, ou maiorais que apalpam e olham o olho do cú dos pretos como se fossem vacas antes de fazerem a oferta da sua glória e imposição. Invoca-se e puxa-se Deus para o seu lado benigno e canceriza-se os subalternos como a pior das raças e o pior do sangue que alguma vez pulsou. Chicotadas, penetrações, lutas de morte, jogos de poder, de conflitos e de demência e dependência sexual, escravatura também sexual próxima dos jogos fetichistas e do castigo, e ainda estamos no campo do eufemismo. E a novidade ou não é que Fleischer, no aparente abandono do pudor e da poderosa sugestão que a sua posta em cena sempre primou, só vai escancarando para tornar tudo ainda mais opaco, dúbio, ambíguo.
 
Quando os patrões têm medinho, há que renovar as estratégias de ostracização à escumalha. E não os deixam ler, escrever, pensar, viver. Como hoje os patrões da televisão e do estado tão democrático não deixam nas horas que importam vermos as coisas que importam, para não se soltarem personalidades singulares ou a rebelião ser entrevista. Para as contas que importam e a sensação grave ficar perenemente estrangulada na corrente de forças. “Mandingo” jamais passaria às nove da noite do canal da populaça. Mas o que trama a démarche e a honra do patrão James Manson é como um volte-face dos destinos e das distribuições lá dos altos, porque o seu grão, a sua contribuição, vai começar por se comover com aqueles segundo os quais as suas regras há que calcar ou perfurar. E tudo se volve e revolve entre o que não se explica e o acordado, o tácito e o instinto, o coração e a loucura cega, surda e muda em combate com esse saber-estar.
 
Se a tragédia é final e inevitável mesmo que aquele filho bastardo de Manson seja jogada abençoada e demoníaca de um ou uns poderosos em contendas outras (veneno de anjos ou presentes infernais, São João ou Apocalipse), todos os limites do que não se ultrapassa há muito que se transgrediram infinitamente, tudo é porco, e qualquer tipo de alvura seria ali conspurcada. A certa altura esse filho bastardo que terá um filho também bastardo e entrará assim em demente pirulito, diz à sua marioneta branca de conveniência que nem para a cama serve, e grita-lhe que não consegue dormir quando está a pensar, o que numa machadada o coloca ao nível de qualquer um daquele reino e de todos os reinos.
 
O momento falsamente sublime em que Perry King pede em casamento aquela noiva por momentos brilhante é definitivamente desmascarado quando sabemos que o maravilhoso e o verdadeiro em termos de união acontece quando este oferece os brincos à negra da sua perdição. O resto, os resquícios, são os trabalhos ordinários e seculares da farsa do casal decente, e os problemas e guerras conjugais só se dão com a oficiosa esposa clamante de sexo. Essa que se vai tornando bruxa e que se deixa violar pela personagem central do Mandingo Mede, colossal bloco de todo o descentramento moral e sexual das personagens em causa. Na cena em que a desgrenhada bruxa se autoconsola de chicotadas na rival que a trai pois é a rainha do seu marido, a distância entre os dois rostos que se espraia e revela pelo enquadramento, só pode ser a distância da nossa mascarada sociedade que dali e de outros massacres traseiros advêm. Todo o sentido nessas cortadas expressões, contrastes e iluminação, toda a família universal.
 
A cúpula interdita entre Mede e Susan, o movimento ascendente com uma luz desnaturada e desaturada, acontece logo depois de se ouvir o coro pela segunda vez, a terceira passará nos créditos, e de cada vez com mais ardor. Sacudidela catártica e purificadora, e fonte jorrante de mais veneno. Via capital do imparável rol de violência prometida, o amor com amor se paga da fêmea ao macho em cisão, mas também ou sobretudo a mescla, o impuro, a impotência que a bondade tem encontrado para afastar definitivamente o seu contrário, e com isso a constatação da parte negra de cada um à espera de ser despertada do sono eterno. Mesmo que os sorrisos de Perry king à sua empregada tenham valido o mundo e a justificação do nosso andar nisto. E valeram.
 
Tudo o mais é a incapacidade de se falar ou escrever sobre a loucura ou lucidez que investiu sobre a cria de Mason e o degenerou mas não o fez ou fez igual a ele. Incapacidade do cinema como do realizador em entrar na cabeça e na complexidade terrível das pessoas para as manietar a bel-prazer. Aconteceu como vimos, mas poderia ter acontecido contrariamente, é certo. As certezas ficam para Triers e Hanekes canónicos, como o racismo primário fica para os críticos que nada viveram e apelidam Hawks e demais de racistas, sem irem pelas formas ou não saberem sequer que os actos e seus responsáveis não são o discurso fílmico, pois neste piso de tudo foi deixado. O discurso de “Mandingo”, como qualquer coisa que importe, é o de ver até aonde vamos, de nos vermos, sem ter discurso nenhum. Cinematógrafo consiste em mostrar. Mostrar. No final a câmara sai, ou foge, lá para fora como no princípio, que agora é fim. Eterno retorno, girândola e boomerang de ida e volta vitalícia, e contente assim. E só ficam dúvidas, perguntas. Isto de saber do que se trata.
 
 
 
 
“Red Sonja” nasce a ferro e fogo em 1985, penúltima longa-metragem de Fleischer e situada entre o já fabuloso “Conan the Destroyer” com o invencível Arnold Schwarzenegger e o quase abafado, sabe-se lá por que carga de água, “Million Dollar Mystery”. Produzido por um Dino De Laurentiis fiel a si mesmo, dono de todas as possibilidades megalómanas e refinadas varinhas de condão, com a mão dada por Ennio Morricone na orquestração, é qualquer coisa muito atrás ou muito à frente, onde a cronologia e fidelidades de catálogos pedagógicos não interessam por aí além. Vamos parar literalmente a mundos outros e a arrepios outros. Atente-se à legenda que funciona em cortina, que vocifera vinganças, fala em mundos selvagens e tempos de violência passados, remotos ou futuros, em lendas e em cabelos vermelhos incendiários de guerreiras que saberemos eternas como Arnold, que enfim, nos prepara para guerras.
 
No centro de tudo, para além de Red Sonja e kalidor feitos colossos da espécie, está um talismã que de tanto uso e abuso tem de ser destruído antes de ele mesmo destruir a terra toda. E uma outra princesa má, mais falsa do que o principezinho sem trono com os mesmos tiques dos principezinhos do Mark Twain de “The Prince and the Pauper”, que a pretende conservar para conquistar tudo o que existe e não existe, para ser a Senhora. Sede de poder e de posse que se prepara para levar à ruina um universo tão brilhante, febril, estonteantemente mágico e de condição tão maravilhosa e logo horrenda e insuportavelmente feérica, mil vezes mais do que todos os Senhores do Anéis juntos, tornando tal atitude ainda mais incompreensível do que quando tudo era nivelado na sociedade do “tasse bem”.
 
Feito o roubo pela histérica próxima Rainha, queimados os belos exemplares dessa armada formosa que acaba por gemer no fogo, o super-homem e a super-mulher encontram-se, salvam-se, desencontram-se, atraem-se, e vão juntos e com mais ficção em torno até às bandas da noite eterna, que é o nome da arena da batalha final e esconderijo da joia e não arremedo poético. Na fábula e na magia caímos e pela magia e fogosidade das linhas que rasgam o desmedido scope, pelas transparências e ofuscação das superfícies, vales, montanhas, neve e fogo, luta de contrários e de poesias prometidas, a Sonja ardente diz que não quer homens mas antes prefere o individualismo, opção tentada ou marcas do passado. Mas vai ser neste cosmo do irreal mais do que real, um todo visceral e aglutinador como lava, que se vai ficar novamente a saber do que trata o toque de dois corpos, a troca de fluxos como de imperscrutável ou de alma, o sexo que parece desaparecer quanto mais para a frente se anda. Sequela perfeita e mais pedregosa ainda do que o “Bandido” de 1956.

O momento decisivo pode ser a salvação global ou a luta entre os dois que em situação normal, ou anormal, não caberiam no mesmo espaço nem partilhariam o mesmo tempo, o mesmo leito. Luta que é todo um manancial erótico em cenografia concordante. Na espadeirada e nas voltas, mortais, saltos, curvas e contracurvas, todas as posições e encaixes do par são testados e praticados, até à exaustão e momentâneo repouso, com esforço final e repetição incluída. Entram-se, saem-se, a arma vai ficando cada vez mais pontiaguda, convidada, resplandecente. Perpetram, penetram, rasgam. Ousadas investidas, furiosos balanços, resvalares. Coreografia orgástica que advém obviamente de Josef von Sternberg, passa por um Vittorio Cottafavi e explode aqui. E para não entrar em delírios lamentáveis juro que não me vou pronunciar sobre aqueles ecrãs adivinhadores, oráculos ou cabines expiatórias, porque outra vez não faço a mínima ideia se estamos nos campos das feitiçarias ou já do pós-plasma. Ecrãs dentro de ecrãs e toda a semiótica a reboque? A academia que se ocupe disso que o outro lado é bem melhor.
 
Quando o talismã verde cai ao fogo e com ele todas as metáforas do mal e da sua perdurabilidade, se salvam crianças e os céus continuam a soltar os seus adventos e a tocarem as suas trombetas, se a pincelada que os envolve tanto é William Turner ruivo e dourado como apocalíptico Rembrandt como a Bíblia Sagrada, se parece que a marcha da juventude e do saber pode continuar a desbravar caminhos e ousadias, a moldura final, esse plano mais médio ou menos médio sem linguagem em que Sonja e Kalidor se agridem para se beijarem e sorrirem é talvez a chegada e fulcro de tanto caminhar e, acima de tudo, de tamanho cinzelamento pelo planeta e pelos géneros, cinema e vida. A luta para chegar ao amor e todo o vice-versa reservado, sem resolução. Fleischer foi aos abismos e aos eus confins, do cinema e da espécie, e voltou, para nos dar testemunho e fazer ver, acreditar. Cineasta do sagrado que acredita no que filma e sabe que todas as coisas têm razão de ser. Assim as correspondências entre autêntico e escavado, vacilante, aparência, real. E que faz tudo parte da mesma experiência. Coisa total cada vez mais perdida nos silogismos e na teoria. Transfiguração, prática, superação, paixão.



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