quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

 
 
Armistícios, canhões, espadas, lama e glória, pólvora, fé, danação, remissão e eco. Catedrais magnânimas e fedor de hospital. Marchas, sinos, ecrãs a cinza queimada. Genuflexão a cortar para os delírios febris dos amputados e dos loucos. Alegrias sem nome. Verbo redentor. Movimentos circulatórios indefinidos do cinema ligado à crosta do mundo pulsante. Atracção por meio da violência e inevitável repelimento ao mesmo nível. Eu sou a Ressureição e a Vida, disse o senhor…Isto é não dizer nada dos três minutos inaugurais do “Broken Lullaby” escavado aos altos e aos baixos por Ernst Lubitsch em 1932. A Terra em chamas e a Terra em paz. Finada essa sequência em que ao maior gáudio corresponde a mais cegante e ensurdecedora das visões e da música, vai-se mais fundo. O corpo de Cristo pregado morto há eternidades. A câmara desce abissalmente a pique e no mais angustiado presente revela a mais desgraçada existência possível. Depois da multidão confluente e una, o individuo isolado e destroçado da eternidade. Ajoelhado e pronto para tudo. Retrancado mas implorante. Mas nem Padres, nem Deuses, nem acreditares etéreos. Nem o mal se decide na sua famosa eloquência. A mais estralhaçada prece metafisica será sempre calada pelo aperto mais físico. O físico mais assumido, o tal absoluto físico ou a suposta coragem que daí pode advir, a latência destruidora a todos inerentes, também dobrará os joelhos perante ciclópicas batalhas internas. Da Santa Casa impotente aos regozijos do Inferno o movimento é tão circulatório e brutamente oposto como o buraco que precede o berço e se segue à morte. E a Virgem e Filho e estética religiosa e pictórica e ética só apressarão o caimento das despes. Coisas assim postas, a lógica do ilógico salto para um abismo sem fundo nem lei que só pode ter a ver com o curso da câmara atrás descrito.
 
O que a guerra faz aos Homens. O que a vida faz aos Homens. Viver mata, nas suspensões animalescas ou nas naturais catarses. Paul Renard, entre Peter Lorre, os amadores de Robert Bresson ou qualquer um de qualquer quadrante que se sujeite, é esse pobre que no campo oficioso de batalha matou o seu próximo e nunca mais teve sossego aquando da pausa do circo. E nada o ilude, nenhuma areia lhe chaga a vista, e possuído decide penar para a terra do defunto parceiro de ofício, vaguear no seu cemitério, conhecer os dele, do que esse cheirou, amou, pisou, prometeu. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido…O que por aqui acontece noutro A Perfect World jamais é da ordem dos fardos ou da expiação. O que advém e agrega neste A Perfect World são as chamadas almas e os chamados destinos totais, vagueantes, clamantes. Crentemente ou nada disso o que nos aquece e arrefece lado a lado ao mapa irrecusável dos encontros.
 
Se é pela música que no términus Renard e a noiva viúva se unem e a nova aurora brota todos os mais belos primeiros raios de sol, foi pela música que tudo se despoletou, entre cartas decoradas e olhares sem correspondência possível que todas as dimensões abrem. Amar vivos em relação ou ainda em corelação com os mortos, como das sombras vincadas do questionamento se irá fazer a única alva luz exequível, castrar todos os horizontes biológicos e demasiado humanos para almejar totalidades plenas. Ernst Lubitsch a abrir alas, túmulos e vidas para Max Ophüls e Manoel de Oliveira, Cartas de Desconhecidas ou Virgens Mães. Ali naquela sinfonia mais do que perfeita, todos os fantasmas e todo o tempo.
 
Falava assim em mundos perfeitos quando tanta tortura e transgressão para o final feliz? É preciso que se repare e se sinta o Sol muito forte de Renard e da mulher que o acolhe, do Pai e da Mãe, uma temperatura e uma beleza para lá do decente ou do comungado, que tudo descarna rumo a tesouros prometidos e há muito vilipendiados. É esse sol e essa gravidade que se solta na mágica, surreal e absolutamente verdadeira cena do cemitério das Mães. Vêm chorar os filhos, tocam-se, falam, mas o poder da palavra e da expressão perde a sua estudada etimologia e decência outra vez e elas falam de receitas caseiras, quantidades de açúcar, pecados e malandrices, descobertas ainda e para sempre, amam-se sem o dizerem, agradecem-se sem obrigados, volvem-se adolescentes e assim ressuscitam os seus e tudo. O cinema como crença na reposição e no milagre. …viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá…
 
E a câmara ao encontro dessas estrelas maiores, desses eclipses supremos, incalculáveis, a sua energia, mecânica e ciência a chocar com esse desprendimento cósmico do corpo e da alma, da dura matéria e do celestial evanescente, sol de alegria e chuva das lágrimas, chumbos na carne e mimos maternos, tudo de tudo a ser acariciado pela lente ou cuspido ou uma coisa e outra ou só uma delas, tudo a ser quebrado, o vidro da lente a partir-se, todas as vibrações e ondas e físicas e químicas e oferendas Bíblicas a chocarem lá pela objectiva e já nos espaços fora dela e nos off, a emaranharem, a criarem novos desconhecidos e a retirarem incertezas. Maquinismos, saber antigo, dúvida, carácter, dos Homens e dos Deuses. Tesouros de alguns poucos esventrados como oferenda suprema de uma prática cinematográfica que nunca cai na usura mas ao mostrar conserva mais ainda a raridade. A máquina de Ernst Lubitsch ou de quem a quiser, o Sol nosso e o sol da Terra. Não nos devemos meter com alvuras e brilhos potentes demais, desconhecidos demais, talvez a não ser que a resposta como dádiva a isso seja igualmente suprema demais - é a generosidade em “Broken Lullaby”, o seu amor em progressão como mais tarde Jean Renoir faria com os elementos naturais, animados e fecundos presentes em “Le Dejeuner sur l'herbe”. É preciso que se mereçam ou nada. E anunciado um Mundo Perfeito que, mal dos nossos pecados ou equação simples demais, quanto mais ao alcance mais irrealizável. Ou todos os opostos se encontram no desencontro perfeito.

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