terça-feira, 28 de janeiro de 2014

 
 
Toni

 
Por António Simões*
 
Ele não é só o Toni. Conhecem-no pelo Toni do Benfica. O próprio apresenta-se, até ao telefone, como o Toni do Benfica, mesmo que esteja a treinar outro clube no estrangeiro. O Toni do Benfica é mesmo do Benfica. Faz falta ao seu património. Moral e desportivo.
Jovem ainda, oriundo da Académica, para onde havia ido, mercê do olho clínico de Mário Wilson, chegou à Luz na temporada de 67/68. Eu era o capitão da equipa, recebi-o, percebi-lhe a fascinação no contacto com ídolos da sua infância e adolescência. Lembro-me de o levar para Sesimbra, onde tinha alugado uma casa de férias, tinha por objetivo contribuir para a sua melhor ambientação e ajustamento no começo dos trabalhos com os seus novos companheiros e nas responsabilidades que teria de assumir nesse seu novo e tão importante desafio.
Volta e meia, fazemos referência a esse momento. Toni empresta afeção, reconhecimento. Na mítica e imponente Luz, começava a ser jogador de maior corpo, de maior opulência, de maior visibilidade, de maior mediatismo. Também e ainda de maior responsabilidade, algo que não o atemorizou. Entrou na companhia da humildade, foi um dos seus trunfos. Deu a mão ao combate, foi uma das suas virtudes.
Entendeu rápido como é que se jogava com craques, com monstros, assim os concebia. Depois, foi-se impondo, emancipação consumada, já era um igual aos outros. Atuou em várias posições, preferencialmente na intermediária, sempre de utilidade extrema. A equipa aceitou-o bem, ele assimilou a mística. Fez-se campeão num ápice.
Toni começou por ser um jogador/atleta para mais tarde se tornar um atleta/jogador. A mudança operou-se na graça de uma equipa de topo, constituída por futebolistas muito evoluídos. Seguiu exemplos, veio a ser exemplo a seguir. Anos a fio, dedicação inexcedível, deixou uma marca proeminente no Benfica, também na seleção Nacional.
A par de Humberto Coelho, no termo da carreira, passou a figurar entre os mais capazes de transmitirem os valores do clube, o seu virtuosismo, o seu feitiço. Tinha vivido uma multiplicidade de situações, conhecia o Benfica como a sua própria casa. Na hora da transmissão dos princípios, era escutado, é ainda, será sempre, com admiração e deferência. E tem obra, muita obra, foi operário de vitórias, jogador ou treinador, operário especializado, operário abnegado.
Como jogador, era uma força da natureza. Como treinador, era uma força da vontade. Como homem, era e é uma força da bondade, do altruísmo, da filantropia. Líder natural, genuíno, culto. Conversador nato, entusiasmante, erudito. Amigo diferente, amigo mesmo, amigo sério, fiel, fidedigno.
Nunca se demitiu do trabalho. Subiu a pulso, realista, assumidamente realista. Soube esperar oportunidades, sem usar expedientes ardilosos, tudo sustentado por uma plena afirmação de seriedade, de retidão. A paciência foi arma, decerto suportada por muitas lágrimas, em privado ou mesmo em público, mas sem nunca descarrilar do ponto de vista ético. Os melhores, os mais justos, são ou não os que mais sofrem? Toni sofreu algumas vezes, vezes em demasia, não merecia, nunca mereceu. E quantas vezes abafou ou silenciou angústias? Em defesa de quem? Do Benfica, do seu Benfica, do nosso Benfica.
Tem a suprema honra de ter sido, nas últimas décadas, numa história tão longa, o único campeão, pelo Benfica, na dupla condição de jogador e treinador. No último caso, principiou na condição de adjunto, coadjuvando vários técnicos, uns mais reputados do que outros, mas com a lealdade que o carateriza. Já titular do posto, campeão, nem por isso foi preterido, aceitando voltar a ser assistente do sueco Eriksson. Mais tarde, de novo laureado, depois daqueles célebres 6-3, em Alvalade, já nesse dia era treinador à condição, assumida estava a entrada de Artur Jorge, seu companheiro e amigo de tantas jornadas.
A cultura popular tem sinais de crueldade. Prata da casa não faz milagres? Pior do que isso, é menos respeitada, um sem número de vezes. Disso foi também Toni padecente. Que injustiça! Tanta dedicação, tantos jogos de maravilha, até uma imprevista presença numa final da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Era fatura que se pagasse? Toni resistiu, o seu amor ao clube esteve sempre acima de tudo e de todos. No meu tempo, já em pleno magistério presidencial de Vilarinho, substitui Mourinho, depois do conhecido episódio de chantagem e da quase fuga para o Sporting do agora afamado técnico. Toni não queria assumir, ao contrário do que muitos possam pensar. Talvez percebesse que, naquela conjuntura, era difícil ter sucesso. Confirmou-se. Batalhou, de forma incansável, mas não foi feliz, os tempos ainda não davam para garantir um Benfica pujante e apetente pelos triunfos e títulos.
Toni, o Toni do Benfica, deu sempre mais do que recebeu. Mora nas cercanias da Luz, ainda hoje diz que o carro se engana e vai a caminho do anfiteatro rubro. Coisas de Deus? Ou coisas do diabo? Coisas, seguramente, de um coração vermelho, cujas hemorragias, de felicidade ou de dor, pronunciam sempre Benfica. Pronunciarão sempre Benfica.
 
[FRANKFURT/ALEMANHA] 
 
* No brilhantíssimo “António Simões – Personalidades e reflexões do mais jovem campeão europeu da história.” Editora QuidNovi, 2013 
 

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