segunda-feira, 24 de março de 2014


"A Girl in Every Port", 1928

Spike Madden é um trota-mares e um trota-mulheres. Em cada pedaço de terra junto ao barco atracado, lá costuma estar uma da sua lista à espera. Mas no hiato em que o apanhámos neste mudo de Hawks configurador de quase toda a sua moral e construção posterior, esse possante marinheiro encorpado pelo colossal Victor McLaglen anda em maré baixa. Umas casaram-se e tiveram filhos, outras entregaram-se a diversas carnes rivais e muitas delas provaram da anátema invisível de Spike que lhes marcou literalmente a pele. Então, essa massa desejante em alta rotação, resolve tentar quase tudo o que mexe mas mesmo essas vão preferindo a sombra que teima em não confluir com ele. Como para quem muda mais vezes de poiso do que de sapatos o mundo é pequeno, vai num dos engates embater com a personagem que lhe fez a vida negra pelas costas, e acontece tudo menos o esperado. Entre em cena o também marujo Bill e logo andam à porrada como se não houvesse amanhã. Mas porque se reconhecem numa qualquer audácia ou numa qualquer solidão, tão rápido como se altercaram se vão unificar contra outros. Entre desafios às autoridades, cigarros trocados, bebedeiras revitalizantes ou investidas conjuntas ao sexo oposto, tornam-se unha com carne. A amizade significa mais para os dois do que qualquer mulher. Acima de tudo, pensando já em “Tiger Shark” ou “Red River”, tudo mais do que qualquer junção traiçoeira. Então vai acontecer o que acontece tantas vezes, Spike deambula sozinho e deixa-se apanhar no feitiço de uma víbora. Víbora marcada por Bill que sabe do que essa cospe, e se lhe vai chegar perto já não é para mimos mas sim para ameaças sérias. Está lançado o conflito e a perpétua possibilidade de tragédia. Bill repele o veneno todo e orienta-se para a desgraça. Bebe e provoca alheios e no tudo ou nada clama pelo amigo ao acaso. Este, contra todas as probabilidades e sortes, ouve esse rumor e esse secreto apelo. Vencem mais uma batalha, mas o orgulho quase fere mortalmente o julgado traído e este leva o fidelíssimo ao tapete. Mas reconhece-o outra vez, mais do que na audácia ou na solidão, na verdade certa vez prometida, e acabam de copo na mão. Entre juras de para sempre. É-se bruto, javardo, foge-se da terra ou das obrigações, e se sozinho não se é nada há que se juntar a alguém. Na máxima violência, no máximo amor, sem destrinçar. Neste portentoso Hawks ainda sem os diálogos furiosos e a sucessão de imagens e sons a carburar justamente à causa, nas comunhões ou dialécticas cortantes, já está todo o fundamental. Completamente imerso no ritmo da vida sabendo que é esta que despoleta todas as ambiguidades e clarividências. Cortes em movimento, frontalidades reveladoras ou acusadoras, respiração conforme, Homens a fazerem os trabalhos dos Homens. Forma superiormente moldada que busca sempre a mesma coisa: perceber o mal, descascar o mal, recuperar qualquer coisa original. Para nos derradeiros suspiros se poder ousar pelo menos aproximativos do tal “I`ve had a hell of a good life”, sem a grande depressão. Já irrompe toda a força e todo o corpo de Hemingway, Wayne, Cooper ou Capa, isso do antes quebrar que torcer, como no seguinte “Fazil” assombrará o Faulkner ou o Gable das mais escavas sombras. Se o último dos planos já comporta uma cicatriz num rosto, maldições cravadas ou pressão do além, das primeiras de muitas do realizador, é porque esses dois polos indivisíveis já se entreveem, mas olha-se de frente e eclipsa-se a temeridade. Seguros de si. Essa a tal da moral ou do código, sabendo do fundamental de A Girl in Every Port.

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