quarta-feira, 5 de março de 2014

Encontros Cinematográficos 2013 – Fundão (II)


NOITE de Bruno Andrade
14 min | Digital | Cor | Brasil 2012

Um homem encontra-se sufocado em algum lado, na sua casa, numa prisão qualquer, não importa. É o tédio que mata. Cervejas e cigarros de esperança ou destruição. Nervosos zappings pela televisão que ainda mais condena. Aleatórias passadas para trás e para a frente. Luzes que se apagam e acendem e a electricidade que continua a ferir. A câmara que segue curiosa e extremamente física estes movimentos. Vai em busca de toda a latência prestada à altercação. E isto, até ao paroxismo. Lá fora, uma promessa qualquer. 
Na noite vivem-se coisas diferentes das que se vivem de dia, isto foi-nos dito por criadores tão líricos como Nuno Bragança ou Nicholas Ray, implacáveis como Fritz Lang, ou vulcânicos à temperatura de Maria Callas. Um inapelável chamamento, feitiço, libertação, medo. Uma essencial uniformização.
Do cárcere vamos outra vez para um dentro, mas, logo se nota, é um dentro apossado pelas sombras do pecado. Fundo de parede estrelado combinado pela cor que melhor o acompanha e mancha, naturalmente o vermelho, o do sangue. No vermelho se senta uma mulher que é o fruto da tentação e da melodia nocturna. Ainda não voltámos a ver o homem e já sabemos que saiu de casa. 
Não é pela consciência do seu poder de atracção que essa mulher se preenche, entre minúsculos enredos e necessário combustível também dá suspiros de aborrecimento. Necessita agir, acção, e vai à caça. Ele ao balcão, nota-se, não é novato nestas andanças. Ela aproxima-se, ele reage. O mote está dado em menos do que custou a contar. E corpos celestes com certeza incandescentes continuam a desenhar órbitas largas à mais primordial das aproximações.
Jogo de atracção, flirt sensualista, poses irresistíveis, desbravamentos, solidões lacustres. O respirável e o excitante no concentracionário e no cerco. Alguns saberão. No meio do turbilhão, um nome, Lana. E todo um passado e a sua ferida em retrocesso. Dele, só fantasmagoria e predisposição. Dela, rectidão e compreensão. Há ali generosidade, ainda ninguém se perdeu. 
No carregado sofá descobrem-se nus. Estranho e límpido esventramento num dos mais improváveis redutos de humanidade ainda possíveis. Sobre aflitas elipses que o verbo e os tremores denunciam – gravidade perigosa, gravidade redentora. A auscultadora câmara vê-os agora de longe e ficam dois no espaço infinito que a todos nos promete comer. A música de muito fundo aumenta o seu volume e suspende a sinfonia. Chaga incicatrizável ou todas as possibilidades. Ali, ali não se pede desculpas. 
Para além do tocante companheirismo e carinho pelos sozinhos que andam enleados algures na treva, para além da imensa vitalidade de vermos aumentadas coisas tão ínfimas e esvanecentes como a baforada num cigarro ou o animalesco cravamento de um olhar, o que “Noite” nos escancara e aproxima é o fim de um universo tão particular e bruto como os bordéis, com o fim de uma era de contacto e reinvenção entre os homens que foi o cinema. Membros de uma mesma família que por vezes ainda falam. Escuridão quebrada por violadores rasgos de luz, clandestinidade estupefaciente, a perdição e o irracional em contra campo ou num mesmo plano. Silenciosas perversões. Sagrados redutos.
Esta consanguinidade que a segunda curta-metragem de Bruno Andrade literalmente agarra, possui, materializa até consequências últimas, é a feliz união entre todas as volúpias da carne e dos sentidos com toda a hipnose e violência de que os terminais refúgios de uma arte gizada a panorâmicas omnívoras, brilhos devoradores e pedaços atmosféricos alucinantes ainda permitem. Numa grande palavra, dramaturgia. Tudo o que está, e se põe, em causa. Terminal cosmogonia. Tão fugazmente. Tão concludente. Não é coisa pouca para um quarto de uma hora.



José Oliveira

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