sábado, 17 de maio de 2014

 
 
Livre? Quem quer ser livre? Responde Robert Ryan, salvo de um cadafalso literal à última da hora e de outro muito mais potente ferrado no interior da sua cabeça, a uma Barbara Stanwyck que na hora menos esperada viu a vida torcer. Tanto um como outro pertencem à raça dos que agiram tempo demais em espaço demais por sua conta e risco. Sem medida, nem sentido, Deus nem Sombra. Ele por esse mundo fora tendo como tecto o céu. Ela junto a elefantes, dentro de palácios e selvas de igual perdição. Então…a velha incompreensão. Por meio de injustiças imperdoáveis, irmandades além morte, insubordinação, fugas, a doença, a peste, vão-se encontrar no milagre final ou na justiça final e fazer parte dele. Perceber, como todo o grande cinema americano percebeu e já não percebe mais, o valor da fidelidade. Fidelidade que jamais se amarra ou aninha, mas que é pelo contrário o móbil de todas as liberdades. Por isso mesmo a deixa final não é sentença, é júbilo. Fidelidade antes da constelação do amor ter deixado de fazer parte da comédia rasca.
 
Ou seja, sentimentos que são os do trabalho do cineasta. Alan Dwan. Toda a ficção deixa de ter a sua aura de espetáculo ou de efémero para se projectar em eternidade. O romanesco é o romanesco de milhões para lá ou cá do cinema. O ofício das formas como ofício da memória. Da reposição. Uma missão. Tudo entra em acordo e por isso mesmo é difícil não considerar toda a obra que conheço de AD um só filme. Caminho de múltiplos pavimentos e direções. Seja no fogo de Iwo Jima, pelas águas do sonhado Suez, na viçosa Montana, no apocalipse da obra crepuscular. Tudo é documento, ainda mais do que documentário, e tudo redime da vilipendiação e da usura que tantos autores gastaram pelo mundo. Mundo vetorial ou mundo abstrato dos abalos dos sentidos. Em “Escape to Burma”, no auge da fábrica dos sonhos, uma dança e carinhos de um elefante, a sede de carne de um tigre ou de uma pantera negra, o privado dos desejos do par, um pedaço de terra que aluí subjacente ao medo, uma pintura de papel paisagem telúrica ou feérica luz falsa para tempestade dos Génesis, folhas e seiva lânguida a imiscuir-se na definição arquitetónica rigorosíssima da abertura, são postos no mesmo plano e na mesma profundidade que sabe que tudo é inerente no movimento verdadeiro. No movimento original que todo o integro deve almejar. Que a enfatização estará no invisível, esse secreto imanente, ou quando o cinematógrafo deve elidir - tanto no imemorial Éden ou pela caneta de um argumentista pago à página.
 
Esgotamentos, isolamentos, falta de ideias, edificação do ego, alimentação do ego, choradinho, miserabilismo, cego individualismo, Rimbauds fantoches, hereges, sofistas, jogos de percepção, tudo desta raça é a moral proibida. Quando a comunidade importava o cinema era comunidade. As coisas brilhavam e o mal, que se enegrecia e mostrava e fatalizava como nunca mais, morria pelo poder comum. O mundo como deveria ser, disse certa vez o mais justo dos homens e dos artesões, Victor Erice, por estas tão raro, por estas tão lancinante. E quando o próximo, a sombra protetora, o olhar iluminado, fidelidade, essa distância límpida, fome elementar, era a busca certa na maior da miséria. Livre? Quem quer ser livre? E assim “Escape to Burma” é a arte e a energia mais livre possível. Seguimento que continuará em tantos episódios e actos de sopros distantes de lugares habitados.

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