terça-feira, 20 de maio de 2014

 
 
“And she was reputed to have been on the set the day Griffith invented the close-up!”
Francis Scott Fitzgerald, "The Love of the Last Tycoon"
 
 
Sempre tivemos o grande D.W. Griffith histórico, cheio de ressonâncias míticas e bíblicas, fundador de formas e narrativas mas constantemente revolucionário, onde na grande aventura de uma arte nova chamada cinema convocou a grande literatura como a grande pintura para, nunca esquecendo o passado e as correspondências universais, erguer frescos que só pela nova imagem em escuro largada podiam fazer sentido pleno; mas também o pequeno e intimista lírico de “Broken Blossoms” ou “True Heart Susie”, esse do coração gigantesco e mão terna que no mais singelo dos quartos retribuía aos seus sofredores e lutadores toda a luz e modelação apreendida num Rembrandt ou num Edward Hopper, elevando a construção fílmica o mais possível à morfologia dos seres, criando assim épicos outros do mais cândido humanismo. Mas o que me vazou desta vez foi a sua derradeira longa-metragem, essa imediatamente a seguir ao minúsculo e desmesuradamente apaixonado retrato de um homem solitário chamado Abraham Lincoln, onde prometia tudo alcançar com o recente som e possibilidades musicais; no entanto, tem que se dizer, a música foi fundamental na plasticidade e movimento de toda, toda a sua obra. Todas as suas composições como que bailavam harmonicamente ou em resolutas oposições. Música, pintura, romance e realidade bruta de uma natureza que entrava incandescente pelas lentes em fulgurante primeira vez. Galáxia complexíssima onde um filme tão curto como o “The Country Doctor” de 1909 parece englobar todas as vertentes enunciadas e as restantes, num cinzelamento e beleza já atordoantes, tornando-se tudo grande demais para análises deste género. Como escreveu João Bénard da Costa sobre THS: “uma trama tão ténue que não consente qualquer conversão a qualquer outra arte ”. Inarrumável.
 
“The Struggle” foi feito em 1931, tinha Griffith 56 anos e milhões de metragem para iluminar, milhões de palmos de terra e de gente para imprimir nela, encontrar-se e falar com Murnau e Jean Vigo, fazer o bem usando da implacabilidade, mas não aconteceu. Podemo-nos lamentar, mas mais vale ver sempre com atenção o legado. Esta luta começa em legenda ambígua e desafiante, lança-nos para o meio do que poderia ser um painel fracturado ou um mosaico de múltiplos espelhos, cheio de som e de fúria, cacofonia moderna, ruminante e denunciador dos males de uma nova sociedade interesseira e capitalista, onde o caminho da sobrevivência é o encontro com as misérias do álcool que aqui é um dos dínamos. Mas num corte furioso de secura e bom partidarismo, somos levados ao consumar do amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem, com uma acalmia na paz dos anjos e mais beleza letal, depois, em supressões do trabalho do casal, vemos o nascimento da sua cria, o aumento da paixão, os beijos de boa noite e os presentes prósperos. Mas também a contradição capital que consiste na quebra da jura que o esposo fez à esposa na promessa de casamento e vida, quando lhe disse que por tal nunca mais sequer cheiraria o vil líquido. Por ventura são coisas que não se prometem e muito menos em tais causas, se calhar nem vale a pena confundir as coisas e a tentação e queda naquele contexto aconteceria sempre. Sem querer entrar em futurologia, o que lá está é o possível agigantamento do demónio que todos temos dentro, inclusive a melhor das pessoas e a alma mais alva. O marido vai de facto perder as estribeiras e passar os limites dos limites, que não são só as bebedeiras constantes nem o abandono da mulher e da casa, nem mesmo a vadiagem com mulheres da má vida e sacanas ainda piores, mas vai arriscar acabar com a filha linda, num momento do mais puro terror onde a encenação do mal aleatório e incontrolável se expande circulatoriamente e só a mais pura sorte impede a consumação da tragédia. Uma exaltante fresta de luz ainda o resgatou da escuridão do purgatório em que penava. Se no plano que fecha esse bocado amargo da vida deles e do nosso mundo tudo parece estar bem, com os olhos do protagonista a brilharem de novo apesar de tanto sangue neles ter raiado, a tragédia foi mesmo vista de frente e logo experimentada na pele, cravada; marcas inapagáveis vão sempre ressoar, apontar e diagnosticar as estruturas e prioridades da nossa terra.
 
Se tudo isto é um tratado orgânico e feroz sobre a fealdade concertada e a persistência original onde não se sai de certezas óbvias num tal pântano, cinematograficamente estamos perante uma peça de concentração e descarnamento que se é o ponto de chegada e apuro do maior dos cineastas, do maior dos empreiteiros e logo supremo manipulador, tal só parece possível e reforçado pela circunstância e pelos limites. Concentração que tem a ver com a essencialidade de tudo o que acontece, romanescamente e documentalmente, onde na progressão dos acontecimentos referidos nada de acessório entra, nada de pontuação supérflua ou passível de distração. Não temos uns segundos de sol a seguir a um choro para aliviar momentaneamente uma dor ou criar uma metáfora fina, nem nuvens ou carros que aceleram para a noite, muito menos uma sinfonia dramatúrgica que carregue nas tintas da perdição. Somente os palcos significativos para o que interessa contar e mostrar, e o máximo peso na maneira de o captar. Que tem a ver com o tal descarnamento, a carne viva e cheia de veias e chagas em que as imagens nascem, vivem e se agravam, ferem e vilipendiam. A câmara de Griffith sempre foi a que mais pôde, a que mais ampliou e perfurou, no ângulo necessário com a distância e a temperatura adequada, mas, há que reconhecer, outro factor talvez ingovernável se meteu ao barulho, tratava-se de uma técnica e de uma ciência com as suas vicissitudes e propriedades recentes, não perfeitamente desenvolvida e acabada, ainda não limada e pronta para não exceder cânones plásticos e conformidades do aceitável. Ao olhar do mestre imponha-se a par a violência animalística do que não está totalmente domado nem civilizado, e daí que pelas composições rigorosas e nas entradas e saídas em que as portas rangem mesmo e cedem novos mundos, todas as auroras eram possíveis, essas surpresas que aparecem quanto mais se arrisca e se é rigoroso sem outros filtros que não a verdade do movimento e da emoção em jogo. Essa câmara já era então um potentíssimo objecto de precisão comparável às lupas da nasa ou aos amplificantes estetoscópios, objecto que no longe e no perto nos radiografava e escutava, acreditava nas profundezas e nos invisíveis; que esperava, se ajustava e reajustava, ia à procura e se espantava pelo milagre do tempo e da manifestação; sabia do comum e preservava o privado sobre o qual não se deve banalizar; estruturava o espaço, definia as escalas e os eixos, metia de fronte ou estudava a prespectiva adequada, flanqueava nem mais nem menos do que uma experiência nova do que é viver. Para dar razão ao que o outro grande humanista diria anos depois, esse Jean Renoir que afirmou perentoriamente que liberdade total não é muito aconselhável em cinema, que se devia ter certos princípios e até regras; e há que ouvir sempre a conversa dele com Henri Langlois no filme de Eric Rohmer titulado “Louis Lumière”, em que se percebe que o progresso e o desenvolvimento em arte não fazem grande sentido. Disse certa vez Manoel de Oliveira na apresentação de um seu filme cheio de efeitos especiais e digitais: “Só existiram três inventores: os irmãos Lumière, Georges Méliès e Max Linder”. Não falou em Griffith e tenho a certeza que foi por aos irmãos o associar. Qualquer destes ditos e se calhar lamentos apenas apontam para aquilo a que se chegou hoje: a bandalheira total, o plano a colar à sorte com qualquer outro e o efeito mais rasca a matar a coerência ou justiça ou a legítima poesia, o espaço a ser dizimado e o tempo a não existir; para não ir à parte mais sensível da raça e falar das torturas e humilhações supremas que um orgulhoso Lars Von Trier ou Michele Haneke aplicam aos seus opostos. A inteireza de D.W.G e logo toda a modernidade inultrapassável de que Oliveira deu conta muito a sério e nada a brincar tinha a ver com isto, a revolução acontece quando se é fiel ao que se encontra e tem em frente, quando se está à altura de, de onde a consciência genial, o desfasamento interesseiro ou o resultado pré-definido são a abjeção imperdoável.
 
Posição retrograda? História da carochinha? Saudosismo? O que ontem foi possível mesmo já depois dos pioneiros já não é agora, as imagens e sons e parafernália acessória escorrem como tinta lançada à sorte pelas telas dos nossos portáteis que tendem a substituir as salas incomportavelmente grandes, e assim a palavra resistência é a mais válida. É difícil encontrar o olhar de criança, antes da grande violação, da usura e de alguns incestos, mas nunca se deve desistir e essa será a moral para viver e morrer de pé, mesmo que se leve com um rótulo que hoje deve ser tomado em conta, o de reacionário que até mesmo colam a um James Gray, esse tão empenhado, actual e apaixonado artesão. Penso nos grandes pioneiros do digital, e já agora que não se leia isto romanticamente ou ironicamente, como Pedro Costa ou o caso do “Wolframe” arrancado a ferro e fogo por Rodolfo Pimenta e Joana Torgal das funduras da terra e mais ainda do cinema, esses que com o chamado vídeo caseiro procuraram, fungaram pelos escombros, ousaram, arriscaram, acreditaram nessa impossibilidade pelo trabalho e pelo reaprender a olhar, para descobrirem como se deve ver agora o Homem, de onde, sobre que fundo, horizontes perdidos; quanto tempo deve demorar a irromper e a passar no plano alguma coisa, quem deve encontrar, quando deve falar e o que dizer, novos ritmos, novos cortes, novos raccords, até silêncios nunca escutados. O mundo, a sociedade, a arquitectura, os valores, mitos, desilusões, é tudo de outra ordem. Não se trata então de fazer à Griffith ou à Chaplin, de plasmar, guinada utópica, nem de um alquimismo cego, mas de lavar o olhar, de se reposicionar, fechar os olhos às modas que são a reverberação da publicidade e do engano que nos quer fazer crer que tudo está bem e se deve continuar na onda, mas antes ser-se fiel e lutar, pregar no deserto, como o filme que me trouxe a estas linhas não cessa de nos dizer, para que as coisas fundadoras, plenas, invioláveis se metam no trilho e no sentido certo. A natureza a seguir o seu devido curso. O grito da flor no deserto ou o trajecto da estrela cadente. E a infância, os órfãos que mesmo eternamente enlutados não têm e têm temor de se atirarem a esse buraco onde se encontra o maior dos segredos. E as sombras adensam-se. “Eu fi-los ver, não fiz? Eu mudei tudo”, a ler com toda a literalidade, branco é galinha o poe.

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